quarta-feira, 6 de julho de 2016

Coração de Estudante



            Aprendi que não se deve jogar fora a oportunidade e o privilégio de se ter curso superior, pois, dá gosto, no preenchimento de um formulário, dizer que se tem curso superior completo, sem falar na emoção do momento da cerimônia de formatura. No ano de 1996, há vinte anos, ingressei em Publicidade e Propaganda – chamado também de PP – na PUCRS, na renomada FAMECOS – Faculdade dos Meios de Comunicação Social –, quando esse curso sequer existia em Caxias do Sul. Meu primeiro ano foi tranquilo, e passei em todas as cadeiras. Mas ocorreu uma turbulência em minha vida no ano de 1997, e fui fazendo cada vez menos cadeiras, até ser reprovado em algumas. Uma colega minha, que se tornou uma grande amiga, disse-me de forma inesquecível para eu não descuidar da faculdade. Só que descuidei e larguei o curso. Optei por trabalhar em uma agência de propaganda em Porto Alegre, na qual entrei em uma fase workaholic, e eu trabalhei feito um burro de carga, virando noites produzindo e, no fim das contas, obtendo resultados pífios, numa agência que só durou dez anos e acabou fechando as portas – aprendi que a pessoa tem que respeitar a si mesma e não laborar feito louca, pois a vida não é só ralação. Larguei a agência e, por não mais ter uma razão concreta para morar em Porto Alegre, mudei-me em retorno para Caxias do Sul no ano de 2002, de volta às raízes. Poucos anos depois, ingressei no curso de PP na Universidade de Caxias do Sul, a UCS, e recomecei do zero. Foi um banho de renovação. Graças aos Céus, concluí o curso nos recomendados quatro anos, e há algo engraçado: nenhum dos colegas que foram aprovados comigo no vestibular formaram-se comigo. E, como é bem comum acontecer, muitos ficaram descontentes com o curso e largaram-no no meio do processo. Formar-se na faculdade é bom porque é a coroação de todo um longo e árduo processo iniciado na pré-escola, com muitas e muitas manhãs acordando para ir ao colégio no Ensino Fundamental e Médio. Sem falar que é muito privilegiado aquele que encontra estímulo e prazer em estudar um curso superior. Tive um colega da faculdade caxiense que largou o curso, e achei uma pena – o cara é superfã de uma cantora pop, e eu acho que, se ele fizesse uma monografia sobre a artista, sairia-se muito bem. Outro que foi colega meu em Caxias é gremista “doente” e fez uma mono sobre o Grêmio, a qual ficou excelente, pois o aluno tem que falar sobre aquilo que gosta.

            Falando em monografia, fiz a minha na UCS sobre a Festa Nacional da Uva de Caxias do Sul. Antes disso, na cadeira de Introdução à Pesquisa, a qual pode ser considerada um anteprojeto de monografia, tive um professor do qual não gostei de imediato, e quase larguei a cadeira. Então fiz um apanhado histórico sobre a festa e tirei nota dez. Inclusive, o professor, que era também vereador em sua cidade de residência, levou o arquivo digital da minha apresentação do trabalho para mostrar na cidade dele, a qual tem também uma importante festividade local. Esse professor disse que eu fui o único aluno na turma a se esforçar muito. No fim do processo, vi no professor um amigo e aliado. E esta foi a semente para a mono. Só que esta foi mais complicada, pois minha professora, que foi também minha monitora na confecção da monografia, exigiu horrores de mim, e cheguei a ter um atrito com ela. O fato é que ela quis controlar o meu trabalho, e ela não notou que a estrela da monografia é o estudante e não o monitor – este tem que ter um papel sutil e coadjuvante. O problema é que essa professora se achou coautora, e o atrito foi inevitável, pois sou muito complicado em relação a interferências externas ao meu trabalho. Ainda por cima, mesmo tendo me esforçado tanto na mono, não tirei nota dez, pois a banca avaliadora decidiu que pequei no aspecto técnico, como nitidez das fotos e figuras e outros errinhos técnicos. Não guardo rancor dessa professora, mas acho que ela aprendeu a lição de que a mono é do aluno, e de ninguém mais. Como diz o Taoismo, “Se em um relacionamento ainda persiste um pouco de amargura, não há algo que você possa fazer”. Da minha parte, espero que ela seja feliz na carreira docente. Adeus, amiga!

O professor Tatata Pimentel da PUC era uma figura, tendo já falecido. Homem extremamente culto e uma lenda nos meios de comunicação gaúchos, tinha uma personalidade marcante e, no primeiro dia de aula, ele chegou e disse aos alunos que tinha mais cultura do que qualquer um dos estudantes ali sentados. E era verdade. Quando ele respeitava a inteligência de algum aluno e este falava na aula, o professor dizia aos demais: “Calem a boca – a elite vai falar”. Quando uma atriz gaúcha estreou no programa de comédia televisivo da Rede Globo Sai de Baixo, no domingo, saiu na capa do jornal Zero Hora, no dia seguinte, a foto da atriz no palco do programa e os dizeres: “Irreverência Gaúcha”. Tatata levou o jornal para a aula, leu e disse: “Isto aqui é um jornalzinho provinciano que, só porque é uma gaúcha que está no Sai de Baixo, é a maior atriz do mundo”. Tatata cansou da carreira docente e voltou a trabalhar nos meios de comunicação social, lançando um programa televisivo noturno muito bem recebido, sendo um homem respeitadíssimo. Coberto de razão, Pimentel usava o termo “macacos” para definir pessoas ignorantes e preconceituosas, do mesmo modo que Elis Regina chamou os militares de “gorilas”. E, como Elis, o professor fumava o tempo todo, e em plena aula. Anos antes, foi aluno de um amigo meu e este narrou que teve que dar umas “cortadas” no Tatata, se não este iria atrapalhar a aula! Posteriormente, este mesmo amigo meu, que também foi meu (ótimo) professor na PUCRS, encontrou-se, por acaso, com Tatata em Paris. O apimentado Pimentel era dono de uma vasta e exclusiva biblioteca, e a família dele, após seu falecimento, doou os livros para a Biblioteca da PUC. Jamais encontrarei outro Tatata em minha vida. E até já fui entrevistado no programa de TV dele: ele chegou perto de mim e disse ao cinegrafista: “Luz nele!”. Então Tatata perguntou-me o que eu tinha visto recentemente no teatro, e eu disse: “Masterclass, com Marília Pêra”. Masterclasses eram as aulas de Tatata, de inteligência ácida, uma estrela a seu próprio modo. Na ilustração desta postagem, o mestre, o espírito. Certa vez, numa sessão de autógrafos da edição da revista Playboy da qual a atriz Isabel Fillardis foi capa, Tatata estava no evento, olhou para a fila de autógrafos de Isabel e disse: “Olha só esse bando de punheteiros!”.

Certa vez, fiz um trabalho em grupo com um colega extremamente talentoso na UCS, um artista de mão cheia. O rapaz desenhava esplendidamente bem, e produzia histórias em quadrinhos que nada deixariam a dever para uma revistinha da Disney ou da Turma da Mônica, ou para um desenho animado do canal Cartoon Network. Que pena que eu não pude ajudar o colega, indicando-o para alguém que pudesse dar-lhe oportunidade profissional. Estou convencido de que o talento é um dom divino, e que aquele nasce com a pessoa. Por exemplo, eu não tenho o dom do canto, e este rapaz brilhante desenhista, por exemplo, não tinha o dom da redação. É a vida!

Um inesquecível professor na PUC fazia o seguinte: pegava o giz e desenhava 3 letras U pequenas, uma letra B seguida de uma seta descendente e, na base da seta, 3 letras U grandes. Então dizia: “Us pequeno B desce Us grande”, ou seja, os pequenos obedecem os grandes. Claro. Em propaganda, na hora de se criar algo, é capital a busca por referências. Por exemplo, tenho que fazer um design de rótulo de vinho, logo, vou para a internet partir em busca do que está sendo feito hoje ao redor do mundo a nível de rótulos de vinho, buscando inspiração para criar. Isso é humildade. Se eu quero ser grande, tenho que, antes de tudo, admitir que sou pequeno. E também era um sutil recado do professor, dizendo que, ali na sala de aula, quem mandava era ele!

Fui reprovado em Física e Matemática no terceiro ano do Ensino Médio, ou seja, tenho pavor dos números. Para minha (desagradável) surpresa, deparei-me na UCS com a cadeira (obrigatória) de Estatística Mercadológica, no bloco das Ciências Exatas da universidade. Foi duro, mas passei. Tive que me desprender da “numerofobia” e aceitar as lições. O trabalho de fim de semestre foi ótimo, pois os alunos uniram-se para fazer uma pesquisa de opinião entre os alunos de PP da universidade. Uma das perguntas da pesquisa foi: “Qual cadeira mais gostaste de ter cursado?”, e, em primeiro lugar, ficou Laboratório de Criatividade e, em terceiro, Mídia Impressa. Por que estou dizendo isso? Porque essas cadeiras foram lecionadas por um excelente professor, realmente excepcional. No primeiro momento em que me deparei com ele, confesso que me assustei. Mas, depois, vi nele um amigo e um professor que se esforçava para exigir o melhor de cada aluno. A cadeira de Laboratório foi um aprendizado intenso. Era, realmente, uma cadeira única e atípica, um oásis para quem gosta de criar textos e imagens. Uma oportunidade de ouro. Valeu cada centavo da mensalidade.

Outra professora que me estimulou foi uma antropóloga na UCS na cadeira de Realidade Brasileira. Ela me sugeriu que eu fizesse um trabalho sobre as Ligas Camponesas, as quais eu desconhecia. As Ligas foram uma espécie de precursoras do Movimento dos Sem-Terra. Foi um estudo que me mostrou como é complicada a situação da terra no Brasil. Essa mesma professora mostrou à turma os documentários Boca de Lixo e Cabra Marcado para Morrer, ambos de Eduardo Coutinho. O primeiro era um chocante retrato de famílias paupérrimas que moravam em um depósito de lixo no Rio de Janeiro; o segundo, sobre as Ligas, e mostrou Coutinho, por causa do Regime Militar Brasileiro, tendo que suspender o projeto e só retomá-lo com a Redemocratização do Brasil, numa metalinguagem, pois Cabra... é um documentário falando de outro documentário.

Na PUC, fiquei muito envolvido com o Jornal Varal, que consistia em folhas com artigos redigidos pelos alunos dependuradas nas paredes dos corredores com fios de barbante e prendedores de roupa. Eu me meti em polêmicas acaloradas, e quase apanhei, hehehe!!! Ainda na FAMECOS, escrevi para o Zoom Zine, um jornal que circulava pela faculdade criado por um querido amigo meu, o qual era respeitado pelo professor Tatata, que incluía este meu amigo no rol de quem o mestre considerava elite intelectual. Na mesma faculdade, acontecia anualmente o Set Universitário, que é um festival de comunicação, com workshops, palestras e concursos de criação – tirei segundo lugar na categoria Videoclipe, com um clipe que fiz baseado em uma música de Laura Pausini. Ainda no Set, organizei uma palestra com os profissionais que fizeram a história do Jornal do Almoço, da RBSTV, quando o programa completava 26 anos de trajetória. Foi uma experiência gratificante, e muitas estrelas dos meios de comunicação social gaúchos deram o ar da graça, como Paulo Sant’Ana, Tânia Carvalho e Cristina Ranzolin. Adorei. Porto Alegre é demais!

Um professor na UCS pediu que cada aluno escolhesse um produto e traduzisse o “DNA” do mesmo. O que significa? Quer dizer descobrir aquilo que os conceitos de comunicação e marketing do produto querem dizer em sua essência, em sua abstração perceptível, porém, implícita. Por exemplo, o DNA da Coca-Cola é “juventude”, e esse aspecto permeia tudo o que é criado em relação ao refrigerante. Eu escolhi falar sobre o sabão em pó Omo, e descobri que o DNA deste é o da “supermãe”, ou seja, aquela mãe zelosa que deixa tudo impecável, uma verdadeira rainha do lar, tanto que o termo “Omo” surgiu das iniciais do termo em inglês Old Mother Owl, ou seja, Velha Mãe Coruja. Como exemplos ilustrativos, mostrei a personagem Supermãe do cartunista Ziraldo e também mostrei a Dona Florinda do seriado Chaves, uma mãe que defende o filho até debaixo d’água.

Outra professora que amei ter tido na UCS foi na cadeira de Sociologia. Era perto da Páscoa, e ela exigiu que analisássemos anúncios publicitários para a data, e tínhamos que fazer uma avaliação de aspectos implícitos nos anúncios. Por exemplo, em um anúncio de ovo de chocolate, a professora mostrou-nos a ideologia capitalista conservadora, na qual a mulher é submetida às regras preconceituosas da sociedade patriarcal. Essa professora abriu-me os olhos de uma maneira a qual eu nunca tinha experimentado antes, e ela disse: “O que estamos fazendo aqui nesta sala de aula? Estamos produzindo mão de obra qualificada para o mercado capitalista”. Falando nisso, outra cadeira que adorei ter feito foi a de Economia, com os três icônicos pensadores: Marx (com o estado totalitário), Smith (com o estado ausente e a economia autorregulamentada) e Keynnes (com a economia autorregulamentada mas com um estado mínimo). Que bom encontrar professores que nos desafiam!

Na cadeira de Estágio, na UCS, o fiz na empresa Veronese Produtos Químicos, fundada no ano de 1911 pelo meu bisavô Luiz Veronese. Foi uma boa experiência, pois vi na prática o conceito de “business to business”, ou seja, empresas que fornecem insumos para outras empresas. O meu bisavô foi um industrial muito respeitado, e tinha um dom brilhante no que se tratava de Química. Hoje, a empresa tem muitos clientes, inclusive vitivinicultores, pois a Veronese fornece produtos para vinificação.

No primeiro dia de aula de PP na PUC, uma ótima professora, que era também publicitária, chegou e disse: “Propaganda não é arte; é técnica de venda”. E isso me marcou, pois é muito comum que entrem no curso de PP pessoas com sensibilidade artística. Na UCS, tive colegas que eram artistas, e eles estavam bem insatisfeitos com o curso. A verdade é que o publicitário tem que ter alma de vendedor, pois sai da faculdade formado como técnico de venda e de mercado, não como artista. Esse pragmatismo, apesar de duro, é inevitável, pois o trabalho em Propaganda está sob a constante pressão de vender produtos e serviços. A faculdade dá o básico, mas há uma outra importante parte do aprendizado que só pode ser adquirida no mercado de trabalho, o qual é composto por agências de Propaganda e por setores de Marketing de empresas.

Por fim, falando do trote, este é uma bestial agressão desnecessária. Na PUC, entrei em sério atrito com uma menina que quis me desrespeitar no trote que ela aplicava em mim, e acho que ela até hoje me guarda rancores – repetindo: “Se em um relacionamento ainda persiste um pouco de amargura, não há algo que você possa fazer”. Foi uma experiência degradante para mim. No semestre seguinte, apliquei o trote nos meus calouros, e não é algo de que me orgulho. Sinto vergonha. Peço desculpas a esses calouros. Na UCS, fui novamente vítima de trote, e fui humilhado e reduzido a um cachorro de rua. Nota zero para quem aplica o trote, o qual sequer um animal deve sofrer. E quando chegou a minha vez de aplicar o trote em meus calouros da UCS, o que fiz? Nada. O trote é infantil, arrogante e maléfico, pois contradiz a proposta de uma instituição de ensino, proposta a qual é educar, aperfeiçoar e fazer crescer. O trote beira a sociopatia, pois é de um sadismo inenarrável. Apenas um sociopata dissimulado, ardiloso, manipulador e parasita satisfaz-se aplicando o trote. O trote é bagaceiro, uma baixaria, uma sacanagem. É desprezível. Um pedaço de nhaca, o qual deve ser descartado na descarga da privada. O trote deveria ser enquadrado como infração e ameaça à cidadania. Duvido que haja o trote em cursos como o de Psicologia, por exemplo. O trote é de uma insensibilidade animalesca. Estupidez total. Uó. E existe conivência por parte das instituições de ensino que permitem o trote, o qual nada mais é do que bullying, pois aproveita-se maliciosamente do fato de que o calouro está tímido e desenturmado. Um estupro. Sério assédio moral. O pior de tudo, é que, quando sofri trote na UCS, um colega meu, um respeitado empresário da cidade, também sofreu a humilhação. Que deselegância é o trote, o qual é uma falta de sentido, como um campo de concentração. Apologia do mau gosto. Quem aplica o trote está buscando pretexto para ser grosso. O destino do trote é o Umbral, ou seja, infelicidade e privação.

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