quarta-feira, 22 de junho de 2016

Santa Cidade




Estive várias vezes em São Paulo, cidade que respirou o auge e a riqueza da economia cafeeira. Nos sábados, domingos e feriados, a cidade é um oásis, pois as ruas estão desocupadas e a cidade pertence a quem gosta de curtir calma e tranquilidade. Em dias úteis, o infame trânsito absolutamente caótico é uma marca registrada desta urbe que é a maior e a mais influente cidade da América Latina. Certa vez, pegando um táxi para ir do aeroporto até o hotel, levei duas horas inteiras por causa do engarrafamento: “Estou tentando chegar no Brooklin”, disse o taxista a um colega pelo telefone. Geralmente, encontrei taxistas simpáticos, e um até mostrou cordialmente os pontos importantes da cidade enquanto fazíamos a corrida. Como em toda cidade grande, há em São Paulo gente estressada e grosseira, mas há também gente boa. Já me hospedei no The Time e no excelente Matsubara, este com um belo interior de um pé direito altíssimo. Quando eu era criança, em minha primeira vez na cidade, viajei em excursão com minha família. As lembranças são vagas, mas lembro-me de comermos uma pizza no tradicional bairro do Bixiga, berço da imigração italiana em São Paulo. O italiano de SP é diferente do italiano do Rio Grande do Sul, inclusive no sotaque – em São Paulo, os imigrantes instalaram-se em um contexto citadino; no RS, o italiano levou uma vida absolutamente agrária, vindo em grande parte do Vêneto e com dialeto próprio, o talian. Até o diretor Fábio Barreto assinalou essa diferença cultural entre essas duas “Itálias brasileiras” – ele tolheu um ator quando este fez o tradicional gesto italiano de falar com as mãos, e o diretor disse: “Isso é coisa de italiano de cantina de São Paulo”. Hehehehe!!!!

A Avenida Paulista passou por uma grande despoluição visual. Entrou em vigor uma lei que passou a proibir anúncios publicitários e indicadores muito explícitos de marcas ou empresas. Deu certo. Centro financeiro do país, a avenida está com visual limpo, abrigando o nervo paulistano – o Museu de Arte de São Paulo, o MASP. Frequentemente, o museu serve de pano de fundo para passeatas e protestos, e a ampla via abrigou já manifestações gigantescas. Por quê? Porque o local é tido, mesmo que de modo implícito, o centro da capital, sendo o museu o lugar mais fino em toda a São Paulo. O célebre vão do museu é um enigma arquitetônico – como conseguiram projetar aquele prédio com um vão tão livre, forte o suficiente para sustentar tanto concreto? O acervo permanente do MASP é deslumbrante, partindo de obras da Antiguidade, passando por obras renascentistas e chegando até trabalhos de Renoir – “Não acredito que estou frente a um Renoir”, disse uma moça próxima a mim no museu. Reza a lenda que o magnata Assis Chateubriand, que deu nome ao museu, fazia especulações de obras e, assim, pagava preços baixos por obras valiosas, destinando estas à cidade de São Paulo. Pertinho do museu, há a formidável Livraria Cultura, com uma grande variedade de itens e uma cafeteria aconchegante. O projeto arquitetônico da loja é de um arquiteto no auge de sua própria inspiração, num espaço que convida e entrar e ficar. De um modo geral, os paulistanos são um povo cosmopolita e grande consumidor de cultura, como peças de teatro, por exemplo. Uma boa peça de teatro não pode deixar de passar pelas casas paulistanas de teatro, numa cidade muito vibrante com musicais e shows em geral. E o paulistano prestigia essas manifestações artísticas. Povo culto. Dizem que Caxias do Sul quer ser uma pequena São Paulo, mas não passa de uma grande Farroupilha, mas é fato que o parque industrial caxiense, no Brasil, só perde para o de São Paulo. E o MASP, que nunca pára, faz parte desse bolo cultural paulistano, um símbolo de orgulho municipal, e seus pilares vermelhos contrastam com a cinzenta capital de concreto e o cinzento céu encoberto. Só há um pequeno porém: para se ter acesso ao museu, deve-se pegar um elevador, fazendo com que os visitantes entrem lentamente em “contagotas”.

O Museu do Ipiranga, dirigido pela Universidade de São Paulo, é um grandioso prédio amarelo neoclássico que narra a saga brasileira desde o Brasil Colônia. No Salão Nobre, há uma fabulosa pintura que narra o episódio épico da Independência do Brasil. Muito no museu trata da escravatura, e há até mechas do cabelo da princesa Isabel. No subsolo, há um painel de Aldo Locatelli. O prédio tem jardins que nos fazem sentir na Europa, e há também uma gigantesca rampa de asfalto a qual a gurizada aproveita para andar de skate. Outro ponto alto deste ponto turístico é o rico e complexo estatuário no monumento à Independência, com uma tocha permanentemente acesa. Só São Paulo para brindar-nos com tanta suntuosidade. No museu, dá orgulho de ser brasileiro.

O grande Mercado Público de São Paulo foi todo revitalizado na administração da prefeita Martha Suplicy, então petista. Há vários e amplos vitrais, que, com sua beleza, brindam o visitante e o convida a apreciar os produtos à venda. No mercado, há muitas frutas exóticas e frescas, e por preços módicos, vibrante como um mercado londrino. Adquiri uma bandeja de morangos graúdos e deliciosos. Almocei em um restaurante turco no segundo andar, e comi um ótimo peixe frito. De sobremesa, um doce de mel com rosas. O mercado em si é um ponto atraente, mas o entorno é precário, com prédios semi-abandonados e extremamente degradados. “São Paulo tem, convivendo dentro de si, o Primeiro e o Quarto Mundo”, disse-me certa vez uma senhora culta de Porto Alegre, e a capital paulista é assim: onde há riqueza, há pobreza, como na terrível cracolândia, num contraste social bem brasileiro.

No Bixiga – não sei porque leva esse nome - tem a concorrida pizzaria Speranza, e se há algo que São Paulo oferece em abundância, são as pizzarias. O bairro da Liberdade é o berço da imigração japonesa, e a etnia nipônica é muito forte em São Paulo. O bairro chama-se assim porque muitos dos imigrantes japoneses, ao chegarem ao Brasil, foram submetidos a trabalho escravo, sendo libertados posteriormente. Comi por duas vezes no mesmo restaurante, com sushi feito com peixe bem fresquinho, e outra vez em um lugar de comida chinesa – infelizmente não me lembro do nome desses restaurantes na Liberdade, que é um bairro movimentado, com muitos, muitos camelôs pelas calçadas. São Paulo é assim, uma Babilônia, uma colcha de retalhos étnico-cultural, numa cidade aberta à diversidade, em todos os sentidos, como a Parada Gay Anual e diversas outras manifestações. São Paulo tem cheiro de democracia.

O grande Parque do Ibirapuera é ponto de referência para lazer ao ar livre. No museu do parque, vi uma mostra de artes plásticas. No local há também o Museu Africano, que homenageia essa etnia, lembrando-me muito do contundente departamento de arte africana no Metropolitan Museum of Art de Nova York. Fui também ao planetário do Ibirapuera, o que me remeteu a lembranças da infância no planetário de Porto Alegre.

É claro que o progresso tem seu ônus, visto o cheiro de ovo podre do rio Tietê, mencionando novamente a tranqueira do tráfego. Cidade com custo de vida alto, São Paulo exige que o cidadão e o turista tenham dindim no bolso para usufruir do que a urbe oferece. Andar de carro pela paulista à noite é um programa interessante, no qual pode-se sentir, sem a loucura do dia-a-dia, o poder que emana dos prédios da via – é a capital do Brasil, deixando para Brasília um papel puramente político. Andei de ônibus, metrô e táxi, e, graças a Deus, nunca fui assaltado. É claro que São Paulo tem um charme especial, e é uma cidade de oportunidades de negócios.

Já ouvi dizer a respeito do contraste entre a mulher paulistana e a carioca: a primeira é linda na noite e um desastre na praia; a segunda, linda na praia e um desastre na noite! Mas deve ser mito. “Terra da Garoa”, São Paulo tem um microclima próprio, pois, apesar de estar quase na mesma latitude da cidade do Rio de Janeiro, está em uma elevação planáltica. Em uma das vezes em que fui, fez bastante frio (para os moldes tropicais brasileiros). E São Paulo abriga inúmeras feiras, congressos e simpósios, sendo uma vitrine daquilo que é produzido no Brasil.

Deixem-me contar uma historinha. Eu estava hospedado em um hotel em São Paulo, mas não revelarei o nome do empreendimento. No quarto ao lado do meu, um hóspede medonho: eram altas horas da noite e ele recebeu amigos no quarto, e dê-lhe gritos e risadas, ao ponto de eu, fechado no meu quarto, em minha cama, com a cabeça encostada no meu travesseiro, simplesmente não conseguir dormir – quando eu estava engrenando no sono, um quá-quá-quá no quarto ao lado me acordava. Então liguei para a recepção e disse para eles enviarem alguém para advertir o meu “querido” hóspede. O segurança foi lá, pediu que diminuíssem o barulho, mas não adiantou muito, e o barulho durou até a hora do grupo inteiro sair do quarto e ir para alguma balada ou bar na cidade de São Paulo. Quando eu achava que estava tudo bem, no dia seguinte, estou no corredor em direção à porta do meu quarto e, do mesmo quarto barulhento da noite anterior, emanava um fedor indisfarçável de maconha, e eu tenho pavor da maldita erva. Então nem liguei para a recepção - desci lá direto, e disse: “Vocês têm duas opções – uma é chamar a polícia; a outra, mudar-me de quarto”. O que os atendentes da recepção escolheram? A segunda opção, hehehe!!! Nada tenho a ver com os vícios dos outros.

Na ilustração desta postagem, a Medusa do pintor Caravaggio. A obra-prima esteve em São Paulo de passagem pelo MASP. A curadoria da mostra está de parabéns.

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