quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Iberê e o Guaíba




Na saudosa Porto Alegre, há um dos principais prédios da cidade, a Fundação Iberê Camargo, cujo nome homenageia este grande artista plástico que foi IC (1914 – 1994). O prédio é de um talento arquitetônico primoroso, com uma vista ímpar para o Lago Guaíba, com direito a uma charmosa cafeteria, na vocação portoalegrense em relação a cafeterias “portenhas”, num pôr-do-sol que é cartão postal da cidade. Além do vasto acervo do próprio Iberê, a casa oferece outras mostras, abrilhantando essa Porto Alegre que tanto valoriza a Cultura. Já visitei a Fundação várias vezes, e fica sempre na boca um gostinho de “quero mais”. Iberê foi amigo íntimo do célebre mestre Tatata Pimentel, até usando este como modelo para pintar. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas. Inclusive, meu professor Tatata deu-me aulas de semiótica na PUCRS em 1996.

Acima, Ciclista, óleo sobre tela de 1988. Parece que IC previu a implantação de ciclovias na cidade. O ciclista segue despreocupado e tranquilo, com linhas ondulantes que dão movimento aqui. Há basicamente azul-marinho e branco, mas o branco aqui está discreto e comedido, mas empenhando um papel essencial, pois, já ouvi dizer, não existe papel pequeno – existe ator pequeno. Há pedaços em que o artista misturou azul com branco, revelando um tom intermediário, num bom gosto cromático. Os olhos do ciclista estão bem atentos, esbugalhados, vigilantes, e sua boca aberta transmite a ideia de prazer e bem estar com a atividade física. IC nunca se contenta com traços definidos e certos, mas com uma dualidade de traços, trazendo a certeza da incerteza, em pinceladas hesitantes, numa influência do Impressionismo, no qual borrões incertos dão uma noção nítida em contradição, libertando a Arte da função retratista. IC não é um retratista. As pernas do ciclista pedalam candidamente, com calma para curtir as ruas da cidade. Os tons mais severos de azul escuro trazem a sobriedade, e o ciclista, apesar de estar apreciando o mundo à sua volta, está atento, com a noção de responsabilidade, sabendo que precisa guiar a bike com zelo ou, senão, poderá se acidentar e se machucar, quiçá morrer. O ciclista aqui é um adulto. Suas costas estão curvas, calejadas pela atividade ciclística. Ele está um pouco cansado, como um artista cansado com o mundo à sua volta, pois apesar de haver Filosofia, esta não muda o mundo, e este é uma esfera imutável. As grandes rodas da bici são como dois grandes olhos, sempre em movimento, sempre em mutação, num filósofo que cresce em meio a um mundo que não muda. Há aqui discretas pinceladas de outros tons, como tons de um marrom avermelhado e amarelado, talvez na paixão pelo já citado crepúsculo portoalegrense à beira do Guaíba. Se Iberê amou POA, esta retribuiu todo esse amor, homenageando o artista. Os vigorosos braços do ciclista estão firmes e conscientes da necessidade de segurança, num artista em controle de sua própria mente, sabendo por onde pedala, e o guidão é o controle sobre a vida, sobre o destino. Vemos um Iberê em controle de si mesmo, e a bicicleta está domada como um cavalo manso, obediente, num artista disciplinado, rumando pela avenida da vida, com olhos muito atentos, olhando para os próximos passos, sempre pedalando e trilhando. O corpo está relaxado, e aqui podemos observar um autorretrato, uma selfie, como se diz hoje em dia. O artista coloca em sua obra uma espécie de “impressão digital”, doando-se à Arte, revelando-se uma mente, aliando-se a outra mente brilhante que foi a de Tatata – nada mais natural do que dois excepcionais tornarem-se amigos. Colocando esta obra de cabeça para baixo, vemos na totalidade desta tela um vulto de rosto, com as rodas sendo os olhos e o restante sendo um rosto, numa expressão perplexa, vigilante, surpresa com o fato de a vida ser tão inesgotável. As linhas ondulantes são o vento passando, levando embora o que não é essencial, limpando a vida do ciclista. As mesmas linhas são também as águas do Guaíba, sempre fluindo, banhando uma cidade que se ergueu por essas águas. Iberê pedala tranquilamente, curtindo a manhã de um belo sábado. Apesar de suas costas terem um aspecto cansado, suas pernas pedalam pelo tempo, e podemos até ouvir o barulhinho de bicicleta sendo pedalada. Pedalar é como trilhar a vida, havendo aqui uma metalinguagem: pedalante falando de pedalante. O ciclista tem uma magreza elegante, queimando calorias. Os pedais estão confusos, indiscerníveis, misturando aos pés do ciclista e formando um só organismo, do modo como o guiador mistura-se com o equipamento, acostumando-se perfeitamente à atividade, num artista que se misturou com suas próprias telas.


Acima, Fantasmagoria III, óleo sobre tela de 1987. O título anuncia três fantasmas. Os três convivem pacificamente. Dois estão de frente e o terceiro está de lado. Temos um predomínio de azul metálico, quase cinza, na dureza de um mundo materialista e industrial, numa existência que se depara com tanta vicissitude. Os fantasmas têm rostos de caveira, vazios, mortos e corroídos. No fantasma da extrema esquerda, vemos uma mulher, com alguns fios de cabelo moreno, e vemos um seio lindo mais abaixo, num minucioso trabalho de Iberê, revelando uma forma monumental, provando o talento do mestre. O seio é perfeito, moldado entre luz e sombra, como uma pirâmide na aurora ou crepúsculo, revelando relevo. Ela parece usar uma capa de plástico transparente, revelando a nudez. Seus olhos estão um pouco tristes, caidinhos, talvez pela obra de alguma paixão malcorrespondida. Seus braços estão flexionados, talvez para ajeitar a roupa. Seu corpo é esguio e suas pernas são ossudas e frágeis, ameaçando quebrar a qualquer momento, mas sabendo sustentar o corpo. Já, o fantasma do meio está em pose com os braços atrás da cabeça, explicitamente posando para Iberê. Os ágeis traços em seus olhos mostram com clareza dois olhos negros que olham para o lado, talvez para o fantasma da esquerda, numa dependência afetiva que traz sofrimento, pois a fantasma da esquerda não nota a presença do companheiro ao lado. O fantasma do centro está um tanto agoniado, sentindo o peso da paixão. Seu corpo é forte, e no centro dele vemos um grande botão redondo, talvez de um traje. O botão é central, primordial, fruto de uma vida centrada, pés no chão. O botão está praticamente no centro da tela. Mais abaixo, há uma forma que lembra um pênis flácido, de tamanho descomunal, remetendo à fertilidade de uma mente laboriosa. O pênis é como uma seta que aponta para o chão, para a base, para a referência, num princípio fálico de direção, num artista que dirige a sua própria obra. Aqui, não há desejo sexual, pois não há ereção. E o botão ao centro é como o centro de uma galáxia ou de um sistema solar, no qual a estrela arrasta tudo e todos consigo por uma força gravitacional inevitável e fortíssima, num artista centrado no trabalho, na felicidade de quem se encontra na vida. O pênis traz o tom masculino para o quadro, fazendo par com o seio da fantasma da esquerda. O seio repleto de leite é a amamentação, a alimentação, no cuidado materno que IC tem com o próprio labor, nutrindo este, dedicando-se numa lenta gestação e, por fim, dando à luz, na catarse do artista. Já, o fantasma da extrema direita está menos explícito, mais reservado, num artista reservado e discreto na vida real. O fantasma da direita tem um corpo esguio, e está na posição de lado, ao contrário dos fantasmas restantes, que estão de frente para Iberê. O fantasma da direita está com um braço flexionado como se estivesse pedindo uma esmola, com um olho negro, escuro, sem esperança, nunca podendo ver, numa cegueira da alma, num pessimismo existencial. O da direita quer chamar a atenção dos outros fantasmas, talvez pedindo por uma participação maior na obra. A reserva do da direita está sedenta por um papel protagonista. Num quadro geral, são como uma linha de produtos da mesma marca, uma família. Aqui, os traços brancos são essenciais para vermos as formas, num IC sempre com traços incertos e trêmulos, rechaçando a definição gráfica. Há traços delgados de um azul mais vivo, mas esperançoso, como num longínquo Céu de Brigadeiro, numa promessa distante de vida, ressuscitando os fantasmas e dando-lhes uma nova vida. Vemos uma brilhante combinação entre esses tons de azul, num IC possuidor de bom gosto, na busca catársica por limpeza e beleza essencial, mínima. São três cabeças pensantes, que funcionam em grupo, em frações distintas de um mesmo self, de um mesmo ser humano. Os traços brancos são como fios de barbante, errantes, indecisos, procurando tecer algo visível e palpável. É como se córregos de alvejante tivesses cruzado a tela, alvejando veias, tendo papel imprescindível no traço retrativo. No fantasma da direita vemos um mamilo e algumas marcas de osso de costela, numa desnutrição a qual o artista busca evitar, fugindo do bloqueio mental, na inatividade artística. O mamilo masculino conversa com o mamilo feminino, juntando Yin e Yang e formando um corpo só, assexuado, puro, espiritual. E o pênis serve como régua medidora, regulamentando e impondo ordem a um Iberê cheio de traços afoitos e indecisos, deliciosamente indisciplinados. Do modo como o botão une as duas partes de um mesmo casaco, agasalhando e protegendo o artista, o qual tem uma missão de atormentar e libertar o mundo. Vemos um Iberê sonhador. E por que “fantasmas”? São como espíritos desencarnados, livres da dureza material, da luta pelo pão de cada dia. Mas esses espíritos estão se dando conta de que a vida continua e de que o pão continua a ser, de alguma forma, essencial.

Acima, No Vento e na Terra, óleo sobre tela de 1991. Voltamos a ver aqui a paixão e o fascínio de IC por bicicletas, no prazer de pedalar e passear pela vida. Há um contraste entre o céu alvo e a terra bordô. É um dia nublado de incertezas, numa existência envolta em mistério. A bicicleta está estática, sem uso, sem movimento. Suas linhas negras quase se fundem com a terra escura, uma terra pessimista, sombria, que pouco consola. É uma terra árida, onde nada prospera. O menino, em tom discreto de azul, está caído, quiçá morto, talvez tendo caído da bicicleta e machucado-se gravemente. O menino está em primeiro plano, e seus olhos fechados sugerem aquilo que é inconsciente, aquilo que não é trazido à luz do dia. O título da tela sugere que há vento na cena, e talvez a linha tortuosa do horizonte possa ilustrar o vento, num ar que talvez não mais exista nos pulmões do menino. O menino está carente e abandonado, catarseando um sentimento de solidão e desamparo. O menino é como um feto, crescendo lentamente em um útero, como no feto no final de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, numa Humanidade que tem tanto por vir, tanto por fazer, tanto por descobrir, que a Humanidade é ultrajovem – é um feto que sequer nasceu. O menino é o cansaço e o retorno à terra, às raízes, rendendo-se à implacável Lei da Gravidade. É um dia frio, sem muito reconforto. O céu é quase cromaticamente puro, com discretas nuvens coadjuvantes, quase apagadas. Ao fundo no horizonte, vemos uma forma rubra que parece ser uma fogueira ardendo, talvez numa festa de São João. A fogueira arde majestosamente, trazendo um pouco de consolo a uma cena tão desamparadora. A fogueira tem o formato de uma mão com o dedo indicador apontando para cima, para o céu, para a origem divina de todos nós, para Tao, que é o Pai (ou a Mãe) Celestial. O menino sonha, e ainda não despertou para fazer esses mesmos sonhos tornarem-se reais. É um Iberê sonhador, inspirado, querendo ser diferente, marcante, pois não há algo pior para um artista do que ser mais um numa multidão de massa indistinta. As mãos do menino parecem acariciar a terra, declarando amor por esta. É um Iberê que ama Porto Alegre e, por consequência, recebe a retribuição desse amor. A bicicleta está misteriosamente em pé mesmo não estando sendo montada por um ciclista. A bici é o equilíbrio, a sensatez, a harmonia de uma mente que precisa produzir para se sentir bem, para se sentir socialmente contribuinte. O menino está nu como um feto. E por que nu? A ausência de roupas é a crueza autêntica, a verdade dura, sem maquiagens. Do lado esquerdo da fogueira, uma cruz, talvez a que matou Jesus, na dor do sacrifício, na dor inevitável da vida. Jesus ali não está mais crucificado, e está morto e enterrado, ressuscitando após. Do lado direito da fogueira, uma forma que parece ser um estádio, com a grande boca aberta voltada para cima, recebendo, congregando torcedores ao redor de um só time, unindo, harmonizando. Parece ser também uma montanha russa, vertiginosa, excitante, do modo como um artista feliz é aquele que encontra diversão em fazer o que faz. Os altos e baixos da montanha russa são as águas da existência, as quais estão hora por cima, hora por baixo, como na água uterina, que abriga e nutre o bebê, como na deliciosa sensação de liquidiscência da pessoa que tem o que o Espiritismo chama de “Experiência Extracorporal”. É o retorno ao útero, à origem, à Imaculada Conceição. O menino está em paz, relaxado, confortável sobre a terra que o recebe de braços abertos. O menino foge da aridez do terreno, e este não é muito acolhedor, passando a ideia de frio intenso, sem abrigo, sem agasalho, sem consolo, num dia de inverno. O menino tem a esperança de ver e viver uma vida melhor, caindo inconsciente e entregando-se à gravidade. Apesar de um céu claro, a tela tem uma predominância sombria, e a bicicleta está esperando para ser montada novamente, esperando o menino acordar do sono. O mundo espera pelo menino, o qual ainda não está pronto, estando ainda muito imaturo, muito “verde”, ou, nesse caso, azul. As mãos e os pés do menino são frágeis, com as de um feto, como numa fotografia de ultrassom, a qual “invade” o útero e traz ao mundo imagens de quem sequer nasceu. Alguns traços em branco no rosto do menino entram em harmonia com o céu branco, assinalando o vínculo indestrutível que a Humanidade tem com o que Cristo chama de “Reino dos Céus”, na lei do eterno retorno, como no final de 2001..., quando o homem velho torna-se feto novamente e retorna ao seu chão, à sua referência divina e inabalável. O menino está retornando, depois de uma viagem cansativa. Os pés do menino estão cansados, clamando por uma pausa. É como na vinheta de abertura da série cômica Mr. Bean, na qual Bean é parido por uma luz que vem do céu. O menino foi parido, e ainda precisa de muitos cuidados. É como se o menino tivesse sentido o impacto da queda, no trauma do bebê que é “expulso” do útero que o fez e o acolheu, num acolhimento incondicional. O menino precisa tomar um banho e ir para o berço na Maternidade. Ele sequer abriu os olhos. E tem sono, muito sono.

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