quarta-feira, 15 de junho de 2016

Bons Ares




            Estive na capital argentina por três vezes: quando eu era criança, depois pós adolescente e mais tarde adulto. Certa vez ouvi a frase: “Os argentinos são italianos que falam espanhol e se acham ingleses”. Talvez essa frase tenha sido dita após o episódio da Guerra das Malvinas, na qual Argentina e Inglaterra disputaram um arquipélago no Hemisfério Sul, conflito que trouxe baixas para ambos os lados. Semelhantes ao Brasil, os argentinos passaram por um período de ditadura militar, e foram esses ditadores que fizeram questão de pisar nos calos da Inglaterra e fazer do episódio uma bandeira de propaganda do regime opressor argentino. A própria Margareth Thatcher, primeira ministra inglesa na época, chamou os militares da Argentina de “gangue de fascistas”. Eram os anos 1980, e o mundo voltou suas atenções à disputa. Inclusive, quando foi lançado o jogo de tabuleiro “War”, naquela década, o filme publicitário mostrava sósias de personalidades mundiais jogando e disputando terras ao redor do mundo, e uma das sósias era de Teacher, digo, Thatcher. A Argentina perde a guerra e os militares passam do “prazo de validade”. A ditadura cai de podre. E há em Buenos Aires um memorial em homenagem aos mortos no conflito – uma gigantesca flor artesanalmente feita com pedaços dos aviões argentinos que lutaram nas Malvinas. A flor da paz é maior do que o sangue da guerra. O orgulho inglês saiu renovado, visto que a Inglaterra teve (e ainda tem) uma atitude colonizadora, vendo outrora na Argentina uma oportunidade de investimentos civilizatórios, como estradas de ferro cortando o país. Mas, hoje, argentinos e ingleses estão em paz, sem mais agressividade, e cada um fica quieto no seu canto. As guerras são sempre arrasadoras para todos os lados. Não se respiram bons ares na raiva.

            A Argentina tem um charme especial, e o Sol de lá parece ser mais dourado do que o comum. Por que será? Mas dizem que, meteorologicamente, Buenos Aires é uma cidade “bipolar”, pois o inverno é bem frio e o verão é bem quente, e o calor é turbinado pelo grande acúmulo de concreto e asfalto.

            Há a face negra da nação argentina – o racismo. Assim como o Brasil, a Argentina teve a força econômica de trabalho da escravatura, e negros foram arrancados da África para o trabalho forçado, e assim foi com os afrodescendentes argentinos destes, nesse absurdo que é a escravidão. Só que há um ponto contrastante no momento da abolição da escravatura: no Brasil, os negros foram libertados e passaram a ser cidadãos brasileiros, herdando de seus senhores os seus sobrenomes – é por isso que há tantos Silva no Brasil, por exemplo; já, na Argentina, os negros foram libertados mas foram todos reunidos e mandados de volta à África, sendo inaceitável serem convertidos em cidadãos – os escravos na Argentina foram usados e descartados como Kleenex. Uma parente minha viajou para Buenos Aires em excursão e, quando o grupo chegou à porta de uma casa noturna, o segurança, ao saber que se tratava de um grupo brasileiro, perguntou se neste havia algum negro, e minha parente disse ao segurança que, no Brasil, o portenho seria processado por injúria racial. Em outra oportunidade, um amigo meu estava com um grupo de amigos em um restaurante portenho, e uma de suas amigas era negra. Então o meu amigo disse que ouviu pessoas locais que, ao saírem do restaurante, olharam para a moça negra e disseram: “Não dá mais para vir aqui”. Será que os argentinos têm inveja dos brasileiros pela Argentina não ter tido um Pelé? Será que os argentinos gostam de haver uma família negra na Casa Branca nos EUA? Levando em conta o racismo, seria coincidência o fato de que vários nazistas refugiaram-se na Argentina após a II Guerra Mundial? Eu, hein. Preconceito é uó.

            Certa vez em uma entrevista, o ex jogador Diego Maradona fez uma gozação do estilo brasileiro e da tradição do futebol arte brazuca. Cidade que respira futebol, BA é o cenário da ópera rock “Evita” de Andrew Lloyd Webber. A larga avenida 9 de Julio tem a reputação de fazer com que as pessoas, por causa da alta poluição, fiquem com resquícios de poluentes nas narinas, mas é puro mito. O célebre obelisco na avenida é símbolo do orgulho portenho, numa urbe que abriga em sua região metropolitana um terço de toda a população da Argentina. Os portenhos curtem uma boa cafeteria, tendo uma certa semelhança com Porto Alegre, sendo que esta tem mais a ver com BA do que com o Rio de Janeiro. A sofisticada avenida Santa Fé abriga uma livraria, El Ateneo, que se instalou onde era certa época um teatro. A mistura ficou excelente e inusitada, um símbolo da paixão portenha por cultura. El Ateneo aproveita todos os espaços – os camarotes laterais também abrigam livros e, mais ao fundo, no palco, há uma cafeteria, num conceito muito criativo, equiparando-se à Livraria Cultura na cidade de São Paulo. Ainda falando da 9 de Julio, o centro de Buenos Aires já não respira o glamour portenho de outrora, e há prédio antigos decadentes e pichados, há camelôs vendendo tranqueira e há mendigos.

Berço do tango, com shows gratuitos da dança pela rua, a Big Apple da Argentina tem, em uma bela galeria em art déco, o teatro Astor Piazzolla, cujo nome homenageia o célebre músico astro do tango. O impecável show de tango, nesta dança apreciada por Eva Perón, é apresentado após servido um jantar, um bom programa para namorados e casais em geral. A técnica dos dançarinos é perfeita e, num certo momento da apresentação, há uma dança gauchesca extremamente parecida com as tradições do Rio Grande do Sul. São os pampas.

O grandioso Museu de Arte Latinoamericana, o Malba, com suas paredes brancas, lembra um pouco o MoMA de Nova York. Vibrante, o centro cultural portenho sempre traz mostras, e, quando fui, deparei-me com uma instalação indescritível. Foi a catarse mais forte e marcante que vi na minha vida. Uma porrada na mente. Não lembro do nome do autor e nem quero lembrar, hehehehe! E o monumental Puerto Madero é um bom programa de passeio, com gastronomia e muitos barcos atracados, num espaço que Porto Alegre quer fazer semelhantemente no Cais Mauá, no centro da capital gaúcha.

Na luz do dia, Buenos Aires é uma cidade relativamente segura. Bater perna é bom, visto que os pés bombeiam o sangue para o resto do corpo. Os guias recomendam não caminhar na rua após as 22 horas, e estão havendo vários furtos pelas ruas da cidade, em plena luz do dia. Os portenhos não vivem absolutamente seguros. Uma característica dos boêmios portenhos é o horário, pelo menos em boates onde fui – a festa começa, de fato, só às 3 da manhã, e vai até as 8 horas da matina. Cidade de passado rico e próspero, Buenos Aires respira o poder da Casa Rosada, num bom passeio, com uma entrada especial para turistas, com grandes quadros pintados com ícones da história política argentina. Mas, quando fui, observei algo instigante: num mastro estava hasteada a bandeira nacional, só que esta estava absolutamente esfarrapada, em frangalhos. Seria por causa de uma tradição que desconheço? Quanto pode custar uma bandeirazinha nova?

Na última vez, hospedei-me no Hotel Bisonte, com um ótimo café da manhã, servido até as 13 horas. O táxi na cidade é barato, até barato demais, e a categoria, na época em que fui, estava insatisfeita com as baixas tarifas. Alguns taxistas não são lá muito gentis. Ainda por cima, há táxis não regulamentados e não licenciados trabalhando pela cidade, e você tem que se assegurar que está pegando um táxi legalizado. Além do mais, circula em Buenos Aires muito dinheiro falso, e há até taxistas que passam aos passageiros cédulas inverídicas, e é por isso que os guias recomendam nunca dar cédulas de valor muito alto, pois, no troco dado pelo motorista, pode haver “ouro de tolo”. Deus que me perdoe, isso tudo numa cidade tão bonita. Por fim, o trânsito é meio caótico, e, em avenidas largas, com várias pistas, os carros nunca ficam na mesma pista, e invadem incessantemente as outras pistas demarcadas no asfalto. Mas isso Dios perdoa, mesmo porque é portenho o Papa Francisco. E abençoados são os shoppings de BA, que são finos, como as Galerias Pacífico, com seus afrescos pintados, com algo que amo – uma loja da rede mundial de cafeterias Starbucks, com um cappuccino excelente, só que caro. Diz-se que Francisco adorava tomar café pela cidade.

No retorno de minha terceira viagem a Buenos Aires, quando fui com minha família em um feriadão de Corpus Christi, uma pessoa de minha família, que adora doce de leite, adquiriu um vidro do produto na cidade. Chegamos em Porto Alegre e desembarcamos. E eu, para poupar os mais velhos de grande esforço, coloquei em meu carrinho a maior parte das malas. O que eu não percebi é que eu estava com “cara de sacoleiro”, como se eu estivesse cheio de contrabando. Então o funcionário da alfândega, ao me ver, solicitou que eu colocasse as malas sob o raio x, e o pote de doce de leite foi descoberto. O funcionário informou que, por ordens da vigilância sanitária, doces de leite da Argentina não podem entrar no Brasil. Aí o homem abriu o pote na nossa frente e o descartou, pra mostrar que o produto seria de fato jogado fora. E lá se foi um delicioso doce de leite. Fazer o quê? Inclusive, o funcionário nos deu um folder explicando as razões da legislação. Firme, porém, gentil.

Há o tradicional passeio pelo bairro El Caminito, com sua casas multicoloridas – como no Pelourinho em Salvador –, e há a feira de antiguidades no bairro de San Telmo. É bom também fazer visitas guiadas pelo colossal Teatro Colón. Buenos Aires é uma cidade grande e aberta ao mundo, numa bela escolha de lua de mel, por exemplo. BA é doce. Os argentinos retribuem as visitas dos turistas brasileiros, e vão às praias brasileiras no verão – vi até argentinos em um resort em Salvador. Certa vez, no verão em Capão da Canoa, eu cheguei em um café e sentei-me inocentemente em uma mesa. Então veio um argentino que disse-me em espanhol – como seu eu, no Brasil, tivesse a obrigação de entender a língua dele – que ele estava sentado, antes de mim, na referida mesa. Cedi gentilmente, dizendo que eu não sabia. Não vou puxar briga com um argentino, principalmente por uma mesa em um café em Capão da Canoa. Em outra ocasião, em Gramado, duas senhoras argentinas estavam batendo fotos, e eu me ofereci para tirar fotos delas. Quando lhes devolvi a máquina, uma delas agradeceu e disse-me, em espanhol, que eu era muito amável. Amo a Argentina, principalmente os vinhos!

E não podemos esquecer da Republica de Los Niños, ou seja, a República das Crianças, parque temático fundado por Evita Perón nos anos 1950 – olha ela aí de novo, tendo sido tema deste mesmo blog anteriormente. Reza a lenda que quando Walt Disney visitou o parque, teve a inspiração para construir a Disneylândia na Califórnia, EUA. Falando em crianças, certa vez minha família alugou nossa casa no litoral para um casal argentino com filhos. E também tive a oportunidade de conhecer, no Brasil, o portenho Félix Monti, o talentoso diretor de fotografia de cinema.

Na ilustração desta postagem, um banco exótico no interior do Malba. É a sofisticação dos citadinos hermanos.


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