quarta-feira, 13 de julho de 2016

O Rugido do Leão da Vinci


Certa vez, em um Natal com minha família em Porto Alegre, houve amigo secreto. Quem me tirou foi o sogro da minha prima, já falecido, um homem extremamente digno e culto, daquelas pessoas que dá gosto sentar e conversar. Este senhor disse-me que não é exagero dizer que Leonardo da Vinci foi um dos maiores gênios da História da Humanidade, ao lado de Einstein, por exemplo. O sogro de minha prima presenteou-me com um livro sobre o mestre renascentista, da Editora Paisagem – Distribuidora de Livros SA. O autor é Frank Zöllner. Guardo cuidadosamente o livro e resolvi fazer do volume uma fonte de insumos para a presente crônica – faço meu “dever de casa”. Falando em dever, cursei o Ensino Médio no Colégio Leonardo da Vinci, em Caxias do Sul, e este originou a abertura do colégio homônimo de Porto Alegre – o de Caxias fechou há vários anos, e não sei se o portoalegrense permanece funcionando. O colégio levou este nome porque a proposta era estimular no aluno todas as potencialidades deste, visto que o gênio renascentista atuou em várias áreas, e não só nas Artes Plásticas. Leonardo teve uma vida de muito trabalho, um homem que se colocou, de várias formas, a serviço do mundo.

Sucesso mundial arrasador foi o livro de Dan Brown, o vertiginoso romance policial O Código da Vinci, o qual originou um filme não tão bom com Tom Hanks. A incrível criatividade de Brown traz um Leonardo cheio de mistérios e significados implícitos, secretos, herméticos. Uma pessoa que respeito, uma doutora em Comunicação, falou sobre o O Código... e os outros dois livros de Brown que sucederam o bestseller, e disse que o primeiro é primoroso, o segundo é mediano e o terceiro é uma piada, provavelmente porque os dois últimos foram encomendados a toque de caixa, e não frutos da imaginação genuína do autor. Não me canso de dizer que o sucesso é um amante infiel. Resumindo a “ópera”, o sucesso de vendas de Brown fala sobre o relacionamento amoroso entre Jesus e Maria Madalena, e de como o casal produziu prole. Isso implicou em uma discretíssima família descendente do sangue de Cristo, e este segredo sempre foi abafado por uma milenar ordem obscura da Igreja. Leonardo DiCaprio, digo, da Vinci entra na trama com suas obras fornecendo pistas para o mistério, em um ritmo frenético que prende o leitor. Tudo é desvendado no final, com uma mulher que descobre pertencer à linhagem de Jesus. A delicadeza de Brown não deixou a Igreja Católica Apostólica Romana ofendida ou chocada, pois o livro foi aceito como mera (e capciosa) ficção, e assim permanecerá. Um banquete literário, com um Brown esbanjando inteligência emocional.

Leonardo da Vinci viveu à frente de seu próprio tempo, e foi pioneiro em registros anatômicos de cadáveres que dissecava. Também concebeu projetos de maquinários, no ancestral sonho do Homem de voar. O Renascimento foi sui generis, pois fundiu cultura sacra com pagã. O resultado foi um episódio único na Humanidade Ocidental, e Leonardo mantém-se neste palco de grandes mestres. Tenho uma lembrança muito marcante: quando eu tinha cerca de doze anos de idade, descobri, na biblioteca de minha própria casa, uma série de volumes intitulada “Gênios da Pintura”. Aquilo foi um banho na minha mente, e Leonardo, é claro, constava nos registros. Pude apreciar pinturas e mais pinturas, e o Renascimento permanece como minha época preferida do passado, com suas cores e formas claras de se observar. A Renascença foi uma vogue, uma onda avassaladora, uma poderosa moda da época, um tsumani no qual da Vinci surfou como ninguém.

Reza a lenda que Leonardo desenvolveu uma relação de amor com o próprio quadro da Monalisa, e que o artista nunca quis ver-se longe da obra. Monalisa permanece um delicioso mistério até hoje. Inúmeras interpretações já foram feitas, e o quadro, de proporções modestas de tamanho, permanece desafiando o mundo com seu sorriso icônico. É o poder da arte, cuja função é inspirar. Essa indecifravilidade inspirou Brown, numa divertida interpretação semiótica, algo que é lecionado na faculdade de Comunicação Social. O que está implícito? O que pode se desprender de ingenuidade e decifrar o que não é óbvio? O talento de Leo reverbera até hoje, e provavelmente o fará por muito tempo, quiçá para sempre. Vale lembrar que a Monalisa foi furtada do Louvre no ano de 1913 e, obviamente, recuperada, sendo a pintura mais famosa do mundo. A Monalisa foi encomendada a Leonardo por Francesco del Giocondo, pois era um retrato de sua esposa, daí o fato da Monalisa também chamar-se Gioconda. Ao acabar a pintura, Leonardo jamais a entregou, tal o apego.

Quem sabe um dia visito o Museu do Louvre de Paris, não só para ver a Monalisa, como também para apreciar outros trabalhos de da Vinci e, é claro, um universo de outros artistas. Certamente, nem se eu viver o resto de minha vida no Louvre eu poderei apreender tudo que lá está exposto. Os museus são cornucópias de cultura, e a vocação da arte é ser eterna; é ser oxigênio inesgotável.

1452, Vinci, Itália. Leonardo veio do nada e conquistou o mundo; nasceu filho ilegítimo, que nasceu da união entre o pai e uma humilde camponesa. Depois, o mesmo pai casou-se com uma mulher menos pobre. Mesmo assim, Leonardo morou com o pai e em sua infância já dava sinais de talento em desenho. Aos 17 anos de idade, ingressa pertinentemente, em Florença, no atelier de um respeitado mestre, o qual ficou impressionado com desenhos feitos pelo jovem Leonardo. A Era das Navegações estava começando, e a Europa respirava ares de renovação cultural. Aos 20 anos, Leonardo conquista destaque entre os artistas da cidade, tornando-se profissional independente. Um ano depois, data o primeiro desenho registrado de da Vinci, o Desenho da Paisagem do Vale do Arno. Aos 24 anos, trabalhando ainda no atelier inicial, Leonardo sofre acusação anônima de práticas sexuais não aceitas na época, mas nada foi provado. Em 1478, Leonardo recebe sua primeira encomenda, uma pintura de altar em Florença, mas o artista não acabou a obra. Até 1480, muitas obras célebres foram pintadas, como A Anunciação. Inspirado por mestres flamencos, Leonardo recebe, um ano depois, uma nova encomenda – A Adoração dos Magos. Volúvel – será que bipolar? –, Leo também não acaba o trabalho, e assim o fez com vários outros trabalhos. Em 1482, Leonardo enche-se de Florença e muda-se para Milão, onde trabalha como engenheiro, escultor e pintor, prestando serviços ao governador local. Um ano depois, Leo aceita a encomenda de A Virgem dos Rochedos, e conta com auxílio dos irmãos Ambrogio e Evangelista de Predis.

No atelier da Catedral de Milão, entre 1487 e 88, Leonardo brilha como arquiteto consultor. A partir de 1489, o mestre faz a estátua equestre de Francesco Sforza, tornado-se artista da corte, desfrutando de privilégios em sua posição. Entre 1495 e 98, da Vinci dedica-se ao A Última Ceia no refeitório de um mosteiro milanês. Um ano depois, o seu mecenas Ludovico Sforza é militarmente derrotado pelas tropas francesas, e Leonardo passa a trabalhar para o rei da França, indo o artista para Veneza. Em 1500, quando o Brasil era ainda uma terra selvagem, Leonardo volta para Florença e entra em uma fase produtiva, indo morar com os monges Servitas. Em 1502, no interior da Itália, Leo torna-se arquiteto e engenheiro militar do líder mercenário César Bórgia. Um ano depois, em Florença, LdV convive com seu admirador, o pintor Rafael, e faz uma de suas mais monumentais obras, o A Batalha de Anghiari. Em 1504 morre o pai de Leonardo, e Batalha... fica inacabado. Em 1506, Leonardo vai a Milão a serviço do governador francês na cidade, Charles d’Amboise. Um ano depois, em Milão, Leonardo pinta uma nova versão de A Virgem dos Rochedos para uma irmandade franciscana.

Até 1512, Leonardo fica em Milão, já gozando de status de superestrela do Renascimento, fazendo também estudos anatômicos. Um ano depois, os franceses são expulsos de Milão, e Leonardo vai para Roma como protegido do mecenas Júlio de Médici, irmão do Papa Leão X. Na corte papal, Leonardo aprofunda pesquisas científicas. Com a morte do mecenas em 1516, Leonardo aceita o convite do rei francês Francisco I para ser o pintor da corte. Em 1517, o artista recebe a visita do cardeal Luigi d’Aragona. Dois anos depois, morre da Vinci, na França, em funeral regido pelo rei. Entre 1520 e 30, Francesco Melzi, aluno de Leonardo, organiza importantes manuscritos do mestre; outro aluno, Giacomo Salai, herdou grande parte das pinturas do artista e, com a morte deste discípulo, muitas obras foram adquiridas pelo rei francês e estão até hoje em exposição no Louvre. Ouvi dizer que Paris é uma cidade maravilhosa.

Em A Madona do Cravo, de 1475 – Leonardo fez na vida vários quadros da Madona –, a Virgem Maria veste nobres vestes, e uma joia em formato oval adorna-lhe o peito, como um ovo fértil da Imaculada Conceição. Um Jesus pequenino e bem gordinho e saudável, completamente nu, brinca com uma flor dada pela mãe – o cravo vermelho é símbolo da Paixão de Cristo –, a qual ostenta cabelos de fino brilho dourado. Ao fundo, emolduradas por arcos greco-romanos, paisagens rochosas, recorrentes nas obras de Leonardo, pois este fez muitos estudos geológicos. Em O Batismo de Cristo, acabado no mesmo ano, caem dos Céus as mãos de Deus, com o brilho do Espírito Santo, que abençoam o batismo de um Jesus de corpo atlético, com musculatura tensa. Dois anjos assistem à cena, e parecem falar um com o outro. A água é perfeitamente límpida. São João Batista ostenta um crucifixo que é a extensão de um pau fálico e retilíneo, representando o pensamento racional, como as setas agressivas emanadas pelo Espírito Santo. As roupas de Batista são vaporosas e finas. Também finalizado naquele ano, A Anunciação traz novamente Maria como uma nobre senhora de vestes majestosas, a qual lê a Bíblia em um aparador de clara estética pagã clássica. O anjo anunciante curva-se perante a Virgem e, com um gesto, fala de como virá ao mundo o Salvador. A iluminação é no limiar de um início de manhã, e árvores escuras ao fundo contrastam com o céu da aurora, simbolizando Maria como a Vênus matutina, uma Ísis pura em sua beleza luminosa. Apesar disso, este quadro tem autoria controversa, apesar de ter elementos prováveis de da Vinci.

Em Madona Litta, de 1490, a Virgem amamenta o Menino Jesus, e as janelas em forma de arcos e a paisagem rochosa fazem-se presentes novamente. O bebê parece olhar para o expectador, e toma o leite materno como uma gostosa caixinha de leite condensado. Maria joga um olhar zeloso ao filho, e o cabelo da mãe é de um brilho cetinoso. Em Leda e o Cisne, de 1510, bebezinhos saídos de ovos são símbolo da fertilidade feminina, e um grande cisne abraça com suas asas Leda, a qual tem o corpo completamente nu e voluptuoso, sinuoso como em uma dança sensual. É como se Leda fosse a esposa do cisne, cujo pescoço longo corteja a moça, no mito grego de que Zeus disfarçava-se de criaturas selvagens para seduzir mulheres. Logo, os bebês são fruto da união entre Zeus e Leda. Em ambos os quadros São João Batista, que datam de 1516, o elemento fálico faz-se presente como santo apontando o dedo indicador para o alto ou para o lado, em um corpo com musculatura suave, não tensa. Batista é um polido rapaz imberbe, e ostenta um sorriso sutil, nem masculino, nem feminino. A luminosidade é lembra um pouco o estilo barroco, com relativo contraste entre claro e escuro.

Quando o adolescente Leonardo ingressou no mercado de arte florentino, a concorrência era ampla, pois havia muitos bons artistas atuando, como, por exemplo, Sandro Botticelli, outro ícone da Renascença, e Domenico Ghirlandaio, mestre de Michelangelo, sendo este último uma geração mais jovem do que da Vinci. Como hoje, uma boa indicação era pertinente, e, nesse sentido, o pai de Leonardo agiu, com a influência do genitor, em favor do próprio filho. Reza a lenda que uma rivalidade entre Leonardo e Michelangelo firmou-se, e que aquele, em seus últimos anos de vida, sofreu uma paralisia parcial, o que o atrapalhava para desenhar, apesar do artista manter-se lúcido até o fim de seus dias, além de ser conhecido como uma pessoal jovial, sem ranços, sendo Leonardo uma pessoa com majestade a seu próprio modo.

O Renascimento foi uma janela que, aberta, revelou um mundo novo, uma dimensão metafísica onde o ser humano deu-se conta de si mesmo, depois de vários séculos de hegemonia medieval do Vaticano, o qual curvou-se aos ares de renovação. Leonardo foi um dos maiores canais que uniram os europeus nessa era.

Na ilustração desta postagem, um desenho de leão feito pelo mestre.

Nenhum comentário:

Postar um comentário