Falo pela quarta vez sobre o célebre artista MC Escher. As
imagens analisadas aqui foram todas extraídas do site oficial do artista. As
análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, Metamorfose I,
xilogravura de 1937. Escher adora estampas em xadrez. Seu trabalho é
tijolo por tijolo, imaginando transições matemáticas. Não sabemos se a
metamorfose começou pela esquerda ou pela direita. Na extrema direita, ou seja,
no Extremo Oriente, vemos um chinês sorridente, tipicamente trajado, num Escher
universal. O chinês vai tornando-se formas de aspecto estelar, até resultar em
cubos de brinquedo, que por suas vezes viram uma colina rochosa de uma praia,
talvez grega. O mar não está revolto, e requebra em discretas ondas na margem.
A cidade parece ter sido esculpida na rocha, e a colina oferece uma vista
invejável, de frente para o vasto oceano, o vasto universo, cheio de galáxias,
com estrelas que somam maior quantidade do que os grãos de areia em todas as
praias da Terra juntas. Temos aqui uma liquidiscência, e extrema esquerda e
extrema direita mesclam-se como no oceano da cena, e temos um degradê, um
gradiente entre opostos, unindo o mundo, o ser humano dentro de si unido,
inteiro, sem preconceitos de raça. Ambas as extremidades estão mergulhadas no
preto, o qual é o pai, a mãe, a origem misteriosa, o útero espiritual. Trata-se
de uma cena essencialmente noturna, e o oceano está imerso em sombras, na
incerteza da existência, nas dúvidas de como será o futuro, o amanhã, o
desencarne. Ao centro do quadro temos cubinhos de brinquedo, desafiando a
criatividade da criança, e temos aqui um Escher criança, divertindo-se na tarefa
meticulosa de criar de inventar possibilidades, pois, como eu já disse, MC
Escher tem veia de arquiteto – uma pena que o artista nunca tenho feito
projetos arquitetônicos, os quais seriam, certamente, um deslumbre. Preto e
branco casam-se e unem-se, bailando juntos para que formas sejam claramente
delineadas, numa maestria em jogar com apenas duas cores, na charmosa simplicidade
da foto sem cores. Por que será que Escher raramente usa cores? Seu traço é tão
genial que cores tornam-se desnecessárias, e o artista decide jogar com
simplicidade, como ocorre nas xilogravuras, uma técnica que não permite cores e
mais cores. Pessoas, pequenas como formigas, passeiam pela cidadela rochosa,
cuidando de suas vidas ou, simplesmente, passeando. A cidadela parece estar banhada
por luz, apesar do oceano estar negro. Escher aproveita muito bem os espaços em
branco, na base alva do papel virgem, pronto este para ser “manchado” pela
xilo, desvirginado. A xilogravura é uma agressão, só que uma agressão do bem,
positiva, buscando possibilidades de criação. Os cubinhos, surgindo após a
cidadela, vão se revelando formas geométricas modernas, simples, retas, como
manda a Arquitetura Modernista, que tomou corpo em princípios do Século XX. Ao
contrário, a arquitetura da cidadela não é tão simples assim, revelando formas
mais complexas. Os cubinhos vão tornando-se escadas, na paixão de Escher por
escadas, e arcos revelam-se sensuais, numa noite grega de luar e céu limpo, na
sensualidade do ar circulando, trazendo vida que pulsa. São blocos que vão
construindo uma pirâmide, como pixels, que, um a um, começam a revelar uma
obra, revelar algo que existe na mente do artista. Após os cubinhos, vemos as
formas ficarem mais complexas, como em formas de asterisco, até revelarem o
homem chinês, num processo de transformação. Fica a dúvida em saber como
Escher, trabalhava; quais eram seus rascunhos, seus projetos; quanto tempo levava
para fazer um trabalho. O chinês, com o chapéu típico de seu país, veste uma
estampa florida e quadriculada, do modo como Escher revela-se um mestre de
estampas, sempre imaginado, de forma líquida, as possibilidades de transformação
– nada para Escher é estático, e sua mente é um corpo vivo, como tem que ser a
mente de qualquer pessoa que queira fazer Arte, pois, como diz a Dialética,
tudo é processo, e o infinito se revela em todo o seu poder. Os cubos são
escadarias modernas. As rochas ao pé da cidadela permanecem firmes, resistentes
ao chicotear das ondas. O homem chinês simboliza a universalidade da mente de
Escher, que é um homem de uma mente sem fronteiras. Cinza, preto e branco
bailam numa só pista de dança, elegantemente. O título “Metamorfose” é muito
pertinente, e não há linhas divisórias no quadro, como o girino tornando-se
sapo – há gradiente, sem bipolaridade, sem latência.
Acima, Ciclo,
litogravura de 1938. Aqui, um Escher biólogo, ciente dos ciclos na Natureza, na
noção de que nada se perde; tudo se renova. Os homens correndo pelas escadas
parecem duendes, apressados. Ao fim da escadaria, mergulham num mar e
mesclam-se numa espécie de oceano mãe, transformando-se em cubos, que se
transformarão em escadas novamente, fechando o ciclo, como na Cadeia Alimentar.
O piso quadriculado neste quadro lembra-me do piso de um colégio de padres no
qual estudei, e é uma charada, pois tem duas leituras, sendo uma a contradição
da outra. Os homens estão afoitos, com os braços para cima, como se estivessem
rendendo-se frente a uma arma de um policial ou ladrão, como uma vez apontaram
uma arma para o coração de uma amiga minha, tendo os ladrões levado o carro
dela. Os duendes surgem milagrosamente de uma porta arqueada, como os arcos na casa
onde cresci em Caxias do Sul. Os duendes vêm do nada, simplesmente aparecendo,
do modo como tudo veio do nada; veio de Tao. É o milagre da vida. Aqui, tudo
retorna à fonte, e há muito movimento, oxigenação, vida em movimento. Há um
vaso de plantas na beira de uma janela, simbolizando a vida, os seres vivos da
Terra. A planta parece dançar ao doce sabor da brisa, do modo como o movimento
aqui gera arejamento, vida. Há uma janela gradeada, proibida, secreta, como se
guardasse um segredo inviolável de uma paixão inflamável. É o segredo divino, o
enigma da vida e da morte: por que há nascimento e óbito? Os cubos são a infância,
a brincadeira criativa, na diversão de construir, desconstruir e construir de
novo, como em castelinhos de beira da praia, num eterno aprendizado. Há outra
janela aqui, só que sem grades, na transparência dos vidros, do modo como é
transparente o fato de Escher ser um grande talento – é fácil de observar. Bem
ao fundo na cena, um rio em um vale fértil, no caminho da vida, pois Jesus disse:
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. E Tao é este caminho. A água segue seu
incansável curso, alimentando o mundo, irrigando plantações, hidratando seres
vivos – o líquido essencial da vida na Terra. O grande rio caudaloso ao fundo
lembra o plano de fundo da Monalisa de da Vinci, na Mãe Natureza em sua
interminável tarefa de fazer a vida e guiar esta. É como uma professora bela é
sábia, hipnotizando o aluno. As formas na parte inferior do quadro trazem
formas de quebracabeça, num Escher debruçado em raciocínio, encaixando
pacientemente as pecinhas umas nas outras, enfrentando as vicissitudes iniciais
e triunfando ao final, com o quadro montado, no doce sabor do êxito. O
quebracabeça me lembra de um montado no consultório de minha dentista, quando
eu era criança. Era a figura de um grande castelo europeu, e o enigma foi
montado pelo filho de minha dentista, e esta expunha orgulhosamente o
quebracabeça em seu consultório. É o raciocínio que desvenda charadas, e Escher
é um exímio charadista, sempre brincando com as percepções do espectador. Sua
paixão por escadas reside no fato destas trazerem truncadas fases distintas mas
que, colocadas lado a lado, revelam uma continuidade, uma liquidiscência
gostosa, no conforto do útero, do lar. As colinas ao fundo são a Geologia,
traçando terrenos e impondo-se como percalços aos colonizadores, desafiando a
sede de crescer do ser humano. Certamente Escher crescia a cada trabalho que
concluía, apaixonando-se pelo processo criativo, tornando-se popular e amado –
o labor faz crescer. O rio corre como os duendes, com pressa, na demanda do day
by day, do dia a dia. Este rio lembra a capa do livro Gênesis do fotógrafo Sebastião
Salgado, pessoa já comentada aqui no blog. Na capa, o rio revela-se a fonte da
vida, o provedor, sendo a gênese, o princípio imutável e eterno. Existe algo
mais poderoso do que a eternidade? Nenhuma pedra preciosa supera a eternidade,
pois a matéria está condenada à danação, danando-se cedo ou tarde – pedras são
matéria. As escadarias são teclas de piano ou de dominó, rendendo várias
leituras e releituras. Virando o quadro de pontacabeça, temos a impressão de
que flocos de neve caem do céu, na beleza do inverno, na Natureza congelada,
eternizada, cristalizada, na beleza de Galadriel de O Senhor dos Anéis. E céu e terra dançam a doce dança da vida,
fazendo amor. Escher, mestre da Geometria. As desérticas colinas ao fundo
trazem a solidão do trabalho de criação, no qual o artista está só consigo
mesmo, tendo paz e sossego para criar. É o Vale dos Vinhedos de Bento
Gonçalves, irrigando parreirais e fazendo a vida virar prazer em bebida. Cada
obstáculo é uma perspectiva de crescimento. Uma grande amiga minha psicóloga me
disse: “As crises são positivas”.
Acima, Olho, meia
tinta de 1946. Como num espelho, o espectador se olha. É o olho de Deus, sempre
observando seus filhos. É o olho no topo da pirâmide nas notas de dólares,
sempre ciente, sempre no controle de tudo e todos no universo inteirinho.
Onisciência, onipresença. Não deixa de ser um autorretrato, com o artista olhando
a si mesmo, num momento de reflexão, de olhar interno, de momento de
introspecção. O traço é primoroso, com cada cílio como detalhe, com cada
textura epitelial desenhada, num Escher mestre em luz & sombra, retratando
o lustro do olho, provavelmente refletindo uma janela, dando a entender que a
luz é natural neste trabalho. A pálpebra é cuidadosamente desenhada, e é quase
um retrato fotográfico de tão perfeito. Quem sou eu? A íris também é
primorosamente delineada, e até podemos ver pequeno vasinhos sanguíneo no
branco ao redor da íris. O olho parece piscar, como se observasse o espectador,
numa troca de olhares, num flerte, num momento de troca e comunicação, de
contato. Bem ao fundo na pupila vemos uma caveira, que é a finitude, a morte inevitável,
num artista que se pergunta o que vem após o óbito do corpo de carne. É o
Castelo de Grayskull de He-Man, a caveira cinzenta da dúvida, entre preto e
branco, podendo ser tanto do Bem quanto do Mal, numa eterna disputa entre
forças antagônicas, na luta da virtude contra o mundanismo; do material versus o espiritual. O artista observa
sua própria ruína, seu destino, perguntando-se se sua obra entrará para a
História da Arte. É Van Gogh, que morreu pobre sem testemunhar o próprio êxito
de reconhecimento e valorização. É uma bandeira de pirata, anunciando o crime
de pirataria, na falsificação de produtos, num mercado negro, ilegal, vulgar. O
olho é como um peixe nadando, livre pela água, perguntando-se se existe vida
fora da água: como se pode respirar fora d’água?, pergunta-se o peixe. Podemos
também observar delicados pelos de sobrancelha, num artista perfeccionista, é
claro. O interessante ó observar que olhos, na verdade, não olha só para
frente, mas olha um pouco do lado esquerdo, como se Escher quisesse evitar um
olhar inquisidor do espectador; como se o artista previsse um incômodo, uma
verdade nua e dura. É como se o espectador fosse a própria caveira, estando
refletido na pupila do artista. É o “ser ou não ser” shakespeareano, encarando
a morte inevitável: o que tenho para contribuir ao mundo? O espectador é a
Morte. O olho está cheio de dúvidas e questionamentos, e está meio cansado,
exausto de tanto labor, mas é um cansaço recompensador, de quem merece uma pausa,
ou de um desencarne pacífico, rechaçando o suicídio. É um olhar puro e
inocente, e tudo gira em torno da discreta caveira, como no rótulo de algum
produto tóxico. Escher tem cautela em fazer Arte, e nunca se contenta com o óbvio ou o
medíocre. A caveira ri discretamente, zombando do medo que os homens têm da
Morte, do desencarne, do desapego do material, da dimensão material: vão-se os
anéis; ficam os dedos. Escher tem uma vontade de “fotografar” – será que
poderia ter sido um fotógrafo de fato? E a caveira sorri para o artista, o qual
encara de frente o óbito. Aqui, o espectador é a caveira. Teria Escher medo do
público, do mundo que observa o trabalho do próprio Escher? É um olhar meio
triste, catarseando uma melancolia. Tudo gira em torno da caveira, do destino
escrito. E Escher tem que resolver o que fazer com esses dias que lhe restam no
mundo. “Sem a poesia, o que faria eu desta tarde brumosa?”, disse minha querida
avó Nelly em um de seus poemas. A vida é uma tarde brumosa e cinzenta, como a
caveira, e temos que fazer escolhas – realmente, não há como fugir da Vida.
Para os que vão, praia brancas; para os que ficam, a dúvida cinzenta. Escher
despede-se triste, mas com uma pontinha de esperança, distraído no vaivém dos
momentos existenciais – as coisas passam. E da janela vem a luz de esperança,
como a luz no fim do túnel. E como é sombrio o túnel, e como nos guia a luz no
fim dele. A janela é a Estrela D’Alva, anunciando um novo dia, anunciando um
amanhã onde só resta o espiritual. A Aurora vence tudo.
Muito bom, como sempre. Acho muito interessante as breves inserções de experiências de vida que colocas no texto. Quanto aos trabalhos do artista: geniais. Continue nos brindando com teus excelentes textos. Arnoldo W. Doberstein.
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