quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Na velocidade de Hamilton




            Richard Hamilton nasce londrino em 1922. Aos 12 anos, faz cursos noturnos de Arte. Aos 14, trabalha como publicitário e estuda em duas escolas de Arte. Aos 15, volta a ser publicitário. Aos 16, estuda pintura na Royal Academy Schools até os 18 anos. Entre os 19 e 23 anos de idade, faz desenho industrial. Aos 24, prossegue na Royal Academy mas é expulso por falta de assiduidade (!), prestando serviço militar na mesma época. Aos 25, casa-se e, aos 26, inicia três anos de estudo em pintura em outra instituição de ensino. Aos 28, faz sua primeira exposição individual e produz também estampas nesta mostra. Aos 29, faz outra individual e, aos 30, leciona Arte, aliando-se ao artista Eduardo Paolozzi e fundando o Independent Group, que abrigava artistas e cientistas na busca de compreender o mundo à sua volta. Aos 31, Hamilton leciona curso geral em desenho em outra instituição inglesa. Em 1955, aos 33 anos, mostra em Londres, com influência cubista. Aos 34, nova individual, com colagem Pop. Dos 35 aos 39, leciona Arquitetura de Interiores, tendo, aos 38, ganho um prêmio de pintura, e tendo no mesmo ano revelado publicamente ter tido influência de Marcel Duchamp. Aos 40, Richard fica viúvo, na década de explosão da Pop Art. Aos 41, faz sua primeira viagem aos EUA. Aos 44, faz grande retrospectiva de Duchamp e, no mesmo ano, RH faz mostra sobre o Museu Guggenheim de Nova York, numa metalinguagem: museu falando de museu, na ironia metalinguística. Aos 47, colabora ativamente na produção de um filme. Aos 48, recebe um prêmio em Amsterdã. Aos 52, três retrospectivas: no Guggenheim de NY, em Munique e em Tubinga (Alemanha). Aos 57, primeiras grandes retrospectivas em duas galerias diferentes. Aos 60, publica escritos, notas e documentos importantes. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

Acima, The Solomon R. Guggenheim Museum, de 1965-66, de fibra de vidro e celulose. O conceito lembra o estilo de Andy Warhol: mesma base de imagem, mas com combinações cromáticas diferentes. Richard revela seu amor por Nova York e pelo célebre museu da Big Apple, num quadro que, ironicamente, pertence ao acervo da referida instituição novaiorquina. No quadro com a fachada do museu, temos três registros: 1) Um negro, fechado, noturno, com poucos detalhes em cinza, que só servem para delinear o museu todo escurecido; 2) Um branco, na luz do dia, com poucos detalhes em preto, surfando pelas linhas arredondas de um prédio concebido no auge da criatividade de um arquiteto, prédio que inspirou a Fundação Iberê Camargo de Porto Alegre; 3)Um multicolorido, como um cristal rico em uma explosão cromática. Como as Três Marias na constelação de Órion, os quadros precisam uns dos outros para brilhar individualmente, e a distância torna-se proximidade. O negro parece um capacete do megavilão Darth Vader, de Star Wars, sinistro, misterioso como notas de jazz pulsante. A negritude é densa, e há um lustro sofisticado, como uma pele negra retinta. O prédio é duro, impenetrável, parecendo ser recheado de pedra intransponível. É como a Torre de Orthanc de O Senhor dos Anéis, resistente, forte, imune a agressões. Nem uma poderosa bomba atômica pode derrubá-la. Se receber tiros de canhão, rechaçará cada um. Nem mesmo uma lasquinha pode ser subtraída deste Guggenheim negro. É o lado negro da Força revelando-se em toda sua falta de sentido. É um quadro depressivo, sem rumo, preso na própria negritude maléfica e, ainda assim, importante, pois torna-se uma referência em sua resiliência. Não tente dar um murro nesse museu negro, pois você vai machucar a própria mão, enquanto o museu nada sentirá. O quadro negro é para ser temido, e há coisas secretas acontecendo dentro dele, como os nazistas tramando planos para derrubar os Aliados na II Guerra Mundial. É um quartel general cheio de conspirações e espionagem. Na cidade que nunca dorme, o museu tem insônia, recusando-se a relaxar. Ele está cheio de tesouros artísticos inestimáveis, sendo símbolo de poder e dinheiro, num país perfeitamente capitalista. É o oposto da estrutura piramidal, a qual tem base grande e topo pequeno: o Guggemheim é magro na base e gordo no topo. Já, no quadro branco, temos a normalidade da luz do dia, uma foto sendo tirada por qualquer máquina fotográfica. O museu aqui está aberto, recebendo visitantes em suas galerias e sua espiral interna, uma serpente arquitetônica. O museu mistura-se a todos os outros prédios da cidade, sendo uma de muitas atrações de uma cidade importante como Nova York. Dessa vez, o museu se parece com os capacetes dos soldados do Mal de Star Wars, cruéis, sob o comando de um sádico ditador psicopata, louco, antissocial, altrodestrutivo e autodestrutivo, no niilismo do Mal. As linhas arredondadas são femininas, formosas, sensuais, como um suspiro em uma gostosa soneca no meio da tarde. Neste quadro, o museu se parece com teclas de piano, em branco e preto, no bom gosto da foto em preto e branco, na simplicidade do registro binário: luz e ausência de luz. Formando a contradição um do outro, o preto e o branco dançam nesse baile de arquitetura, abraçando contradições e vivendo em paz, como numa nação desenvolvida e democrática. Na luz do dia, os mistérios estão minimizados, e a negritude assume um papel coadjuvante. O Guggenheim é livre, leve e solto, um diamante negro coruscando em meio à agenda cultural intensa de uma metrópole. Não são todos os prédios de Nova York que assumem formas tão singulares e instigantes, fazendo deste museu um must, um roteiro obrigatório para visitantes e moradores da cidade. Já, no terceiro quadro, esbanja-se alegria nas cores de alto astral, quase superficial. O Guggenheim está em festa, numa ocasião muito especial. As cores dançam entre si, e as linhas curvilíneas do prédio dão espaço à festa cromática, do infravermelho ao ultravioleta, na pureza de um cristal límpido e puro. Difícil de se observar um arco-íris em uma selva de pedra como Nova York. As multicores jogam fora o registro em preto e branco dos dois quadros acima, rechaçam a sisudez e celebram a diversidade, em uma cidade grande, cheia de várias culturas, histórias e nacionalidades. A cidade festeja sua própria pluralidade e convida todos a participar. Os raios do Sol, filtrados pelas gotículas de água da chuva, fazem a promessa de um mundo melhor, onde as diferenças são respeitadas. Num plano geral, os três quadros são faces de um mesmo personagem, na busca da Pop Art em explorar as faces de uma mesma fonte, como filhotes que, mesmo sendo de uma mesma ninhada, têm cada um seu próprio sentido, seu Tao, seu estilo. A mensagem residual que fica é a tradicional “As diferenças unem e não desunem os seres humanos”. Portanto, respeito é essencial, pois todos somos da mesma família. O Guggenheim desafia a lei da gravidade e, de tão aparentemente frágil, ameaça cair, mas não devemos subestimá-lo, pois é mais forte do que parece ser. É como um vaso de flores, sendo que as flores são a imaginação do espectador. É um sofisticado portal para o futuro, na vocação artística de Manhattan. O quadro colorido compensa a falta de cores dos quadros restantes, numa busca do artista por equilíbrio, buscando vários efeitos para a mesma causa, num Guggenheim sempre cheio de novidades, um deleite de frescor para quem curte Arte.

Acima, um óleo, colagem e folha plástica sobre madeira com um título extenso: Towards a Definitive Statement on the Coming Trends in Men’s Wear and Accessories, ou seja, Em Direção a Uma Definição das Futuras Tendências da Moda Masculina em Roupas e Acessórios, de 1960. Ficamos sem saber o porquê de um título tão complexo. Os olhos de JFK, no namoro da Pop Art com figuras populares. O presidente aparece como símbolo do sexo masculino, ocupando uma posição de muito poder, respeito e prestígio, na ambição de qualquer homem. O branco tem grande presença na peça, conferindo aspecto limpo, na limpeza da imagem do clã Kennedy. Ao lado do líder político, uma forma oval em vermelho que parece ser um estômago, no sentido de que um presidente tem que ter entranhas para encarar a tarefa de dirigir um país tão grande e complexo. Vemos também uma estrela metálica, como a de um xerife, pois o presidente nada mais é do que o xerife de uma nação, na dureza da mão de ferro que precisa ter para tomar decisões difíceis. Vemos um pequeno aparelho de rádio, simbolizando a cultura de massa, na esmagadora popularidade de JFK frente ao povo americano. Há outros elementos difíceis de ser definidos, num Hamilton enigmático e hermético. Na extrema esquerda, vemos desenhos que parecem ser um projeto de avião ou algo do gênero, no sentido da responsabilidade planejadora com a qual um presidente tem que agir, medindo todas as possíveis consequências e prováveis efeitos colaterais – os grisalhos começam a aparecer na cabeça de um presidente, pois a cabeça que governa sente o peso de uma coroa. Vemos dois borrões negros – um à esquerda e um abaixo do “estômago vermelho”, e o preto pode ser visto como a noite, os mistérios dos meandros do poder, num homem brutalmente assassinado em público, numa grande ironia: uma pessoa de vida pública acaba despedindo-se dessa forma tão testemunhada pela cultura de massa da América. Podemos ver o que parece ser um círculo que lembra uma roda de carro, o carro presidencial que transporta o líder pelo país, numa agenda apertada e atarefada, tendo pouco tempo para descansar e relaxar. Podemos ver também dois pequenos pontos negros quase ao centro do quadro, como os olhos de uma fera assassina que fica à espreita, aguardando um descuido da vítima e atacando esta, no sentido de que a família Kennedy é extremamente famosa e visada pelo povo dos EUA, que tem os seus próprios mitos e lendas. Esta peça de Hamilton é estranha, e pouco de óbvio podemos observar nela. É exatamente esta estranheza que faz com que uma peça de Arte sofra inúmeras interpretações, pois o óbvio nada significa a um artista, o qual convida-nos a entrar em sua mente e a desbravar esta. O presidente Kennedy olha para o futuro, um tanto assoberbado por tanta responsabilidade. Seu rosto nem precisa ser totalmente revelado, e o espectador sabe de quem Hamilton fala. JFK é uma figura tão pop que apenas uma parte do rosto é o suficiente para que seja identificado. É um líder confiado por seu próprio povo, num carisma como de o Obama. E a estrela do xerife dá-lhe autoridade para interferir à vontade nos assuntos de estado. Ele não é presidente; ele está presidente, e sabe que um dia deixará o Salão Oval da Casa Branca, passando a tocha para o próximo eleito pelo povo. Mesmo assim, Kennedy tem um carisma de rei, jamais perdendo a majestade, mesmo após o brutal fim do seu mandato, sendo eternamente lembrado pelas tradições ianques. Raios de Sol irradiam do líder, o qual parece estar numa entrevista coletiva, dando atenção a todos os jornalistas, que iluminam-no com os flashes de evidência da Pop Art.

Acima, Interior II, de 1964, um óleo com colagem e relevo de alumínio sobre madeira. A presença feminina é marcante, dominando o quadro. A mulher em preto e branco, com um elegante penteado, lembra do glamour dos filmes em preto e branco. O televisor representa a cultura de massa, motif da Pop Art. A cadeira de rodinhas tem assento vermelho, sangrando em dor como em uma cruz. A mulher é a dona da casa, e o homem sequer aparece. Há uma certa predominância de cores neutras. Um tapete amarelado traz borrões de tinta, num movimento artístico que libertou a Arte em muitos sentidos – o século XX mostrava-se em sua plenitude pós-guerra. A mulher está de bolsa e salto alto, pronta para sair, arrumada, maquiada e perfumada, uma diva. Ela tem o controle sobre tudo e todos, opondo-se ao brilho viril de JFK. As pernas da cadeira parecem ser de uma aranha, ameaçadora, enquanto um estreito retângulo negro, abaixo do televisor, é como se fosse uma pata decepada da aranha. A mulher reina no lar, e atrás dela vemos outras partes da casa, mostradas de forma discreta, pois o centro de tudo é a mulher, talvez uma catarse de Hamilton para exorcizar o Complexo de Édipo – é o poder terapêutico da Arte, com catarses que faxinam a alma. Não se trata de um quadro escuro e misterioso, mas de um quadro iluminado e limpo, na mulher que se empenha em deixar a casa sempre impecável enquanto o marido sai para trabalhar, e talvez, nesse período, a mulher entregue-se a si mesma e não ao lar que ajudou a construir e manter. A mulher está dizendo Tchau, volto tal hora. Uma pequena tomada elétrica está desplugada, do modo como a Rainha do Lar quer, às vezes, desplugar-se do dia-a-dia e ausentar-se de um mundo às vezes enfadonho. A mulher está meio presa, pois, além do casamento, quer algo a mais da vida, mas não sabe o quê. A mulher está em um vazio existencial, incerta, duvidosa. Ela sabe que, no fim do dia, tem que voltar para casa, fazer o jantar e receber o marido bem bela, lépida e faceira – é uma prisão. A mulher está com um pouco de ódio em relação à sua própria posição subalterna, numa sociedade patriarcal – uma mulher não pode ser livre, mas pertencer a um homem, seja o pai, seja o marido. Ela esqueceu de desligar o televisor, o qual funciona indiferente ao drama desta dona de casa. Eu próprio sou um filho da comunicação de massa, e passei minha infância em frente à televisão. A mulher quer algo mais do que o consumismo pode oferecer – ela quer realização, sentido na vida. E, como disse-me uma grande amiga psicóloga, É tão desinteressante uma pessoa que só é dona de casa. A mulher está prestes a encarar um desafio, o desafio de dar a volta por cima. Torcemos por ela, pois queremos que ela seja feliz e realize seus próprios sonhos. E o tapete multicolorido dá alegria a essa busca existencial, dando um leque de opções à mulher em crise. A mulher está dando-se conta de que estar sempre arrumada e perfumada não é tudo na vida. É uma perua que foi desde sempre educada a servir a um homem. A mulher está percebendo que tem que se esforçar e catartear demônios. Força, mulher!

Acima, Swingeing London 67 II, ou seja, Londres Violenta 67 II, uma serigrafia e óleo sobre tela de 1968. Um quadro misterioso, no qual poucos elementos podemos identificar. Parece que há dois cavalheiros evitando de ser fotografados, tendo uma atitude antipática frente à câmera e cobrindo os rostos com as mãos. Parece que estão numa boate ou num trem de metrô. O agressor é o fotógrafo, que, mesmo vendo a aversão dos homens, insiste em fazer o registro fotográfico, como na baixaria dos tablóides sensacionalistas ingleses, os quais apelam à falta de ética e integridade para vender jornais. É a mazela da cultura de massa e de consumo – quanto mais vendas, melhor, nem que para isso seja preciso publicar artigos mentirosos, parciais ou vulgares. Os tablóides não querem ser respeitados; querem ser lidos pelo maior número de pessoas possível. Os homens sabem disso e evitam a lente ao máximo. Uma celebridade paga o preço por ser uma celebridade, e o desrespeito dos paparazzi toma forma, invadindo vidas, desrespeitando espaços e coisificando pessoas – transformando-as em produtos –, fazendo com que as vidas dessas pessoas tornem-se um número de circo dos horrores. O ser humano tem uma tendência à fofoca, e os tablóides são uma prova disso. A agressiva luz do flash fotográfico revela-se inconveniente, invasiva e amoral, nunca importando-se com a integridade de um profissional de imprensa. Os homens do quadro não estão dispostos a fazer parte desse circo, e não querem sua intimidade exposta, no desejo de preservação das pessoas discretas e íntegras. O fotógrafo aqui é persona non grata, e não percebe que a vida que leva, visando dinheiro, é válida. O fotógrafo tem que repensar sua própria vida. A escuridão predominante nesse quadro é um retrato pessimista e sem ilusões, e a aludida violência no título fala dessa invasão, a qual destrói a dignidade de um ser humano – tanto quem fotografa quanto quem é fotografado. O flash é forte como a luz solar em um dia claro de verão, e essa agressividade revela-se sem sentido. É o vício humano em falar (mal) dos outros. Como diz uma marchinha de carnaval, a água lava tudo; só não lava a língua dessa gente.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário