quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Mago (Parte 4)




Falo pela quarta vez sobre o célebre artista MC Escher. As imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.

Acima, Metamorfose I, xilogravura de 1937. Escher adora estampas em xadrez. Seu trabalho é tijolo por tijolo, imaginando transições matemáticas. Não sabemos se a metamorfose começou pela esquerda ou pela direita. Na extrema direita, ou seja, no Extremo Oriente, vemos um chinês sorridente, tipicamente trajado, num Escher universal. O chinês vai tornando-se formas de aspecto estelar, até resultar em cubos de brinquedo, que por suas vezes viram uma colina rochosa de uma praia, talvez grega. O mar não está revolto, e requebra em discretas ondas na margem. A cidade parece ter sido esculpida na rocha, e a colina oferece uma vista invejável, de frente para o vasto oceano, o vasto universo, cheio de galáxias, com estrelas que somam maior quantidade do que os grãos de areia em todas as praias da Terra juntas. Temos aqui uma liquidiscência, e extrema esquerda e extrema direita mesclam-se como no oceano da cena, e temos um degradê, um gradiente entre opostos, unindo o mundo, o ser humano dentro de si unido, inteiro, sem preconceitos de raça. Ambas as extremidades estão mergulhadas no preto, o qual é o pai, a mãe, a origem misteriosa, o útero espiritual. Trata-se de uma cena essencialmente noturna, e o oceano está imerso em sombras, na incerteza da existência, nas dúvidas de como será o futuro, o amanhã, o desencarne. Ao centro do quadro temos cubinhos de brinquedo, desafiando a criatividade da criança, e temos aqui um Escher criança, divertindo-se na tarefa meticulosa de criar de inventar possibilidades, pois, como eu já disse, MC Escher tem veia de arquiteto – uma pena que o artista nunca tenho feito projetos arquitetônicos, os quais seriam, certamente, um deslumbre. Preto e branco casam-se e unem-se, bailando juntos para que formas sejam claramente delineadas, numa maestria em jogar com apenas duas cores, na charmosa simplicidade da foto sem cores. Por que será que Escher raramente usa cores? Seu traço é tão genial que cores tornam-se desnecessárias, e o artista decide jogar com simplicidade, como ocorre nas xilogravuras, uma técnica que não permite cores e mais cores. Pessoas, pequenas como formigas, passeiam pela cidadela rochosa, cuidando de suas vidas ou, simplesmente, passeando. A cidadela parece estar banhada por luz, apesar do oceano estar negro. Escher aproveita muito bem os espaços em branco, na base alva do papel virgem, pronto este para ser “manchado” pela xilo, desvirginado. A xilogravura é uma agressão, só que uma agressão do bem, positiva, buscando possibilidades de criação. Os cubinhos, surgindo após a cidadela, vão se revelando formas geométricas modernas, simples, retas, como manda a Arquitetura Modernista, que tomou corpo em princípios do Século XX. Ao contrário, a arquitetura da cidadela não é tão simples assim, revelando formas mais complexas. Os cubinhos vão tornando-se escadas, na paixão de Escher por escadas, e arcos revelam-se sensuais, numa noite grega de luar e céu limpo, na sensualidade do ar circulando, trazendo vida que pulsa. São blocos que vão construindo uma pirâmide, como pixels, que, um a um, começam a revelar uma obra, revelar algo que existe na mente do artista. Após os cubinhos, vemos as formas ficarem mais complexas, como em formas de asterisco, até revelarem o homem chinês, num processo de transformação. Fica a dúvida em saber como Escher, trabalhava; quais eram seus rascunhos, seus projetos; quanto tempo levava para fazer um trabalho. O chinês, com o chapéu típico de seu país, veste uma estampa florida e quadriculada, do modo como Escher revela-se um mestre de estampas, sempre imaginado, de forma líquida, as possibilidades de transformação – nada para Escher é estático, e sua mente é um corpo vivo, como tem que ser a mente de qualquer pessoa que queira fazer Arte, pois, como diz a Dialética, tudo é processo, e o infinito se revela em todo o seu poder. Os cubos são escadarias modernas. As rochas ao pé da cidadela permanecem firmes, resistentes ao chicotear das ondas. O homem chinês simboliza a universalidade da mente de Escher, que é um homem de uma mente sem fronteiras. Cinza, preto e branco bailam numa só pista de dança, elegantemente. O título “Metamorfose” é muito pertinente, e não há linhas divisórias no quadro, como o girino tornando-se sapo – há gradiente, sem bipolaridade, sem latência.

Acima, Ciclo, litogravura de 1938. Aqui, um Escher biólogo, ciente dos ciclos na Natureza, na noção de que nada se perde; tudo se renova. Os homens correndo pelas escadas parecem duendes, apressados. Ao fim da escadaria, mergulham num mar e mesclam-se numa espécie de oceano mãe, transformando-se em cubos, que se transformarão em escadas novamente, fechando o ciclo, como na Cadeia Alimentar. O piso quadriculado neste quadro lembra-me do piso de um colégio de padres no qual estudei, e é uma charada, pois tem duas leituras, sendo uma a contradição da outra. Os homens estão afoitos, com os braços para cima, como se estivessem rendendo-se frente a uma arma de um policial ou ladrão, como uma vez apontaram uma arma para o coração de uma amiga minha, tendo os ladrões levado o carro dela. Os duendes surgem milagrosamente de uma porta arqueada, como os arcos na casa onde cresci em Caxias do Sul. Os duendes vêm do nada, simplesmente aparecendo, do modo como tudo veio do nada; veio de Tao. É o milagre da vida. Aqui, tudo retorna à fonte, e há muito movimento, oxigenação, vida em movimento. Há um vaso de plantas na beira de uma janela, simbolizando a vida, os seres vivos da Terra. A planta parece dançar ao doce sabor da brisa, do modo como o movimento aqui gera arejamento, vida. Há uma janela gradeada, proibida, secreta, como se guardasse um segredo inviolável de uma paixão inflamável. É o segredo divino, o enigma da vida e da morte: por que há nascimento e óbito? Os cubos são a infância, a brincadeira criativa, na diversão de construir, desconstruir e construir de novo, como em castelinhos de beira da praia, num eterno aprendizado. Há outra janela aqui, só que sem grades, na transparência dos vidros, do modo como é transparente o fato de Escher ser um grande talento – é fácil de observar. Bem ao fundo na cena, um rio em um vale fértil, no caminho da vida, pois Jesus disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. E Tao é este caminho. A água segue seu incansável curso, alimentando o mundo, irrigando plantações, hidratando seres vivos – o líquido essencial da vida na Terra. O grande rio caudaloso ao fundo lembra o plano de fundo da Monalisa de da Vinci, na Mãe Natureza em sua interminável tarefa de fazer a vida e guiar esta. É como uma professora bela é sábia, hipnotizando o aluno. As formas na parte inferior do quadro trazem formas de quebracabeça, num Escher debruçado em raciocínio, encaixando pacientemente as pecinhas umas nas outras, enfrentando as vicissitudes iniciais e triunfando ao final, com o quadro montado, no doce sabor do êxito. O quebracabeça me lembra de um montado no consultório de minha dentista, quando eu era criança. Era a figura de um grande castelo europeu, e o enigma foi montado pelo filho de minha dentista, e esta expunha orgulhosamente o quebracabeça em seu consultório. É o raciocínio que desvenda charadas, e Escher é um exímio charadista, sempre brincando com as percepções do espectador. Sua paixão por escadas reside no fato destas trazerem truncadas fases distintas mas que, colocadas lado a lado, revelam uma continuidade, uma liquidiscência gostosa, no conforto do útero, do lar. As colinas ao fundo são a Geologia, traçando terrenos e impondo-se como percalços aos colonizadores, desafiando a sede de crescer do ser humano. Certamente Escher crescia a cada trabalho que concluía, apaixonando-se pelo processo criativo, tornando-se popular e amado – o labor faz crescer. O rio corre como os duendes, com pressa, na demanda do day by day, do dia a dia. Este rio lembra a capa do livro Gênesis do fotógrafo Sebastião Salgado, pessoa já comentada aqui no blog. Na capa, o rio revela-se a fonte da vida, o provedor, sendo a gênese, o princípio imutável e eterno. Existe algo mais poderoso do que a eternidade? Nenhuma pedra preciosa supera a eternidade, pois a matéria está condenada à danação, danando-se cedo ou tarde – pedras são matéria. As escadarias são teclas de piano ou de dominó, rendendo várias leituras e releituras. Virando o quadro de pontacabeça, temos a impressão de que flocos de neve caem do céu, na beleza do inverno, na Natureza congelada, eternizada, cristalizada, na beleza de Galadriel de O Senhor dos Anéis. E céu e terra dançam a doce dança da vida, fazendo amor. Escher, mestre da Geometria. As desérticas colinas ao fundo trazem a solidão do trabalho de criação, no qual o artista está só consigo mesmo, tendo paz e sossego para criar. É o Vale dos Vinhedos de Bento Gonçalves, irrigando parreirais e fazendo a vida virar prazer em bebida. Cada obstáculo é uma perspectiva de crescimento. Uma grande amiga minha psicóloga me disse: “As crises são positivas”.

Acima, Olho, meia tinta de 1946. Como num espelho, o espectador se olha. É o olho de Deus, sempre observando seus filhos. É o olho no topo da pirâmide nas notas de dólares, sempre ciente, sempre no controle de tudo e todos no universo inteirinho. Onisciência, onipresença. Não deixa de ser um autorretrato, com o artista olhando a si mesmo, num momento de reflexão, de olhar interno, de momento de introspecção. O traço é primoroso, com cada cílio como detalhe, com cada textura epitelial desenhada, num Escher mestre em luz & sombra, retratando o lustro do olho, provavelmente refletindo uma janela, dando a entender que a luz é natural neste trabalho. A pálpebra é cuidadosamente desenhada, e é quase um retrato fotográfico de tão perfeito. Quem sou eu? A íris também é primorosamente delineada, e até podemos ver pequeno vasinhos sanguíneo no branco ao redor da íris. O olho parece piscar, como se observasse o espectador, numa troca de olhares, num flerte, num momento de troca e comunicação, de contato. Bem ao fundo na pupila vemos uma caveira, que é a finitude, a morte inevitável, num artista que se pergunta o que vem após o óbito do corpo de carne. É o Castelo de Grayskull de He-Man, a caveira cinzenta da dúvida, entre preto e branco, podendo ser tanto do Bem quanto do Mal, numa eterna disputa entre forças antagônicas, na luta da virtude contra o mundanismo; do material versus o espiritual. O artista observa sua própria ruína, seu destino, perguntando-se se sua obra entrará para a História da Arte. É Van Gogh, que morreu pobre sem testemunhar o próprio êxito de reconhecimento e valorização. É uma bandeira de pirata, anunciando o crime de pirataria, na falsificação de produtos, num mercado negro, ilegal, vulgar. O olho é como um peixe nadando, livre pela água, perguntando-se se existe vida fora da água: como se pode respirar fora d’água?, pergunta-se o peixe. Podemos também observar delicados pelos de sobrancelha, num artista perfeccionista, é claro. O interessante ó observar que olhos, na verdade, não olha só para frente, mas olha um pouco do lado esquerdo, como se Escher quisesse evitar um olhar inquisidor do espectador; como se o artista previsse um incômodo, uma verdade nua e dura. É como se o espectador fosse a própria caveira, estando refletido na pupila do artista. É o “ser ou não ser” shakespeareano, encarando a morte inevitável: o que tenho para contribuir ao mundo? O espectador é a Morte. O olho está cheio de dúvidas e questionamentos, e está meio cansado, exausto de tanto labor, mas é um cansaço recompensador, de quem merece uma pausa, ou de um desencarne pacífico, rechaçando o suicídio. É um olhar puro e inocente, e tudo gira em torno da discreta caveira, como no rótulo de algum produto tóxico. Escher tem cautela em fazer Arte, e nunca se contenta com o óbvio ou o medíocre. A caveira ri discretamente, zombando do medo que os homens têm da Morte, do desencarne, do desapego do material, da dimensão material: vão-se os anéis; ficam os dedos. Escher tem uma vontade de “fotografar” – será que poderia ter sido um fotógrafo de fato? E a caveira sorri para o artista, o qual encara de frente o óbito. Aqui, o espectador é a caveira. Teria Escher medo do público, do mundo que observa o trabalho do próprio Escher? É um olhar meio triste, catarseando uma melancolia. Tudo gira em torno da caveira, do destino escrito. E Escher tem que resolver o que fazer com esses dias que lhe restam no mundo. “Sem a poesia, o que faria eu desta tarde brumosa?”, disse minha querida avó Nelly em um de seus poemas. A vida é uma tarde brumosa e cinzenta, como a caveira, e temos que fazer escolhas – realmente, não há como fugir da Vida. Para os que vão, praia brancas; para os que ficam, a dúvida cinzenta. Escher despede-se triste, mas com uma pontinha de esperança, distraído no vaivém dos momentos existenciais – as coisas passam. E da janela vem a luz de esperança, como a luz no fim do túnel. E como é sombrio o túnel, e como nos guia a luz no fim dele. A janela é a Estrela D’Alva, anunciando um novo dia, anunciando um amanhã onde só resta o espiritual. A Aurora vence tudo.

Um comentário:

  1. Muito bom, como sempre. Acho muito interessante as breves inserções de experiências de vida que colocas no texto. Quanto aos trabalhos do artista: geniais. Continue nos brindando com teus excelentes textos. Arnoldo W. Doberstein.

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