Recentemente recebi de uma pessoa de minha família um
presente – um monumental livro chamado Gênesis,
sobre o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, num exemplar de mais de 500
páginas da famosa editora Taschen, conhecida por seus livros de luxo, os quais
frequentemente tornam-se sofisticados objetos de decoração, como em uma mesa de
centro em uma sala de estar de revista. Sebastião, que nasceu em uma fazenda no
Brasil, fez com que o ambiente rural fizesse com que este homem desenvolvesse
uma relação de amor com a natureza, sendo o fotógrafo muito social e ecologicamente
engajado, numa carreira profissional iniciada em 1973 em Paris, tendo
posteriormente trabalhado em três diferentes agências de fotografia: Sygma,
Gamma e Magnum Photos. Em 1994, Salgado e a esposa Lélia Wanick Salgado criam a
Amazonas Imagens, a qual trata exclusivamente do trabalho do fotógrafo, numa
firma por Lélia dirigida, pessoa que se formou arquiteta e urbanista em Paris e
começou a trabalhar com Fotografia nos anos 1970, tendo, na década seguinte,
envolvido-se na organização de livros de Fotografia e mostras, a maior parte de
Sebastião. Lélia é editora de Gênesis,
numa sólida parceria profissional, do mesmo modo como a esposa do cantor
Caetano Velloso agencia a carreira deste; como o já falecido marido da cantora
Celine Dion produzia os trabalhos da diva. Já ouvi dizer que casamento é uma
sociedade – tem que ter amor (yin), mas, é claro, tem que ter cabeça também
(yang), e, numa união, cada um faz sua parte do trabalho. O modelo clássico de
divisão de trabalho é: um cuida da casa e o outro sai para ganhar dinheiro. Uma
observação: nos parágrafos a seguir, o nome “Salgado” refere-se apenas ao
fotógrafo.
Gênesis, que é o
resultado de oito anos de viagens pelo mundo, traz todo o poder e a
simplicidade elegante da foto em preto e branco, projeto precedido por uma
série de trabalhos de SS em forma de livros: em 1986, dois trabalhos – Outras Américas e Sahel: L’Homme em Détresse; em 1993, Trabalhadores, que mostra o modo de trabalho ao redor do mundo; em
1997, Terra; e, em 2000, dois
trabalhos – Êxodos, num retrato das
ondas imigratórias impulsionadas pela fome, pela degradação ambiental e pelo
crescimento demográfico, e Retratos de
Crianças do Êxodo, que deu continuidade ao anterior. Gênesis chama-se assim porque são cliques de regiões intocadas do
planeta, as quais estão como eram no homônimo capítulo bíblico, e as paisagens
naturais e a vida humana nestas são a estrela deste trabalho. Um dos cliques
mais famosos de Salgado é o da mão de uma iguana marinha, na contracapa de Gênesis, clique este feito em Galápagos,
Equador, no ano de 2004. A
mão tem uma perturbadora semelhança com uma mão humana, e faz o expectador
refletir sobre as raízes ancestrais da vida na Terra. O brilho das escamas dá
destaque ao conjunto, numa estrutura que lembra a pele humana vista de perto. A
foto é emoldurada por margens em bordô, pois uma pitada de cor ajuda a “vender”
a foto em tons de cinza. Nos dedos da iguana, refletimos sobre o fato de que os
seres vivos são dedos de uma única mão ancestral. É como se fosse a mão de
Deus, numa mensagem misteriosa. Já, na capa do livro, há um clique feito no
Alasca, EUA, num sinuoso vale que recebe um rio, numa estrutura aquática que
lembra a forma de uma artéria do corpo humano, com uma poderosa tempestade
acontecendo ao fundo, em meio a montanhas rochosas. É a vida que pulsa. Salgado
tem o bom gosto e dom de captar imagens que impactam, seja no contraste entre
claro e escuro, seja na quebra deste mesmo contraste.
O Instituto Terra, fundado pelo casal, esforça-se em mostrar
a beleza da natureza global, visando a preservação ambiental. Gênesis é o feliz fruto de 32 viagens de
um Salgado que locomoveu-se das mais diversas formas: a pé, por navios, canoas
e aviões, enfrentando muito calor e muito frio, por vezes arriscando-se em
situações perigosas, com o intuito de gerar uma gama de registros. É um
trabalho de formiguinha, feito aos poucos, até a obtenção de um grande
formigueiro. Diversos animais, indígenas, incursões pelo seio de fechadas
florestas virgens, povos remotos, vulcões, desertos, rios, geleiras. Sebastião
revela-se um aventureiro, um Indiana Jones da Fotografia, numa dedicação
exemplar ao ofício, esforçando-se para entregar um trabalho apurado e digno de
edições de luxo com as da Taschen.
Gênesis tem cinco
capítulos:
1) Sul do planeta
Antártica, o mais gelado continente da Terra. Majestosas geleiras.
Elefantes marinhos. Grandes mamíferos aquáticos. Águas geladas onde a vida
insiste em persistir.
Sebastião suporta o frio insuportável. Montanhas rochosas
emergem do gelo. Fotos tiradas no verão, quando o polo é banhado pela luz
solar. Se o verão é gélido, imagine o escuro inverno. O fotógrafo arrisca-se a
chegar perto de animais que podem ferir e até matar. Embarcado em navio,
Salgado desbrava o mar salgado em busca de aparições da fauna na superfície.
Fartas colônias de albatrozes lutando pela vida. Como pode um ambiente tão
inóspito abrigar tanta vida? Geleiras que ameaçam desabar a qualquer momento.
Orlas onde nem o mais corajoso surfista poderia surfar. Salgado clica uma
fileira de pinguins que caminham sobre o gelo, numa ilusória ordem em uma
natureza tão selvagem. Céus profundos trazem nuvens que combinam com o gelo –
uma pena as fotos serem em preto e branco, pois não podemos ver a cor do céu.
Salgado obtém ângulos incríveis, prova de seu talento, em um profissional
calejado por décadas de serviço. Um raro registro de algas marinhas polares. Cada
albatroz fêmea em seu ninho, numa vizinhança de “comadres”. Com alma de
biólogo, Salgado flagra uma precipitação de neve. Um deslumbrante registro de
muitos, muitos pinguins, uma população deles. A cor branca do gelo cai como uma
luva no estilo preto e branco de Sebastião.
2) Santuários
Cinco ilhas isoladas. GALÁPAGOS: A famosa pata da iguana já
citada nesta crônica. Um pé de lava-cactos cresce em meio a correntes de lava
recentes. Rochas esculpidas pela ação de séculos de vento, abrigando leões
marinhos. Um formoso clique de uma séria tartaruga gigante da ilha, num bicho
que parece olhar para a câmera, como se soubesse que seria clicado. TRIBOS DE
IRIAN JAYA, INDONÉSIA: Homens de tribos tradicionais cortam uma árvore,
provavelmente para construir algo, lembrando muito os índios da Amazônia, praticamente
nus. Um nativo carrega um javali que servirá de jantar, numa tribo que se
alimenta de quase tudo. Uma nativa caminha pela mata com o seios nus. Salgado
faz um profundo estudo do modo de vida nativo, retratando a luta pela vida. Uma
curiosa construção – a tribo korowai vive em casas em cima de árvores. Um
nativo espicha-se pelo tronco de uma árvore. Uma mulher nativa é clicada com
vários enfeites em volta do pescoço, provavelmente feitos de dentes de animais.
MADAGASCAR: Mata extremamente densa. Cavernas e fissuras em calcário esculpem
formas geológicas ricas. Árvores “brigam” com rochas pelo espaço. Uma pequena
ilha brota de águas rasas e plácidas. Fauna de pequenos mamíferos. Morcegos,
com suas asas translúcidas, voam pela lente do fotógrafo. PLANALTOS DE
PAPUA-NOVA GUINÉ: Nativos tocam flautas feitas de bambu. Salgado clica exóticos
enfeites de nativos, provavelmente em cerimônias ritualísticas. Os nativos
enfeitam-se como se soubessem que fariam parte de um livro de fotografias. Um
nativo com uma máscara ritualística e com os dedos enfeitados com garras de
bambu. OS MENTAWAI, INDONÉSIA: Salgado mostra o cotidiano da tribo mentawai,
como culinária, confecção de objetos, pesca e brincadeiras de crianças. É
incrível a intimidade do fotógrafo com a mata fechada.
3) África
Enfrentando o calor extremo e outras vicissitudes, Salgado
leva-nos para conhecer tribos e etnias do continente negro. Um lago em uma
cratera vulcânica abrigando vida na Ruanda. Planícies vastas na Zâmbia. Uma nativa
em Botsuana protege-se da chuva cobrindo-se com folhas e capim do mato, olhando
para a lente do fotógrafo com olhos de negror profundo. No mesmo país, uma
tribo reúne-se em círculo em uma dança rítmica na qual os xamãs evocam
espíritos. Nativos controlam a técnica do fogo e o fazem em meio a gravetos. Lagos
de água salgada na Líbia em meio ao deserto. Uma cena de tirar o fôlego: dunas na
Argélia fazem um desenho pós-moderno em linhas simples e elegantes. Um homem
solitário observa a vastidão desértica. Há uma certa sensualidade na nudez do
ermo, com suas dunas curvilíneas. No Sul do Sudão, um grande rebanho de gado é
administrado. Uma bela nativa revela seus seios nus, espreguiçando-se. Fartas manadas
de búfalos. Elefantes. Um leopardo, ora matando sua presa, ora bebendo solitariamente
em um rio à noite. Várias espécies de símios. Leões repousando à sombra de uma
árvore. Nas páginas finais, enormes adornos em disco que desfiguram os lábios
de mulheres nativas na Etiópia, enfeite considerado fino e belo pela própria tribo.
4) Terras do Norte
Como o nome do capítulo diz, trata-se de lugares
setentrionais do planeta. A foto inicial é usada como a capa de Gênesis. Um vulcão inativo na Rússia,
onde montanhas nevadas tocam as nuvens no céu. Vales cheios de veio de água no
Alasca, EUA. A vida animal revela-se em meio a morsas, ursos e bisões. Vastas
formações rochosas canadenses, como “plantações de pedras”. No estado americano
do Arizona, o Grand Canyon mostra-se na grandiosidade rochosa que inspirou o
desenho animado do Papa Léguas e Coiote. Um “exército” de renas russas, no
mesmo lugar onde o povo indígena nenets, que se veste com peles, montam suas
casas, também forradas de peles, em meio ao gelo siberiano – imagina-se como
deve ser o auge do inverno por lá. Caravanas de trenós de nenets cruzam o alvo
gelo, um contraste muito bem captado por Salgado, também fotografando manadas
numerosas de renas que, ao longe, por avião, parecem pequenas formigas indo em
direção ao formigueiro. Na ilustração
desta postagem, um clique siberiano mostrando um homem carregando a refeição do
dia.
5) Amazônia e Pantanal
A sensualidade curvilínea dos veios amazônicos, formando
ilhas florestais, com ilhas sumindo e surgindo ao longo dos anos, num percurso
de água que se perde com a vastidão florestal. A densidade extrema da Amazônia.
Rochedos na fronteira da floresta tropical com a Venezuela, com um rochedo de
quase 3 mil metro de altura, sendo a maior montanha do Brasil. Já, na
Venezuela, formações rochosas esculpidas pela erosão milenar. Índias enfeitadas
com cocares tomando banho de cachoeira. Índios pescando para fazer o dia. Jacarés do
Pantanal colocando as próprias cabeças acima do nível da água, e uma onça
pintada que não se arrisca a entrar n’água. Um índio da tribo amazonense Zo’é,
com o lábio inferior perfurado por um adorno, tem a companhia de um pequeno
símio, além de ter aves e tartarugas como pets. O dia a dia de uma tribo, como
a preparação de comida. Os índios posam para as fotos. Um caçador, caçando
macacos com arco e flecha, trepa em uma árvore para abater o animal. Uma foto
assombrosa: um rio com inúmeros olhos de jacarés no Pantanal brilhando frios na
noite, com um corajoso fotógrafo para obter o registro. Exóticas plantas
carnívoras. Uma perigosa ariranha. A “sala de estar” indígena forrada de folhas
de palmeiras, com alguns indígenas repousando em redes. Um dia especial
em uma tribo: os nativos enfeitam-se para rituais, uma prova de que o Homem é
um ser ritualístico muito antes do surgimento da escrita. Num grupo de índios
homens, somente os xamãs podem fumar. Um bebê mama no peito da mãe índia.
Salgado obtém um efeito com as escamas “blindadas” de um jacaré. A água do Rio
Amazonas reflete o céu como um espelho. Outro ritual mostra índios venezuelanos
paramentados com trajes de apuro que celebram a colheita anual. Um pássaro no
Pantanal abocanha um peixe.
Tudo isso é uma das (várias) provas de que Salgado Filho,
digo, Sebastião Salgado é um profissional de extrema paciência, um homem que
ama o planeta e que é engajado na preservação deste. Gênesis é a coroação de uma carreira respeitável, em uma pessoa
que, provavelmente, não aposentar-se-á, pois, quando alguém ama o que faz, as
reinvenções são inevitáveis. Dono de uma marca registrada em seu estilo,
Sebastião é um dos brasileiros mais bem sucedidos no mundo, um verdadeiro
cidadão deste. Não há lugar na Terra que não possa ser clicado por Sebastião e,
por este ter morado na França, deve saber como o francês e o europeu em geral
são fascinados por lugares exóticos, como o são pelo Brasil tropical. Gênesis é o filho de pais atenciosos. O
peso físico desse livro faz metáfora com o peso do talento de Sebastião, numa
irônica metalinguagem – peso falando de peso.
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