quarta-feira, 21 de março de 2018

Amando Amaral



A intelectual Tarsila do Amaral foi uma das estrelas do Modernismo Brasileiro, movimento que revolucionou a Arte e rompeu com velhos moldes acadêmicos, trazendo frescor ao Século XX, numa onda revolucionária e impactante que desagradou os mais conservadores, pois, parafraseando Elis, “o novo sempre vem”. Obra de Tarsila já esteve no Museu de Arte Latinoamericana de Buenos Aires, o MALBA, e, recentemente, Amaral ganhou mostra no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MOMA. Chic, não? Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Lua, 1928. Os mistérios dos ciclos lunares, nos mistérios do feminino, no oposto do Sol, pois, se não podemos ver este diretamente, podemos ver a branda Lua diretamente, numa suavidade feminina, numa Tarsila mulher expressando-se como tal, e temos em Tarsila o masculino também, numa artista que teve as bolas para ousar e transgredir, tendo coragem, apesar de sentir um friozinho na barriga. Aqui, temos uma cena solitária, sensual, e a Lua segue só no céu, cercada por sensuais brumas e nuvens, como véus mágicos de uma noiva estonteante, a estrela do casamento. A suave luz da Lua banha os céus, em curvas sedutoras, relaxantes, numa artista querendo relaxar e produzir no ateliê. É o enigma do luar: está noite mas, ao mesmo tempo, há uma certa claridade, nas noites claras tropicais de luar, do modo como os chineses se guiam pelo calendário nos ritmos lunares. Se o Sol é simples e direto, nascendo e morrendo linearmente ao dia, a Lua é mais complexa, alheia ao Sol, nos ciclos lunares que guiam os úteros menstruados – a Lua é linkada à Mulher. Estes céus têm um azul marinho discreto, fechado e denso, contrastando com as nuvens brancas, banhadas pela luminosidade do satélite natural. A cor desta Lua é amarelada, como se quisesse ser ouro e concorrer com o Sol para ver quem é mais belo. Este é um quadro sem linhas tensas, sem fálicos pensamentos racionais, sem a tensão do mundo dos Homens, sem guerras, sem tensões entre países, integrando o Globo sob a mesma mãe, ou seja, a Lua, pois, quando se viaja para o Exterior, até para os lugares mais longínquos, a pessoa fica espantada ao ver que, não importando onde está, a mesma Lua de sempre estará lá, unindo continentes, fazendo-nos humanos, igualando-nos. Esta Lua parece ser um colar dourado, adornando o pescoço de uma mulher nobre, numa Lua Minguante ou Crescente, sempre pulsando no seu ritmo de inchar e desinchar, como se respirasse como as ondas do Mar – a Natureza está toda interligada, numa única estrada, na sensualidade integradora de Tao, o Uno. Na porção terrestre do quadro, um gramado de um verde cinzento, discreto, perfeito como um carpete, convidando-nos a tirar os sapatos e sentir a suavidade desta grama divina, relaxante, reconfortante. Temos, cruzando este gramado, um rio curvilíneo, integrando-se à sensualidade fluidia da Lua e do Céu Noturno, deixando correr uma água fresca, pura, nutrindo as entranhas da Terra, num quadro tão paradisíaco como este, como se Tarsila soubesse como são acolhedoras as colônias espirituais da Dimensão Metafísica, do plano onde os arrogantes orgulhos mundanos perecem. E temos aqui uma forma enigmática: não sabemos se é um cacto ou uma figura humana. Se for um homem, ele parece abanar para a Lua, querendo falar com a noiva dos céus negros, seduzido pelo brilho suave e discreto dela, apaixonado por uma noite tão amena e gostosa, paradisíaca, ideal; se for um cacto, está absolutamente sem espinhos, sem as vicissitudes dolorosas e inevitáveis da Vida, num vegetal sem a agressividade espinhosa, num ser vivo relaxado e tranquilo, que não se sente obrigado a pegar em armas e matar seus irmãos – Tarsila era da Paz. Tudo neste quadro entra num só ritmo, numa só artista, na ambição de se unir ao Mundo e servir este, do modo como Tarsila o fez, sempre colocando sua inteligência a serviço dos outros seres humanos, merecendo reconhecimento nacional e internacional, ou seja, universal.


Acima, Abaporu, 1928. Este é um dos quadros mais emblemáticos da carreira de Tarsila. Não podemos ver se é um homem ou uma mulher, numa androginia, desprovida de sexo e de desejo sexual. O corpo está completamente nu, entregue, exposto, no sentido de que o artista coloca a cara a tapa, arriscando-se, ousando, equilibrando-se numa linha tênue, desnudando-se. Há aqui uma visão de perspectiva, como se o “fotógrafo” enquadrasse o modelo de baixo para cima, dando o efeito de desproporção. O pé e a mão são gigantescos, descomunais, como se, com seu peso, com a gravidade, estivessem puxando o corpo para baixo, aprisionando em uma dimensão inescapável, só escapável no momento do desencarne, na libertação do espírito. É uma pele bonita, homogênea, da raça branca, talvez um autorretrato de Tarsila. A minúscula cabeça está repousada no braço ao lado, como se estivesse pensando, pois Tarsila foi uma grande cabeça, acima de mediocridades. A cabeça tem cabelos negros curtos, talvez pela influência das tendências capilares da época, numa Tarsila moderna, cosmopolita, citadina, abrilhantando a cena cultural brasileira. Os olhos estão tristes, mergulhados em reflexão e Filosofia. Vemos um nariz delgado e não vemos boca, numa face minimalista, num quadro tão simples em formas, no poder da Simplicidade. Mais uma vez, vemos um cacto sem espinhos, sem amarguras, como se fossem pernas de mulher depiladas, femininas, preparadas para o Mundo, na questão da autoestima – cuidar-se, amar-se, aceitar-se. Ao fundo, um Céu de Brigadeiro, límpido, majestoso, rico em claridade, iluminando o Mundo e os seres deste. Esta forma humana repousa em um monte verde, suave, sem recortes de picos espinhentos, acolhendo como em um lar perfeito, reconfortante. As mãos não têm unhas, numa preocupação de Tarsila em se ater ao essencial. O pé tem unhas em quase todos os dedos, e o mindinho está carente, sem unha, desprotegido, na sensação desoladora de um morador de Rua, entregue à própria sorte, como um cachorro abandonado. Acima, regendo tudo e todos, um brilhante Sol dourado, como uma deliciosa rodela de laranja, trazendo toda a doçura da riqueza agrária brasileira. O Sol é um grande olho que tudo observa, banhando seus filhos, esbanjando vida e energia, nunca deixando de brilhar entre as esferas do Sistema Solar. É como uma moeda de ouro, trazendo a riqueza que é a Vida, por Terra, Ar e Mar, trazendo os seres vivos à Vida. É como uma bola de espelhos numa boate, exercendo fascínio, sendo, ao mesmo tempo, perigosa – não olhe diretamente para ela, no modo como uma nação é pacífica mas, se provocada, irá à Guerra. Precioso como uma pérola gigantesca, o Sol, um dia perecerá, e Tarsila traz o Sol para perenizar este, eternizando-o na forma de Arte, garantindo que, pintado aqui, jamais deixará de funcionar, na intenção artística de desafiar o tempo e os prazos de validade, na busca pela Vida Eterna – Tarsila quer se lembrada. Este quadro é maravilhoso em sua simplicidade, colocando na tela somente o essencial, trazendo a limpeza espiritual tão almejada pelos rituais de purificação humanos: banhar-se, escovar os dentes, lavar roupa e limpar uma casa. A pele desta figura humana tem um brilho saudável, viçoso, jovial, sem qualquer indício de rugas ou marcas de expressão, do modo como o pensamento racional não perece. Este Sol é como a explosão titânica de uma supernova, abalando as estruturas da Arte, trazendo o inevitável – a Evolução, e os novos capítulos vêm.


Acima, Antropofagia, 1929. Mais uma vez, o sol que parece uma rodela de laranja, na riqueza gastronômica popular brasileira, num refresco revigorante e delicioso, como foi a Arte Moderna Brasileira. O título traz dois corpos nus, entrelaçados um no outro, e um grande seio lactante é revelado, nutrindo a Natureza, no vínculo forte entre mãe e cria, no modo como a amamentadora dá tudo de si para o filho, do modo como uma cachorrinha que tive, que, ao amamentar a ninhada, ficou desnutrida, numa mãe sempre se doando ao máximo pelos filhos, numa Tarsila dedicada. As cabeças estão sem rosto, sem olhos nem nada, apenas cabeças carecas, numa Tarsila atenta ao essencial, ao mínimo, à elegância comedida. Estes corpos formam um só, como numa simbiose vegetal, onde um organismo beneficia o outro, e vice-versa. Ao fundo, uma grande folha de bananeira, nas densas matas virgens brasileiras desbravadas pelos portugueses, num fruto tão barato e nutritivo como a banana, no modo como o grande artista se torna alimento para os olhos do espectador, como Tarsila alimentou (e continua alimentando) inúmeros olhos. Um pouco abaixo da folha, uma forma que parece ser uma espátula vermelha, no sangue pulsante da Miscigenação Brasileira, numa mistura única, sem par no Mundo. É o sangue derramado nas guerras, que dizimaram os índios, que outrora foram senhores das Américas. Mais uma vez, a paixão de Tarsila por cactos, sempre sem espinhos, sempre gentis e suaves, na delicadeza contraditória da transgressão: violar e acariciar, ao mesmo tempo, sempre respeitando a tradição, apesar de contrastar com esta. Ao fundo, um céu limpo, sem nuvens cinzentas de incertezas existenciais, sem a dúvida cinzenta do que nos espera após o Desencarne. O quadro todo tem formas arredondadas, sem arestas a ser aparadas, e o seio descomunal tem papel central na história contada aqui, entrando em harmonia geométrica com o Sol, o provedor, o Senhor dos Planetas, o Tao provedor, o qual, apesar de nascer e morrer no horizonte, jamais se esgota, na estabilidade e na continuidade da produção de um artista, sempre criando, com uma mente inquieta, fértil como a Flora Brasileira. Os rostos sem face são como bonecos, seres estritamente espirituais, metafísicos, livres das vicissitudes existenciais, realizados em sua simplicidade, vivendo uma vida simples e prazerosa, na delícia do metafísico mortificante, que traz a existência racional, sem as marés traiçoeiras das emoções. A folha de bananeira parece tremular em uma brisa suave, e podemos ouvir o sensual farfalhar das folhas ao vento, um barulho aveludado, como uma dama caminhando e fazendo farfalhar o seu próprio vestido, num barulho minimalista, sutil, e, em paradoxo, poderoso e forte, pois a sutileza é uma onda de tsunami: curva-te e reinarás, diz Tao. É como um jardim fabricado, com plantas e gramados artificiais, de carpete, como uma casa confortável, cheia de prazeres de comodidade, um lugar que acolhe e traz a Paz ao filho que ali mora, no prazer de quem produz e contribui para com a Sociedade. Os tons de verde musgo trazem densidade e discrição, numa Tarsila também discreta, colocando a própria (aguçada) mente a serviço do Mundo.


Acima, Cartão Postal, 1928. Uma mãe macaca e seu macaquinho repousam alegremente em um galho – cada macaco no seu galho. Simples casinhas brancas e rosas trazem lares simples, acolhedores, sem as sobrecargas das vaidades humanas, que tanto atormentam a Sociedade. As folhas da árvore onde repousam os símios têm formas de coração, numa Tarsila tão apaixonada por Arte, tão envolvida em produzir com amor de mãe. O longo e forte rabo da macaca-mãe agarra-se ao tronco, como uma forte âncora, responsável por trazer estabilidade ao navio, fazendo Tarsila manter os pés no chão, concentrando-se em produzir obras dignas de reconhecimento. A vegetação é frondosa e abundante, brasileira. O Sol tem um formato oval, num mágico ovo de Páscoa, banhando de ouro as abençoadas terras tupiniquins, e abençoando Tarsila, a queridinha do Modernismo. Ao centro do quadro, parece ser o Pão de Açúcar no Rio de Janeiro, com suas rochas intimidantes e monumentais, enormes. Esta Baía da Guanabara tem uma água limpa, azul, deliciosa, e podemos ouvir o som de Bossa Nova, na tranquilidade morosa do carioca. Além do Pão de Açúcar, vemos mais formações gigantescas, num Rio de Janeiro abençoado por Deus, o Sol Criador, o fértil ovo. No lado esquerdo do quadro, duas palmeiras de proporções titânicas, desafiando a Lei da Gravidade, como na flora do Jardim Botânico do Rio, imperiais, altivas como os Orleans e Bragança. Ao lado do Pão de Açúcar, uma ponte, ligando lugares e pessoas; ligando Tarsila ao mundo de espectadores e admiradores. Aqui, temos uma tropicalidade idealizada, como a índia Iracema, de beleza arrebatadora.  A grande árvore à direita tem raízes fortes e profundas, trazendo estabilidade à copa, no modo como o Brasil se liga à Copa do Mundo, na tradição brasileira em torno do Futebol. A Arte se enraíza no indivíduo, provocando uma avalanche de percepções, pois, sabemos, a função da Arte é tocar o Humano, tornando-se indicador da Inteligência, do Metafísico.


Acima, O Pescador, 1925. As copas das palmeiras parecem aranhas, tecendo pacientemente suas teias, com uma precisão matemática. Parecem folhas de maconha, numa erva que anuvia o pensamento do usuário. Por todo o quadro vemos formas que parecem ovos, de várias cores, guardando vida dentro de si, esperando pela hora da desova, como um artista faz a desova de uma obra ou de uma exposição, esvaziando-se, colocando seus “filhos” no Mundo, com orgulho de mãe. A água aqui é doce e plácida, tranquila, muito calma, e o pescador exerce com calma e prazer sua função, captando um peixe em sua rede. O peixe é o alimento essencial e diário, na luta pela Vida, como índios homens de uma tribo, com a função de sair de casa e pescar ou caçar, na eterna divisão de tarefas entre homens e mulheres. O chapéu do pescador é a proteção, o resguardo, como usar filtro solar na beira da praia, na ação de precaução. A camisa e calça do pescador estão arregaçadas, não só para poder colocar os braços e pernas n’água, mas também para aguentar o calor tropical brasileiro. Mais ao fundo vemos morros arredondados que parecem seios femininos, na Terra Mãe, sempre provendo seus filhos, sempre exalando vida, como um belo chafariz, jorrando cornucópia, como as pérolas que Iemanjá dá aos pescadores, simbolizando a riqueza dos frutos do Mar. Como vemos com frequência em Tarsila, um céu plácido e limpo, glorioso, pacífico, sem as arestas do mau tempo, da chuva impiedosa, dos céus cinzentos e incertos da dúvida existencial – Tarsila retrata um Brasil ideal, paradisíaco, no desejo de ver o Brasil se tornando um lugar belo e harmonioso. Vemos pitorescas casinhas de pescadores, simples, convidativas, num lar que recebe o convidado oferecendo um cafezinho. Tarsila gosta dos biomas brasileiros, sendo uma amante da Natureza, numa época em que o Ambientalismo ainda não existia. Ao lado do pescador, uma planta de pontas afiadas, abrasivas, em meio a uma base inóspita, simbolizando o milagre da Vida, de um ser que encontrou força para prosperar na adversidade. Vemos também folhas gigantescas de bananeiras, num tropicalismo pré-Carmen Miranda e pré-Bossa Nova. Podemos ouvir o delicioso ruído de águas plácidas, como no reconfortante útero materno. Tarsila adora a simplicidade, e, em vida, deve ter sido uma pessoa simples, sem afetações ou frescuras. Inteligente.


Acima, Operários, 1933. Os rostos mostram a diversidade racial brasileira, com peles de vários tons, numa riqueza cromática, na diversidade. Ao fundo, as cinzentas chaminés industriais, jorrando fumaça aos céus, na “escravidão” industrial, onde tudo gira em torno de produtividade, exigindo o máximo de um operário, muitas vezes explorando este. Todos os operários aqui estão sérios, nunca sorrindo, numa vida dura e laboriosa, do modo como a Revolução Industrial trouxe uma nova escravatura, só que remunerada. Os prédios industriais aqui são impessoais, duros, num patrão que exige o máximo dos empregados. Seria este um manifesto político-social de Tarsila? Vemos apenas um homem de óculos, simbolizando a Intelectualidade, num trabalho duro que pouco exige da mente do operário, num trabalho subserviente, anônimo, que não traz muita realização pessoal. Os operários são anônimos tijolos em uma parede, indistintos, sendo apenas mais um impessoal peão no tabuleiro. Vemos tanto homens quanto mulheres, num mercado de trabalho aberto à diversidade de gênero. Vemos pessoas mais velhas e pessoas mais jovens, nas décadas que uma pessoa tem que trabalhar para poder se aposentar. É a passagem do tempo, e o indivíduo, involuntariamente, torna-se um agente desse sistema capitalista, onde tudo é dinheiro. Os operários olham diretamente para o espectador, trocando olhares, comunicando-se, expressando a cinzenta tristeza da vida de proletariado. Todos têm carteira assinada, e gozam de todos os direitos, num Brasil que não mais é exclusivamente agropecuário, num Brasil que está se industrializando, como no boom industrial chinês. A seriedade deste quadro é arrebatadora, e Tarsila faz questão de mostrar essa vida tão dura, de tantas horas de labor por semana. Talvez o operário esteja aqui de mau humor por se sentir mal-remunerado, na inevitabilidade do canibalismo capitalista, no qual o trabalhador acaba sendo lesado de alguma forma. É o Capitalismo, que só interpela quem tem dinheiro. Mais à direita, vemos um jovem negro, descendente de escravos, e o jovem, de algum modo, também é escravo, ironicamente, mesmo após o ano de 1888, na Abolição da Escravatura – a exploração do Homem pelo Homem não cessa.

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