quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Mago (Parte3)




Falo pela terceira vez sobre o célebre artista MC Escher. As imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Casa de Escadas, litogravura de 1951. Criaturas extremamente curiosas, frutos da mente fértil de Escher – são lagartixas que parecem ser pequenos robôs. Aqui, volto a falar das fascinantes escadas do artista, num cômodo sem Lei da Gravidade, onde cada um caminha por onde bem entende. É certo dizer que Escher inspirou a abertura da telenovela da Globo, Top Model, no finzinho dos anos 80. Nela, modelos desfilam por escadas sem ponto de referência gravitacional. É nesta obra escheriana que observo algo parecido com o interior de um formigueiro, com operárias ocupadíssimas, cumprindo suas funções instintivas, nunca descansando. Como eu já disse, o divertido de Escher é observar cada quadro nas quatro posições cardeais, e assim teremos um novo quadro, na piada lendária de Escher: Onde estou e para onde vou? É uma charada. É uma dimensão nova e misteriosa, e não sabemos o que se esconde por trás deste quadro; não sabemos o que está além. São pequenos androides de nanotecnologia, numa colmeia incessante, e podemos ouvir um barulho intermitente de muitos passos, no dia a dia de uma empresa vibrante, laboriosa, movimentada. Este é o Escher trabalhador, ralador, que se dava a um trabalho muito meticuloso. Podemos ver Escher em seu atelier, e as horas passando, numa mente perfeccionista. A luz entra pelas portas em arco, numa arquitetura romana, sensual, renascentista. Cada uma das lagartixas tem dois grandes olhos negros, como duas bolas negras de sinuca, no jogo da vida, onde as possibilidades são encaradas e as chances sendo feitas. Aqui, temos uma foto tirada por uma lente grande angular, aproveitando cada espaço na cena. Cada ladrilho é o esforço de Escher, construindo sua obra passo a passo, ladrilho por ladrilho, ignorando o tempo passando, mergulhando na dimensão atemporal, onde tempo de nada serve. São máquinas automotivas; são uma indústria movimentada, onde muitos operários montam carros, num processo longo e dotado de muitas etapas. O engraçado é observar que há muita harmonia aqui, e que as lagartixas nunca entram em atrito umas com as outras, e cada passo delas é matematicamente calculado, e nunca vemos aqui colisões ou acidentes de trabalho, na perfeição da Natureza em reger a vida e o labor do dia. São como filhos de uma mesma rainha, iguais, nunca maltratando uns aos outros, num Escher sedento por harmonia e paz, tendo o artista testemunhado a II Guerra Mundial. Aqui é tudo incessante, e não temos dia nem noite, nem dias úteis ou de descanso – a Natureza não para. As lagartixas têm escamas metálicas, fortes, impenetráveis, com a capacidade de dizer “não” e de refratar possíveis perigos. São carros blindados, paranoicos sempre com a possibilidade de ser assaltados por bandidos profissionais. A harmonia é tanta que não parece provável a possibilidade de se adicionar algo a este trânsito frenético – a colmeia basta a si mesma, como numa cidadestado, autossuficiente, cercada por muralhas protetoras, como Minas Tirith em O Senhor dos Anéis, uma cidade esculpida na pedra da uma montanha. É como num convento, e cada freira aqui tem uma função importante a desempenhar: umas cuidam da horta; outras, da limpeza; outras, do almoço, e assim por diante. É um organismo absoluto em si, em freiras que só saem do convento para fazer algo que realmente não possam fazer dentro do convento. Do mesmo modo, só permitindo entrar no convento alguém que realmente tenha que estar ali dentro, talvez para fazer algum conserto ou obra de pedreiro. As lagartixas não falam umas com as outras, pois cada uma sabe o que cada uma tem a fazer, e conversas são desnecessárias, pois espantam a paz do claustro religioso, algo que me remete a um hotel que visitei em Salvador, que foi construído em um antiquíssimo monastério baiano. Aqui, a guerra é derrotada pela paz, e a produtividade vence o ócio.

Acima, Outro Mundo, xilogravura de 1947. Nos trabalhos de Escher, é a segunda vez que me deparo com esta ave metálica com cabeça humana. Por que será que a ave é reincidente? Como eu já disse, ela é a Sabedoria – a cabeça humana representa o pensamento racional; as asas, a liberdade de pensamento. Aqui, temos três enfoques para a mesma cena, e Escher explora as possibilidades de pontos de vista, como numa Democracia, onde as diferenças existem e são respeitadas. A estrutura de arcos está harmônica, bastando a si mesma, num Escher com um pé na Arquitetura. Os arcos são sensuais passagens sensoriais que revelam uma paisagem cósmica, espacial, fora da Terra. Vemos crateras em uma superfície lunar, como cicatrizes, contando uma história, uma proveniência, uma origem, como rugas em pessoas mais velhas, sinais de idade que contam uma trajetória, uma estrada, nos vários momentos de vida encarnada e desencarnada de um espírito, um ser, uma pessoa, um humano. Vemos dependurados três formas que parecem uma corneta, ou um corno de animal, como na corneta de Boromir em O Senhor dos Anéis, sendo o corno um instrumento que emite um som poderoso, forte amedrontador, num forte aviso de que algo acontece, como os boiadeiros, com seus mugidos de corneta, guiam o gado pelo campo. A corneta ruidosa é a divulgação, a Propaganda, num Escher que sabe muito bem “vender-se”, obtendo reconhecimento justo e merecido, pois se alguém quer fazer sucesso, este alguém tem que fazer algo para obtê-lo. Cada corno está suspenso por dois fios, numa suspensão que desafia a Lei da Gravidade, como veias e artérias que sustentam um corpo, nutrindo-o. As aves metálicas posam com tranquilidade, e apreciam a cena. Parece que a temperatura da cena é extremamente agradável, primaveril, num universo ideal, no qual há vida incessante e vibrante, numa dimensão agradável, quase impossível de ser imaginada. Em partes do quadro, vemos o Universo, negro em seu fundo, misterioso, vasto, infinito, um verdadeiro enigma para a Humanidade desvendar – o Ser Humano é ainda muito jovem. Galáxias jogam-se pelo Cosmos como conchinhas à beiramar, na leis eternas da Natureza, da dimensão material, onde matéria é tudo, onde riqueza é tudo – são as mazelas do Ser Humano: a ganância. As galáxias giram freneticamente como discos de vinil no tocadiscos, galáxias tão distantes que fica impossível as visitar. Vemos aqui, também, Saturno, com seus sensuais anéis, num Sistema Solar ainda enigmático para a Ciência. Apesar do som não se propagar no vácuo espacial, podemos aqui ouvir barulhos orgânicos, como tripas trabalhando na digestão do alimento, nos sons de um organismo pulsante. Bem ao centro do quadro vemos uma esfera recatada e discreta, talvez um planeta próximo, como Marte, na cor vermelha da Guerra, do sangue, da luta agressiva pela sobrevivência, num Escher incansável, guerreiro, que construiu toda uma obra venerável. As crateras são como gotas caindo sobre uma plácida superfície líquida, propagando ondas de som pelo cosmos, num dia cinzento e chuvoso. As crateras aqui são cinzentas, entrando em harmonia com o Universo tão negro e indecifrável. Este quadro é como uma caixa de interior misterioso, como se fosse uma porta para a entrada em uma dimensão mágica, que desafia a Lógica. As formas arquitetônicas são ladrilhadas, construídas pacientemente uma a uma, num artista absorvido pelo próprio trabalho. Aqui, não podemos fazer uma escolha, porque todas as opções aqui são respeitáveis. Temos que lidar com essa pluralidade e aceitar as diferenças, no sentido de que cada pessoa é o tijolo de uma sociedade. Os arcos, arredondados, são sensuais e femininos, como no corpo de uma mulher que abriga um ser, um filho. A ave aqui é este filho, e este ser contempla o universo, num Escher contemplativo, que gosta de observar a Vida. Parece uma sala de espelhos, na qual há caminhos enganosos (e divertidos). Vemos três reflexos em um só enfoque, e podemos observar a ave em três dimensões, só que em um quadro de apenas duas dimensões – este é Escher, um transcendente. Escher nos abre uma porta e nos convida a entrar em seu mundo. E estrelas salpicam a escuridão do Universo, brilhando em meio a uma escuridão tão imprevisível, sendo este negror relativo a galáxias que estão tão longe que sua luz sequer chegou até nós, na Terra. É como um triplo enfoque sobre uma mesma notícia, contando todos os lados da história, de modo que cada personagem tem seu ponto de vista sobre um mesmo filme ou livro. São três mundos em um só, numa abordagem a mais abrangente possível. Como eu já disse em outra postagem, o engraçado de Escher é observar cada quadro não só na posição original, mas também de cabeça para baixo, revelando-nos um quadro totalmente novo, numa montanha russa. A sensualidade dos arcos deixa a brisa passar e ventilar, numa mente ventilada e jovial, sempre aberta a novos conceitos. Não canso de dizer que Escher tem um pezinho na Renascença, adorando Arquitetura. É o interior de uma casa com muitos corredores, como uma intrincada teia de aranha, pronta para captar uma mosca distraída, para captar a atenção do espectador. A ventilação aqui é arrebatadora, e podemos respirar um ar muito puro de temperatura amena, do modo como é sempre agradável a temperatura das Colônias Espirituais, onde vivem felizes os espíritos desencarnados. É como uma história em quadrinhos, com os momentos abraçando uns aos outros. O título desta obra evoca uma dimensão nova e diferente, longe do dia a dia terreno.

Acima, Três Mundos, litogravura de 1955. Esta imagem me remete a uma passagem do sagrado livro do Tao. Esta passagem aconselha ao leitor ser discreto, quieto, pacífico e “invisível”, sendo um peixe que nada tranquilamente pelas águas profundas, nunca mordendo iscas nem nadando às vistas dos pescadores. Aqui, este peixe está em paz consigo mesmo, nadando sob as folhas outonais, que assinalam a passagem do tempo e a chegada de uma nova estação do ano, num Escher observando sua própria vida e observando também a passagem do tempo. Este é um peixe que deve ser delicioso de ser devorado, como faz o monstrinho Gollum de O Senhor dos Anéis, um ser que captura capciosamente o peixe e o come cru, com o bicho ainda se retorcendo em resquícios de força frente aos dentes de Gollum. Aqui, temos muita placidez e silêncio, e um sutil barulhinho d’água ilustra a cena, numa quietude profunda como o inverno. As folhas boiam e enfeitam a superfície, como barcos em águas quietas e irresistivelmente pacífica, de modo como Tao diz que a Paz é maior do que a Raiva. Este peixe aqui não tem raiva alguma, e vive em paz com o universo, com o lago, com as folhas. As folhas claras entram em contraste com a profundidade negra do lago, e esta superfície reflete a luz do dia e as árvores mais atrás, como veias irrigando um organismo, talvez o peixe mesmo. As três árvores refletidas são irmãs, crescendo uma ao lado da outra, como trigêmeos compartilhando um útero – nunca vou me esquecer quando vi, certa vez, um carrinho de bebê com trigêmeos. É o milagre da vida, da procriação, como Jesus multiplicando pães e peixes. É uma ninhada de cachorros. As árvores aqui estão completamente nuas, em pleno inverno, e as folhas, cedo ou tarde, afundarão e nutrirão o fundo das águas turvas. Não podemos aqui ver o fundo do lago, e só o peixe pode transitar pelos níveis misteriosos da profundidade. O peixe nada sensualmente, retorcendo-se e parecendo um verdadeiro modelo em uma passarela. As águas e o peixe entram em harmonia, formando um só corpo. Aqui, a natureza é um espectro só; uma esfera só. Suas escamas são visíveis, e seus olhos, acostumados com a escuridão, enxergam à noite, na lei biológica da adaptação. A imagem aqui é quase uma fotografia, num Escher hábil em produzir efeitos entre claro e escuro, com o cinza intermediário. O peixe realmente parece mover-se na cena, curvilíneo, liquidiscente, somando-se ao meio ambiente – é o modo sexy como o Universo é um só corpo; um só organismo pulsante. As folhas são de espécies diferentes, assinalando uma diversidade, um pluralismo, como os flocos de neve são diferentes uns dos outros, como impressões digitais, trazendo identidade – cada ser vivo tem um papel a desempenhar na cadeia natural. As árvores parecem ser idênticas, mas não o são – a prova disso são as folhas diferentes. Só que, nuas, aprecem ser iguais, do modo como a nudez igualada os seres, na sensualidade universal de Igualdade da Revolução Francesa. A nudez ilustra o Universo, e a nudez é absolutamente natural na Arte. O peixe nada tão placidamente que sequer emite ondas de movimento na água, sendo discretíssimo e recolhido, modesto em viver sua própria vida com simplicidade. As árvores aqui parecem também ser raízes profundas que mergulham n’água, como na Floresta Amazônica, numa interminável cadeia de nutrição botânica. O peixe, apesar de ser visível aqui, passa a maior parte do tempo no fundo, só vindo à superfície para se alimentar, sabendo do perigo de anzóis de pescadores. É a seleção natural – aquele que é esperto não sofre danos, podendo assim passar para frente a sua própria genética; aquele que se expõe ao perigo, não passa. Os troncos negros contrastam com o céu alvo, ficando firmes em seus galhos e raízes desenvolvidos. O peixe parece um desenho japonês, numa cena de quietude na qual o animal é o rei do lago, regendo este com calma e ponderamento, nunca interferindo na quietude de seus próprios súditos; nunca abusando do povo com impostos altos. O peixe sabe que sabedoria é querer paz.

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