Certa vez, em
um Natal com minha família em Porto Alegre, houve
amigo secreto. Quem me tirou foi o sogro da minha prima, já falecido, um homem
extremamente digno e culto, daquelas pessoas que dá gosto sentar e conversar.
Este senhor disse-me que não é exagero dizer que Leonardo da Vinci foi um dos
maiores gênios da História da Humanidade, ao lado de Einstein, por exemplo. O
sogro de minha prima presenteou-me com um livro sobre o mestre renascentista,
da Editora Paisagem – Distribuidora de Livros SA. O autor é Frank Zöllner.
Guardo cuidadosamente o livro e resolvi fazer do volume uma fonte de insumos
para a presente crônica – faço meu “dever de casa”. Falando em dever, cursei o
Ensino Médio no Colégio Leonardo da Vinci, em Caxias do Sul, e este originou a
abertura do colégio homônimo de Porto Alegre – o de Caxias fechou há vários
anos, e não sei se o portoalegrense permanece funcionando. O colégio levou este
nome porque a proposta era estimular no aluno todas as potencialidades deste,
visto que o gênio renascentista atuou em várias áreas, e não só nas Artes
Plásticas. Leonardo teve uma vida de muito trabalho, um homem que se colocou,
de várias formas, a serviço do mundo.
Sucesso mundial arrasador foi o livro de Dan Brown, o
vertiginoso romance policial O Código da
Vinci, o qual originou um filme não tão bom com Tom Hanks. A incrível
criatividade de Brown traz um Leonardo cheio de mistérios e significados
implícitos, secretos, herméticos. Uma pessoa que respeito, uma doutora em
Comunicação, falou sobre o O Código...
e os outros dois livros de Brown que sucederam o bestseller, e disse que o
primeiro é primoroso, o segundo é mediano e o terceiro é uma piada,
provavelmente porque os dois últimos foram encomendados a toque de caixa, e não
frutos da imaginação genuína do autor. Não me canso de dizer que o sucesso é um
amante infiel. Resumindo a “ópera”, o sucesso de vendas de Brown fala sobre o
relacionamento amoroso entre Jesus e Maria Madalena, e de como o casal produziu
prole. Isso implicou em uma discretíssima família descendente do sangue de
Cristo, e este segredo sempre foi abafado por uma milenar ordem obscura da
Igreja. Leonardo DiCaprio, digo, da Vinci entra na trama com suas obras
fornecendo pistas para o mistério, em um ritmo frenético que prende o leitor.
Tudo é desvendado no final, com uma mulher que descobre pertencer à linhagem de
Jesus. A delicadeza de Brown não deixou a Igreja Católica Apostólica Romana
ofendida ou chocada, pois o livro foi aceito como mera (e capciosa) ficção, e
assim permanecerá. Um banquete literário, com um Brown esbanjando inteligência
emocional.
Leonardo da Vinci viveu à frente de seu próprio tempo, e
foi pioneiro em registros anatômicos de cadáveres que dissecava. Também
concebeu projetos de maquinários, no ancestral sonho do Homem de voar. O
Renascimento foi sui generis, pois fundiu cultura sacra com pagã. O resultado
foi um episódio único na Humanidade Ocidental, e Leonardo mantém-se neste palco
de grandes mestres. Tenho uma lembrança muito marcante: quando eu tinha cerca
de doze anos de idade, descobri, na biblioteca de minha própria casa, uma série
de volumes intitulada “Gênios da Pintura”. Aquilo foi um banho na minha mente,
e Leonardo, é claro, constava nos registros. Pude apreciar pinturas e mais pinturas,
e o Renascimento permanece como minha época preferida do passado, com suas
cores e formas claras de se observar. A Renascença foi uma vogue, uma onda
avassaladora, uma poderosa moda da época, um tsumani no qual da Vinci surfou
como ninguém.
Reza a lenda que Leonardo desenvolveu uma relação de amor com
o próprio quadro da Monalisa, e que o artista nunca quis ver-se longe da obra.
Monalisa permanece um delicioso mistério até hoje. Inúmeras interpretações já
foram feitas, e o quadro, de proporções modestas de tamanho, permanece
desafiando o mundo com seu sorriso icônico. É o poder da arte, cuja função é
inspirar. Essa indecifravilidade inspirou Brown, numa divertida interpretação
semiótica, algo que é lecionado na faculdade de Comunicação Social. O que está
implícito? O que pode se desprender de ingenuidade e decifrar o que não é
óbvio? O talento de Leo reverbera até hoje, e provavelmente o fará por muito
tempo, quiçá para sempre. Vale lembrar que a Monalisa foi furtada do Louvre no
ano de 1913 e, obviamente, recuperada, sendo a pintura mais famosa do mundo. A
Monalisa foi encomendada a Leonardo por Francesco del Giocondo, pois era um
retrato de sua esposa, daí o fato da Monalisa também chamar-se Gioconda. Ao
acabar a pintura, Leonardo jamais a entregou, tal o apego.
Quem sabe um dia visito o Museu do Louvre de Paris, não só
para ver a Monalisa, como também para apreciar outros trabalhos de da Vinci e,
é claro, um universo de outros artistas. Certamente, nem se eu viver o resto de
minha vida no Louvre eu poderei apreender tudo que lá está exposto. Os museus
são cornucópias de cultura, e a vocação da arte é ser eterna; é ser oxigênio
inesgotável.
1452, Vinci, Itália. Leonardo veio do nada e conquistou o
mundo; nasceu filho ilegítimo, que nasceu da união entre o pai e uma humilde camponesa.
Depois, o mesmo pai casou-se com uma mulher menos pobre. Mesmo assim, Leonardo
morou com o pai e em sua infância já dava sinais de talento em desenho. Aos 17 anos
de idade, ingressa pertinentemente, em Florença, no atelier de um respeitado
mestre, o qual ficou impressionado com desenhos feitos pelo jovem Leonardo. A
Era das Navegações estava começando, e a Europa respirava ares de renovação
cultural. Aos 20 anos, Leonardo conquista destaque entre os artistas da cidade,
tornando-se profissional independente. Um ano depois, data o primeiro desenho
registrado de da Vinci, o Desenho da
Paisagem do Vale do Arno. Aos 24 anos, trabalhando ainda no atelier
inicial, Leonardo sofre acusação anônima de práticas sexuais não aceitas na
época, mas nada foi provado. Em 1478, Leonardo recebe sua primeira encomenda,
uma pintura de altar em Florença, mas o artista não acabou a obra. Até 1480,
muitas obras célebres foram pintadas, como A Anunciação. Inspirado por mestres flamencos, Leonardo recebe, um ano
depois, uma nova encomenda – A Adoração dos Magos. Volúvel – será que bipolar? –, Leo também não acaba o trabalho,
e assim o fez com vários outros trabalhos. Em 1482, Leonardo enche-se de Florença
e muda-se para Milão, onde trabalha como engenheiro, escultor e pintor, prestando
serviços ao governador local. Um ano depois, Leo aceita a encomenda de A Virgem dos Rochedos, e conta com
auxílio dos irmãos Ambrogio e Evangelista de Predis.
No atelier da Catedral de Milão, entre 1487 e 88, Leonardo brilha
como arquiteto consultor. A partir de 1489, o mestre faz a estátua equestre de
Francesco Sforza, tornado-se artista da corte, desfrutando de privilégios em
sua posição. Entre 1495 e 98, da Vinci dedica-se ao A Última Ceia no refeitório de um mosteiro milanês. Um ano depois,
o seu mecenas Ludovico Sforza é militarmente derrotado pelas tropas francesas,
e Leonardo passa a trabalhar para o rei da França, indo o artista para Veneza.
Em 1500, quando o Brasil era ainda uma terra selvagem, Leonardo volta para
Florença e entra em uma fase produtiva, indo morar com os monges Servitas.
Em 1502, no interior da Itália, Leo torna-se arquiteto e engenheiro militar do
líder mercenário César Bórgia. Um ano depois, em Florença, LdV convive com seu
admirador, o pintor Rafael, e faz uma de suas mais monumentais obras, o A Batalha de Anghiari. Em 1504 morre o
pai de Leonardo, e Batalha... fica
inacabado. Em 1506, Leonardo vai a Milão a serviço do governador francês na
cidade, Charles d’Amboise. Um ano depois, em Milão, Leonardo pinta uma nova
versão de A Virgem dos Rochedos para
uma irmandade franciscana.
Até 1512, Leonardo fica em Milão, já gozando de status de
superestrela do Renascimento, fazendo também estudos anatômicos. Um ano depois,
os franceses são expulsos de Milão, e Leonardo vai para Roma como protegido do mecenas
Júlio de Médici, irmão do Papa Leão X. Na corte papal, Leonardo aprofunda
pesquisas científicas. Com a morte do mecenas em 1516, Leonardo aceita o
convite do rei francês Francisco I para ser o pintor da corte. Em 1517, o
artista recebe a visita do cardeal Luigi d’Aragona. Dois anos depois, morre da
Vinci, na França, em funeral regido pelo rei. Entre 1520 e 30, Francesco Melzi,
aluno de Leonardo, organiza importantes manuscritos do mestre; outro aluno,
Giacomo Salai, herdou grande parte das pinturas do artista e, com a morte deste
discípulo, muitas obras foram adquiridas pelo rei francês e estão até hoje em
exposição no Louvre. Ouvi dizer que Paris é uma cidade maravilhosa.
Em A Madona do Cravo, de 1475 – Leonardo fez na
vida vários quadros da Madona –, a Virgem Maria veste nobres vestes, e uma joia
em formato oval adorna-lhe o peito, como um ovo fértil da Imaculada Conceição.
Um Jesus pequenino e bem gordinho e saudável, completamente nu, brinca com uma flor
dada pela mãe – o cravo vermelho é símbolo da Paixão de Cristo –, a qual
ostenta cabelos de fino brilho dourado. Ao fundo, emolduradas por arcos
greco-romanos, paisagens rochosas, recorrentes nas obras de Leonardo, pois este
fez muitos estudos geológicos. Em
O Batismo de Cristo, acabado no mesmo ano, caem
dos Céus as mãos de Deus, com o brilho do Espírito Santo, que abençoam o
batismo de um Jesus de corpo atlético, com musculatura tensa. Dois anjos
assistem à cena, e parecem falar um com o outro. A água é perfeitamente
límpida. São João Batista ostenta um crucifixo que é a extensão de um pau
fálico e retilíneo, representando o pensamento racional, como as setas
agressivas emanadas pelo Espírito Santo. As roupas de Batista são vaporosas e
finas. Também finalizado naquele ano, A Anunciação traz novamente Maria como uma nobre senhora de vestes majestosas,
a qual lê a Bíblia em um aparador de clara estética pagã clássica. O anjo
anunciante curva-se perante a Virgem e, com um gesto, fala de como virá ao
mundo o Salvador. A iluminação é no limiar de um início de manhã, e árvores
escuras ao fundo contrastam com o céu da aurora, simbolizando Maria como a
Vênus matutina, uma Ísis pura em sua beleza luminosa. Apesar disso, este quadro
tem autoria controversa, apesar de ter elementos prováveis de da Vinci.
Em Madona Litta, de 1490, a Virgem amamenta o
Menino Jesus, e as janelas em forma de arcos e a paisagem rochosa fazem-se
presentes novamente. O bebê parece olhar para o expectador, e toma o leite materno
como uma gostosa caixinha de leite condensado. Maria joga um olhar zeloso ao
filho, e o cabelo da mãe é de um brilho cetinoso. Em Leda e o Cisne, de 1510, bebezinhos saídos de ovos são símbolo da
fertilidade feminina, e um grande cisne abraça com suas asas Leda, a qual tem o
corpo completamente nu e voluptuoso, sinuoso como em uma dança sensual. É como
se Leda fosse a esposa do cisne, cujo pescoço longo corteja a moça, no mito
grego de que Zeus disfarçava-se de criaturas selvagens para seduzir mulheres. Logo,
os bebês são fruto da união entre Zeus e Leda. Em ambos os quadros São João Batista, que datam de 1516, o
elemento fálico faz-se presente como santo apontando o dedo indicador para o
alto ou para o lado, em um corpo com musculatura suave, não tensa. Batista é um
polido rapaz imberbe, e ostenta um sorriso sutil, nem masculino, nem feminino.
A luminosidade é lembra um pouco o estilo barroco, com relativo contraste entre
claro e escuro.
Quando o adolescente Leonardo ingressou no mercado de arte
florentino, a concorrência era ampla, pois havia muitos bons artistas atuando,
como, por exemplo, Sandro Botticelli, outro ícone da Renascença, e Domenico
Ghirlandaio, mestre de Michelangelo, sendo este último uma geração mais jovem
do que da Vinci. Como hoje, uma boa indicação era pertinente, e, nesse sentido,
o pai de Leonardo agiu, com a influência do genitor, em favor do próprio filho.
Reza a lenda que uma rivalidade entre Leonardo e Michelangelo firmou-se, e que
aquele, em seus últimos anos de vida, sofreu uma paralisia parcial, o que o
atrapalhava para desenhar, apesar do artista manter-se lúcido até o fim de seus
dias, além de ser conhecido como uma pessoal jovial, sem ranços, sendo Leonardo
uma pessoa com majestade a seu próprio modo.
O Renascimento foi uma janela que, aberta, revelou um mundo
novo, uma dimensão metafísica onde o ser humano deu-se conta de si mesmo,
depois de vários séculos de hegemonia medieval do Vaticano, o qual curvou-se
aos ares de renovação. Leonardo foi um dos maiores canais que uniram os
europeus nessa era.
Na ilustração desta
postagem, um desenho de leão feito pelo mestre.
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