quarta-feira, 30 de agosto de 2017

As Metas de uma Artista




Neste ano de 2017, como eu já disse anteriormente, Mara De Carli foi indicada com várias obras ao Prêmio PIPA do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Dessas obras, trago três xilogravuras que, juntas, formam a série Meta III/II/I (acima), como numa contagem regressiva, em busca de um foguete que deslanche a vá para longe da Terra, na meta de explorar. Como numa sucessão monárquica, só que ao contrário, subvertendo a dura e perfeita lógica numérica. É a meta metendo-se a construir e desestruturar. São três tempos; três momentos. O princípio xilográfico é o mesmo – um longo retângulo preto, maculando a base branca virginal, numa artista explorando variedades sobre um mesmo assunto. São como trigêmeos que não são univitelinos, tendo em cada um uma marca diferente, apesar de virem da mesma barriga mental. São três janelas, vazias, ocas, permitindo a entrada da luz à obra. Temos três momentos, como no conto dos Três Porquinhos, em que cada casa responde de uma forma ao sopro do lobo, com uma casa fraquinha de palha, uma casa intermediária de madeira e a última sendo de tijolo, que quase não se abala com o sopro malévolo do lobo. Temos um momento de relativa ordem, um de menos ordem e um terceiro de caos e destruição, como na Psicologia, com as três casas mentais: saúde, neurose e psicose, numa progressão gradual, na qual temos ordem, seguida de caos inicial e seguida de caos total. Como na célebre obra O Jardim das Delícias Terrenas, com três tomos: no primeiro, tudo está em ordem, paz e harmonia, e Jesus conversa calmamente com Adão e Eva, no paradisíaco Éden, onde o céu está límpido e os animais convivem em paz; no segundo, a luminosidade do céu é ainda a mesma, mas a ordem já começa a sofrer abalos, e tudo descamba para uma orgia caótica, com animais agitados e furiosos, e tudo está um parque de luxúria e pecado, cometendo os Pecados Capitais, como num parque de diversões insano; no terceiro, na psicose, caos total, com tudo envolto em sombra, em destruição, em danos e má sorte, e a perda de controle atinge o ápice, num quadro no qual pouco resta da vida em civilização. De modo que, se colocarmos o tomo ordeiro ao lado do tomo caótico, vemos um contraste imenso, abismal e claro, de modo que o tomo semicaótico da neurose faz um perfeito intermédio entre saúde e doença. Nas metas de Mara temos uma progressão cronológica, em estágios distintos, e o Id, Ego e Superego convivem, indo do inconsciente ao consciente e ao pensamento moral e ético, nas três instâncias psíquicas. Se suprimirmos a meta intermediária, vemos um contraste entre a casa de palha e a casa de tijolos. A fria razão da ordem impõe-se em sua importância, libertando o Ego e domando o Id. As metas são a mesma meta, só que em situações diferentes. São os macacos que não falam, nem escutam e nem ouvem, na Santíssima Trindade, que funciona como um sistema. É uma artista explorando variações, muitas variações, numa prova de criatividade. E por que “meta”? Porque o objetivo do artista é criar e trazer algo novo, na meta de conquistar o mundo e ser reconhecido, o suficiente para chamar a atenção do MAM. Aqui, as metas, com contraste entre claro e escuro, são claras, definidas e simples, e mesmo a mais tortuosa desordem aqui tem princípio geométrico retangular, numa espécie de “tortuosidade reta”.

Acima, Meta I. Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Vemos relativa fragilidade, mas relativa estabilidade também. É como uma frágil janela em uma casa que está sendo demolida ou simplesmente numa casa que está sofrendo desgaste e erosão pela passagem do tempo. É uma espécie de Mondrian orgânico, no qual as linhas até são retas, mas estão dispostas de forma não reta. São como um jogo de dominó, no qual a queda de apenas uma peça já é o suficiente para causar comoção e estrago, numa reação em cadeia. Há uma espécie de cola branca que gruda os longos retângulos uns nos outros, numa brecha, uma lacuna, uma interrupção, e as peças não estão totalmente coladas, dando uma vazão, como um rio que divide duas cidades, estabelecendo referência e respeito – daqui para cá, é meu terreno; de cá para lá, é o teu. É como um Estreito de Gibraltar, aberto, diz a lenda, pela força do semideus Hércules, como um Canal de Suez, artificialidade que une oceanos, poupando navios de darem enormes voltas continentais. É como o Mar Vermelho, que divide África de Ásia, nos cruéis e autoritários egípcios que morreram afogados ao tentarem recapturar os escravos judeus. São brechas pelas quais a artista observa o mundo, estabelecendo fechaduras e espiando, no prazer de voyeur. É uma criança brincando de Lego, construindo, destruindo, e construindo novamente, como em castelos de areia, fadados para a danação, para a natural destruição. O artista quer cristalizar este momento, como numa tecla Pause-Still do controle remoto. São teclas de controle remoto, que traduzem a vontade, o desejo de onde o artista quer chegar, de como o artista quer ser lembrado pelas pessoas. É um trabalho de formiguinha, que constrói lentamente o formigueiro e, quando este é destruído, a formiguinha, pacientemente, retoma o labor, numa desistindo, persistente. São gavetas de um armário caótico, desestruturado, ruindo e dançando a dança da morte. Havia uma cola colando as peças, mas a cola mostrou-se ineficiente e fraca, fazendo com que tudo possa ruir, desaparecendo. São folhas de papel, de santinhos de campanha eleitoral, levados pelo vento, desaparecendo da memória, abarrotando as ruas de sujeira eleitoral, no eleitor brasileiro, que tem o desejo de colocar os políticos no lixo, desaprovando amplamente um presidente. Esses delgados retângulos negros estão ao sabor do vento, deliciando-se em sua passividade, deixando tudo a cargo do tempo e do vento, entregando-se num confortável berço. Os quadrados estão competindo uns com os outros, esbarrando em atrito uns com os outros, lutando para obter a atenção do espectador. Os quadrados não são exatamente equiláteros, pois têm ângulos não retos, desejando um dia, talvez um dia, ser redondos, sem arestas, como na deliciosa água uterina, reconfortante e quentinha, acolhedora. O espectador pode quase soprar esta xilo, fazendo com que tudo fique bagunçado. Mara bagunça para depois arrumar, e arruma para depois bagunçar, na ânsia do ser humano: se estou na cidade, quero ir ao campo; se estou no campo, quero ir para a cidade. O ser humano nunca está satisfeito, e Mara retrata essa inerente insatisfação: se o cabelo está crespo, quero alisar; se está liso, quero encrespar. É uma caixa de tesouros recém-aberta, revelando nada dentro, absolutamente nada, zombando dos ambiciosos e egoístas, entregando a estes nada mais do que ar. O tesouro do artista não pertence à vida mundana e material, mas a um mundo onde há desapego. Um marceneiro quer vir aqui e realocar as peças, fabricando um armário funcional e sano, dando dignidade a este armário caótico. Os quadrados são ocos, revelando o fundo, transmitindo a felicidade de quem se esvazia de vaidades e arrogâncias. E as frestinhas até revelam-se eficientes, respirando. É um jogo-da-velha vazio, sem jogo, sem público, sem competidores, esperando para ser preenchido pela percepção do espectador. São como paralelepípedos indispostos, carregados pelo impiedoso fluxo de carros em uma rua movimentada, como eram certa vez absolutamente todas as ruas de Caxias do Sul, num quadro de nostalgia, de vontade em se manter em uma saudosa época, num passado perfeito que, na verdade, nunca foi tão perfeito assim. Falta aqui uma boa cola, um link, uma “matéria escura” que mantém o cosmos unido de modo invisível, do modo como o artista busca pelo invisível, pelo não palpável. A escada em caracol do NAVI desdobra-se como uma cadeia de DNA, o qual, decodificado, é despido de mistérios, rendendo-se à ordem de linhas retas, à fria razão.

Acima, Meta II. Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Aqui, quase perfeição e quase estabilidade, numa Mara quase arquiteta. São os quarteirões de uma cidade não tão apolínea, não tão perfeita, numa fragilidade que faz as estruturas balançar ao vento, anunciando uma chuva, uma mudança de tempo, um próximo passo em um processo infinito – permanente transformação. É um jogo de xadrez preguiçoso, querendo render-se à fluidez. Aqui, como em Meta I, há tênues lacunas entre os longos retângulos, como elegante cigarro, o qual, em certa época, era sinônimo de sofisticação e charme. São as estruturas de um prédio não muito firme, mas relativamente resistente, em comparação às duas metas restantes de Mara. É uma cidade fluidia, confortável, na qual as arestas, cedo ou tarde, serão aparadas. É uma promessa de uma cidade melhor, não tão dura e difícil. Parece que Mara consideraria monótona uma estrutura perfeitinha; consideraria óbvio e pouco interessante, visto que qualquer artista quer se diferenciar e não ser uma máquina de fotocópia. São folhas de papel recém-saídas da máquina de fabricação, ou da impressora, abastecendo a vida em sociedade, a qual, cada vez mais, pensa em poupar recursos florestais, inserindo-se na Era da Informática. É como uma tradicional rolha de cortiça de vinhos, a qual vem sendo substituída pela prática tampa rosca. A tortuosidade aqui desafia os ângulos perfeitamente retos das margens da base branca. São caixas empilhadas, numa pilha que não se revela tão resistente assim, começando a ameaçar a ruir, mas não ainda ruindo. São tijolos de vidro, que possibilitam a passagem da luz, iluminando ambientes que seriam escuros com tijolos tradicionais. Assim, a luz, ao ter entrada permitida, exerce sua função, do modo como o artista se encontra existencialmente e passa a produzir para o mundo. É um quebracabeça linear, óbvio, mas ainda assim misterioso, pois não sabemos qual peça deve vir depois da outra, formando um conjunto que é um esqueleto, esperando para ser preenchido por concreto, aço e vidro; por carne e sangue. É uma base essencial, um projeto, algo esperando para ser realizado e consolidado, como Elizabeth I consolidou a religião de seu próprio pai. Há o formato de duas cruzes, uma em cima da outra, em uma cidade tão católica como Caxias do Sul. Apesar do artista não ser obrigatoriamente religioso, esse mesmo artista pode ser influenciado, fazendo seu próprio registro de fé, mesmo não tendo intenções diretas ou conscientes. É como um sorriso branco, com linhas definidas que separam o dentes, estabelecendo limites entre vizinhos, na vida em sociedade, embasada pelo respeito, do modo como o artista trabalha para obter tal respeito, obtendo assim um papel na vida em sociedade. É uma folha de papel setorizada, compartimentada, com um dia após o outro; um ano após o outro. São gavetas que organizam a mente, colocando cada objeto psíquico em seu devido lugar. A Arte é uma forma de organização mental, de saúde. A Arte é essencial na vida em sociedade. São teclas de um teclado de computador, onde cada dígito tem uma função para que um texto seja redigido e transmitido. São cubos de gelo que vêm refrescar em um dia cálido, congeladinhos no portagelo do freezer. Cada cubo em seu lugar, numa harmonia. São várias bandeirinhas brancas clamando por paz em uma guerra, agitadas em uma manhã alva e pacífica. Esta é a peça mais estável das três metas de Mara analisadas aqui neste blog. Esses retângulos negros de Mara trazem um pouquinho de Mondrian, só que sem cores e sem linhas extremamente retas. É uma criança brincando de empilhar cubinhos de madeira, e, aqui, a estrutura ainda não caiu, mas está a um passo de ruir – bastam apenas alguns cubinhos mais, numa criança brincando para aprender os limites, as bordas divisórias da vida e sociedade. É um painel digital pronto para expressar letras e números, servindo ao mundo na tarefa de transmitir, como um médium espírita, que é um “telefonista”. São as folhas em branco esperando por preenchimento na sessão mediúnica, entregando cartas a mães angustiadas, que perderam os filhos.

Acima, Meta III. Xilogravura de 0,60m x 0,70m do ano de 2016. Mara se dá ao luxo de fazer uma bagunça. Aqui, não há comprometimento ordeiro. Há carnaval e diversão, até confusão, com muitos foliões em êxtase. É uma suástica bagunçada, desmoralizada, na vitória da Vida sobre a Morte, rechaçando as ditaduras opressoras. Parece que, a princípio, esses “palitos” estavam organizados, mas, depois, alguém veio e os soprou, trazendo um formidável caos. É a casa de palha do porquinho sendo destruída, como eu já disse nesta mesma postagem. É uma aranha negra morta, esmagada, exterminada por um aracnofóbico aterrorizado. A aranha ainda luta pela vida, mas há pouco a se fazer. O animal luta pela vida até o fim, com esperança de superar os ferimentos mortais. É como um texto embaralhado, com as letras avançando umas contra as outras, compondo um texto enigmático, sem sentido, sem significado, pois a clareza, aqui, está debilitada. É um canto de uma marcenaria com tábuas jogadas aleatoriamente, retalhos inúteis, lixo. Mas a madeira ainda pode ser aproveitada para fazer fogo e uma lareira. É um menino que, jogando bola, atingiu uma janela e a estilhaçou, como numa memória de minha infância, na qual cortei minha própria palma da mão em um vidro de janela. Mara sabe que o registro preto & branco é charmoso, e traz aqui ausência das cores do arcoíris. São setas caóticas, apontando para todos os lados, confundindo o motorista, do mesmo que, ao entrar em um teatro para ver uma peça, uma moça do elenco disse: “Estou aqui para desinformar e não para informar”. O poder da Arte reside nesse desinteresse – quanto menos Ego, melhor. Os palitos negros de Mara formam uma variedade de polígonos, sem padrão repetitivo. Parece que a artista estava jogando aquele jogo dos palitinhos, pegou um punhado deles e os jogou na tela. Não parece que Mara trabalhou; parece que ela se divertiu. As xilogravuras fazem com que o artista teste inúmeras possibilidades, sempre explorando terrenos ainda não trilhados. É como se um monstro tivesse chegado na cidade e tivesse destruído-a, no caos depois de um terremoto, ou um tsunami, ou um furação etc. A vida em sociedade está afetada, e há muito trabalho pela frente para a reconstrução de lares e vidas. Como disse Barbra em um concerto: “Será que sempre precisamos de uma catástrofe para lembrarmos de que somos apenas pessoas que precisam de pessoas?”. É como uma linguagem obscura, nunca antes vista no mundo, emitindo recados ainda misteriosos. Como eu já disse, Mara não é muito fã de formas arredondadas, e, se há alguma onda tortuosa, esta mesma onda é composta de linhas retas em posições oblíquas. É uma casa bagunçada, que precisa de uma boa organização, como na casa caótica de um acumulador compulsivo, com pilhas e pilhas de objetos que não do chão ao teto, mal podendo a pessoa circular por dentro da casa, num lar insalubre e confuso, muito distante de Tao, que é limpeza. Nessas três metas de Mara, há a bagunça inicial, o andamento intermediário da faxina e, por fim, o fim da limpeza, num lar com pouquíssima sujeira remanescente, na quase perfeição da vida. São como as janelas do NAVI, inundando de luz o trabalho do artista. É um labirinto confuso, sem centro, num enigma existencial: onde estou? É como um chão riscado pela incessante passagem de pessoas caminhando sobre ele, nos vestígios de um longo tempo de uso. É um ninho de minhocas retas, ou fios de espaguete retos, colocados na panela com água quente, amolecendo após, rendendo-se à água fervente. São as estruturas remanescentes de uma casa arrasada por um tufão, trazendo desolação. É uma cidade que não foi planejada por um urbanista, com ruelas intrincadas de cidadelas medievais, cujas vias foram se formando ao longo dos séculos, tornando-se confusas para um turista, que não conhece a cidade. São degraus desordenados, numa escada a qual não parece levar a algum lugar. Vemos nessas três metas uma evolução, uma passagem de tempo, um crescimento, num artista que muda e cresce a cada criação deste mesmo.

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