Falo pela terceira vez sobre o célebre artista MC Escher. As
imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As
análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Casa de
Escadas, litogravura de 1951. Criaturas extremamente curiosas, frutos da
mente fértil de Escher – são lagartixas que parecem ser pequenos robôs. Aqui,
volto a falar das fascinantes escadas do artista, num cômodo sem Lei da
Gravidade, onde cada um caminha por onde bem entende. É certo dizer que Escher
inspirou a abertura da telenovela da Globo, Top Model, no finzinho dos anos 80.
Nela, modelos desfilam por escadas sem ponto de referência gravitacional. É
nesta obra escheriana que observo algo parecido com o interior de um
formigueiro, com operárias ocupadíssimas, cumprindo suas funções instintivas,
nunca descansando. Como eu já disse, o divertido de Escher é observar cada
quadro nas quatro posições cardeais, e assim teremos um novo quadro, na piada
lendária de Escher: Onde estou e para onde vou? É uma charada. É uma dimensão
nova e misteriosa, e não sabemos o que se esconde por trás deste quadro; não
sabemos o que está além. São pequenos androides de nanotecnologia, numa colmeia
incessante, e podemos ouvir um barulho intermitente de muitos passos, no dia a
dia de uma empresa vibrante, laboriosa, movimentada. Este é o Escher
trabalhador, ralador, que se dava a um trabalho muito meticuloso. Podemos ver
Escher em seu atelier, e as horas passando, numa mente perfeccionista. A luz
entra pelas portas em arco, numa arquitetura romana, sensual, renascentista.
Cada uma das lagartixas tem dois grandes olhos negros, como duas bolas negras
de sinuca, no jogo da vida, onde as possibilidades são encaradas e as chances
sendo feitas. Aqui, temos uma foto tirada por uma lente grande angular,
aproveitando cada espaço na cena. Cada ladrilho é o esforço de Escher,
construindo sua obra passo a passo, ladrilho por ladrilho, ignorando o tempo
passando, mergulhando na dimensão atemporal, onde tempo de nada serve. São máquinas
automotivas; são uma indústria movimentada, onde muitos operários montam
carros, num processo longo e dotado de muitas etapas. O engraçado é observar
que há muita harmonia aqui, e que as lagartixas nunca entram em atrito umas com
as outras, e cada passo delas é matematicamente calculado, e nunca vemos aqui
colisões ou acidentes de trabalho, na perfeição da Natureza em reger a vida e o
labor do dia. São como filhos de uma mesma rainha, iguais, nunca maltratando
uns aos outros, num Escher sedento por harmonia e paz, tendo o artista
testemunhado a II Guerra Mundial. Aqui é tudo incessante, e não temos dia nem
noite, nem dias úteis ou de descanso – a Natureza não para. As lagartixas têm
escamas metálicas, fortes, impenetráveis, com a capacidade de dizer “não” e de
refratar possíveis perigos. São carros blindados, paranoicos sempre com a
possibilidade de ser assaltados por bandidos profissionais. A harmonia é tanta
que não parece provável a possibilidade de se adicionar algo a este trânsito
frenético – a colmeia basta a si mesma, como numa cidadestado, autossuficiente,
cercada por muralhas protetoras, como Minas Tirith em O
Senhor dos Anéis,
uma cidade esculpida na pedra da uma montanha. É como num convento, e cada
freira aqui tem uma função importante a desempenhar: umas cuidam da horta;
outras, da limpeza; outras, do almoço, e assim por diante. É um organismo
absoluto em si, em freiras que só saem do convento para fazer algo que
realmente não possam fazer dentro do convento. Do mesmo modo, só permitindo entrar
no convento alguém que realmente tenha que estar ali dentro, talvez para fazer
algum conserto ou obra de pedreiro. As lagartixas não falam umas com as outras,
pois cada uma sabe o que cada uma tem a fazer, e conversas são desnecessárias,
pois espantam a paz do claustro religioso, algo que me remete a um hotel que
visitei em Salvador, que foi construído em um antiquíssimo monastério baiano.
Aqui, a guerra é derrotada pela paz, e a produtividade vence o ócio.
Acima, Outro Mundo,
xilogravura de 1947. Nos trabalhos de Escher, é a segunda vez que me deparo com
esta ave metálica com cabeça humana. Por que será que a ave é reincidente? Como
eu já disse, ela é a Sabedoria – a cabeça humana representa o pensamento
racional; as asas, a liberdade de pensamento. Aqui, temos três enfoques para a
mesma cena, e Escher explora as possibilidades de pontos de vista, como numa
Democracia, onde as diferenças existem e são respeitadas. A estrutura de arcos
está harmônica, bastando a si mesma, num Escher com um pé na Arquitetura. Os
arcos são sensuais passagens sensoriais que revelam uma paisagem cósmica,
espacial, fora da Terra. Vemos crateras em uma superfície lunar, como
cicatrizes, contando uma história, uma proveniência, uma origem, como rugas em
pessoas mais velhas, sinais de idade que contam uma trajetória, uma estrada,
nos vários momentos de vida encarnada e desencarnada de um espírito, um ser,
uma pessoa, um humano. Vemos dependurados três formas que parecem uma corneta,
ou um corno de animal, como na corneta de Boromir em O
Senhor dos Anéis,
sendo o corno um instrumento que emite um som poderoso, forte amedrontador, num
forte aviso de que algo acontece, como os boiadeiros, com seus mugidos de
corneta, guiam o gado pelo campo. A corneta ruidosa é a divulgação, a Propaganda,
num Escher que sabe muito bem “vender-se”, obtendo reconhecimento justo e
merecido, pois se alguém quer fazer sucesso, este alguém tem que fazer algo
para obtê-lo. Cada corno está suspenso por dois fios, numa suspensão que
desafia a Lei da Gravidade, como veias e artérias que sustentam um corpo,
nutrindo-o. As aves metálicas posam com tranquilidade, e apreciam a cena.
Parece que a temperatura da cena é extremamente agradável, primaveril, num
universo ideal, no qual há vida incessante e vibrante, numa dimensão agradável,
quase impossível de ser imaginada. Em partes do quadro, vemos o Universo, negro
em seu fundo, misterioso, vasto, infinito, um verdadeiro enigma para a
Humanidade desvendar – o Ser Humano é ainda muito jovem. Galáxias jogam-se pelo
Cosmos como conchinhas à beiramar, na leis eternas da Natureza, da dimensão
material, onde matéria é tudo, onde riqueza é tudo – são as mazelas do Ser
Humano: a ganância. As galáxias giram freneticamente como discos de vinil no
tocadiscos, galáxias tão distantes que fica impossível as visitar. Vemos aqui,
também, Saturno, com seus sensuais anéis, num Sistema Solar ainda enigmático
para a Ciência. Apesar do som não se propagar no vácuo espacial, podemos aqui
ouvir barulhos orgânicos, como tripas trabalhando na digestão do alimento, nos
sons de um organismo pulsante. Bem ao centro do quadro vemos uma esfera
recatada e discreta, talvez um planeta próximo, como Marte, na cor vermelha da
Guerra, do sangue, da luta agressiva pela sobrevivência, num Escher incansável,
guerreiro, que construiu toda uma obra venerável. As crateras são como gotas
caindo sobre uma plácida superfície líquida, propagando ondas de som pelo
cosmos, num dia cinzento e chuvoso. As crateras aqui são cinzentas, entrando em
harmonia com o Universo tão negro e indecifrável. Este quadro é como uma caixa
de interior misterioso, como se fosse uma porta para a entrada em uma dimensão
mágica, que desafia a Lógica. As formas arquitetônicas são ladrilhadas,
construídas pacientemente uma a uma, num artista absorvido pelo próprio
trabalho. Aqui, não podemos fazer uma escolha, porque todas as opções aqui são
respeitáveis. Temos que lidar com essa pluralidade e aceitar as diferenças, no
sentido de que cada pessoa é o tijolo de uma sociedade. Os arcos, arredondados,
são sensuais e femininos, como no corpo de uma mulher que abriga um ser, um
filho. A ave aqui é este filho, e este ser contempla o universo, num Escher
contemplativo, que gosta de observar a Vida. Parece uma sala de espelhos, na
qual há caminhos enganosos (e divertidos). Vemos três reflexos em um só
enfoque, e podemos observar a ave em três dimensões, só que em um quadro de
apenas duas dimensões – este é Escher, um transcendente. Escher nos abre uma
porta e nos convida a entrar em seu mundo. E estrelas salpicam a escuridão do
Universo, brilhando em meio a uma escuridão tão imprevisível, sendo este negror
relativo a galáxias que estão tão longe que sua luz sequer chegou até nós, na
Terra. É como um triplo enfoque sobre uma mesma notícia, contando todos os lados
da história, de modo que cada personagem tem seu ponto de vista sobre um mesmo
filme ou livro. São três mundos em um só, numa abordagem a mais abrangente
possível. Como eu já disse em outra postagem, o engraçado de Escher é observar
cada quadro não só na posição original, mas também de cabeça para baixo,
revelando-nos um quadro totalmente novo, numa montanha russa. A sensualidade
dos arcos deixa a brisa passar e ventilar, numa mente ventilada e jovial,
sempre aberta a novos conceitos. Não canso de dizer que Escher tem um pezinho
na Renascença, adorando Arquitetura. É o interior de uma casa com muitos
corredores, como uma intrincada teia de aranha, pronta para captar uma mosca
distraída, para captar a atenção do espectador. A ventilação aqui é arrebatadora,
e podemos respirar um ar muito puro de temperatura amena, do modo como é sempre
agradável a temperatura das Colônias Espirituais, onde vivem felizes os
espíritos desencarnados. É como uma história em quadrinhos, com os momentos
abraçando uns aos outros. O título desta obra evoca uma dimensão nova e
diferente, longe do dia a dia terreno.
Acima, Três Mundos,
litogravura de 1955. Esta imagem me remete a uma passagem do sagrado livro do
Tao. Esta passagem aconselha ao leitor ser discreto, quieto, pacífico e
“invisível”, sendo um peixe que nada tranquilamente pelas águas profundas,
nunca mordendo iscas nem nadando às vistas dos pescadores. Aqui, este peixe
está em paz consigo mesmo, nadando sob as folhas outonais, que assinalam a
passagem do tempo e a chegada de uma nova estação do ano, num Escher observando
sua própria vida e observando também a passagem do tempo. Este é um peixe que
deve ser delicioso de ser devorado, como faz o monstrinho Gollum de O Senhor dos Anéis, um ser que captura
capciosamente o peixe e o come cru, com o bicho ainda se retorcendo em
resquícios de força frente aos dentes de Gollum. Aqui, temos muita placidez e
silêncio, e um sutil barulhinho d’água ilustra a cena, numa quietude profunda
como o inverno. As folhas boiam e enfeitam a superfície, como barcos em águas
quietas e irresistivelmente pacífica, de modo como Tao diz que a Paz é maior do
que a Raiva. Este peixe aqui não tem raiva alguma, e vive em paz com o
universo, com o lago, com as folhas. As folhas claras entram em contraste com a
profundidade negra do lago, e esta superfície reflete a luz do dia e as árvores
mais atrás, como veias irrigando um organismo, talvez o peixe mesmo. As três
árvores refletidas são irmãs, crescendo uma ao lado da outra, como trigêmeos
compartilhando um útero – nunca vou me esquecer quando vi, certa vez, um
carrinho de bebê com trigêmeos. É o milagre da vida, da procriação, como Jesus
multiplicando pães e peixes. É uma ninhada de cachorros. As árvores aqui estão
completamente nuas, em pleno inverno, e as folhas, cedo ou tarde, afundarão e
nutrirão o fundo das águas turvas. Não podemos aqui ver o fundo do lago, e só o
peixe pode transitar pelos níveis misteriosos da profundidade. O peixe nada
sensualmente, retorcendo-se e parecendo um verdadeiro modelo em uma passarela.
As águas e o peixe entram em harmonia, formando um só corpo. Aqui, a natureza é
um espectro só; uma esfera só. Suas escamas são visíveis, e seus olhos,
acostumados com a escuridão, enxergam à noite, na lei biológica da adaptação. A
imagem aqui é quase uma fotografia, num Escher hábil em produzir efeitos entre
claro e escuro, com o cinza intermediário. O peixe realmente parece mover-se na
cena, curvilíneo, liquidiscente, somando-se ao meio ambiente – é o modo sexy
como o Universo é um só corpo; um só organismo pulsante. As folhas são de
espécies diferentes, assinalando uma diversidade, um pluralismo, como os flocos
de neve são diferentes uns dos outros, como impressões digitais, trazendo
identidade – cada ser vivo tem um papel a desempenhar na cadeia natural. As
árvores parecem ser idênticas, mas não o são – a prova disso são as folhas
diferentes. Só que, nuas, aprecem ser iguais, do modo como a nudez igualada os
seres, na sensualidade universal de Igualdade da Revolução Francesa. A nudez
ilustra o Universo, e a nudez é absolutamente natural na Arte. O peixe nada tão
placidamente que sequer emite ondas de movimento na água, sendo discretíssimo e
recolhido, modesto em viver sua própria vida com simplicidade. As árvores aqui
parecem também ser raízes profundas que mergulham n’água, como na Floresta
Amazônica, numa interminável cadeia de nutrição botânica. O peixe, apesar de
ser visível aqui, passa a maior parte do tempo no fundo, só vindo à superfície
para se alimentar, sabendo do perigo de anzóis de pescadores. É a seleção
natural – aquele que é esperto não sofre danos, podendo assim passar para
frente a sua própria genética; aquele que se expõe ao perigo, não passa. Os
troncos negros contrastam com o céu alvo, ficando firmes em seus galhos e
raízes desenvolvidos. O peixe parece um desenho japonês, numa cena de quietude
na qual o animal é o rei do lago, regendo este com calma e ponderamento, nunca
interferindo na quietude de seus próprios súditos; nunca abusando do povo com
impostos altos. O peixe sabe que sabedoria é querer paz.
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