quarta-feira, 14 de março de 2018

Na Mira da Arte




O catalão Juan Miró emergiu como um dos principais artistas espanhóis da História. As formas simples e abstratas de JM continuam a fascinar o Mundo. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Azul II, 1961. O traço vermelho é como um ferimento sangrando, sendo vestígio de uma agressão, de uma transgressão, do modo como uma sociedade evolui a partir da transgressão de alguns de seus membros, no poder do Escândalo. É um traço tosco, estremecido, incerto, e é um falo descomunal, tentando impor ordem e razão a um mundo de caos. É como uma brecha, a entrada de uma vagina, no aspecto de ferimento, do modo como os transexuais se castram voluntariamente, almejando serem considerados mulheres pela Sociedade. O clitóris tem esse aspecto de castração, como se fosse uma genitália masculina castrada, mortificada, desprezada, algo que vai contra o Espiritismo, que diz se deve mortificar o espírito e não o corpo, mas cada um é livre para viver como quiser, e, nesse sentido, há o conceito de Livre Arbítrio do Espiritismo. Este quadro tem formas incertas, como se tivesse sido concebido através de um acidente, de porções de tintas caídas ao acaso sobre a tela, mostrando as saudáveis transgressões das Artes Plásticas no Século XX, um século de inovações, como o surgimento do Cinema e, mais ao final, da Internet. Este traço rubro deixa uma espécie de rastro, como cocozinhos de ovelha, do modo como as fezes representam a catarse: a expulsão de algo que, não expulso, estava fazendo mal ao indivíduo catarseante. São como esferas de um mesmo sistema solar, como uma família, com vários irmãos sendo criados debaixo do mesmo teto, num útero em comum, um tronco em comum, na Árvore da Vida. Os pontos negros são incerteza, num Miró que presenciou a Guerra, tendo esta deixando um rastro de destruição e amargura, no caos bélico, onde as pessoas padecem de fome, em meio a vidas dilaceradas e almas assassinadas. Ao fundo, temos um azul como Céu de Brigadeiro, limpo, claro, num Miró observando com certeza e clareza a própria existência. Só que, neste céu tão bonito e aberto, há os pontinhos negros de Morte, de incerteza, numa dúvida existencial: para onde vou? Miró não finge ser uma pessoa resolvida, uma pessoa absolutamente sem fraquezas ou inseguranças, pois quem entra em contato com a própria fraqueza, fica forte, no discernimento taoista: curva-te e reinarás. O céu azul também tem um quê de tristeza, mesmo frente a um dia tão ensolarado, pois os pontos de escuridão “poluem” a cena e trazem a indefinição do Ser Humano, indefinição esta que acaba por nortear as atividades humanas, como a Arte, pois um ser humano só pode fazer Arte sendo humano, incerto, inseguro, pois não haveria algo mais repulsivo do que uma pessoa que posa como dona da Verdade. A insegurança traz estabilidade. Os pontinhos parecem fazer fila, como patinhos seguindo a mãe, e esta mãe é o risco vermelho de sangue, de guerra, de morte violenta, como inúmeros mortos no Holocausto. Miró sabe que a Vida não é belíssima, e abraça este fato feio. Os pontos negros são como ilhas em um oceano paradisíaco, do modo como se diz que ser mãe é padecer no Paraíso. Estas ilhotas são incertezas cercadas, ilhadas, isoladas, e o artista consegue esse isolamento, do modo como o Ser Humano precisa de um pouco de solidão para produzir, pois nada mais doloroso do que estar, o tempo todo, cercado de pessoas – cada um tem que se recolher de vez em quando, e é esta a solidão saudável do estúdio do artista, de qualquer artista. O fundo azul é uma sopa, nutrindo, com ingredientes jogados aleatoriamente, e o líquido aqui está completamente parado e estagnado, pacífico, e tudo aqui paira em paz. O azul é a sensualidade da beira da praia, um espaço vazio, uma lacuna pronta para ser preenchida por vida, por pessoas, e é neste vazio onde reside o fascínio, como um copo, que brilha ao ser utilizado, sendo preenchido de água que mata a sede – propósito, função, dignidade, identidade. O traço vermelho, quente, contrasta com o azul frio, numa tentativa de equilíbrio, de obter uma temperatura ideal – nem quente, nem fria. O artista obtém estabilidade ao produzir, servindo ao Mundo, às demandas infindáveis do Mundo. Neste quadro há um equilíbrio de formas, nos mistérios assimétricos, como numa equação matemática. E esta causalidade, essas formas que pingaram por acidente, trazem o papel lúdico da Arte: ter senso de humor é imprescindível.


Acima, Mulher em Frente ao Sol, 1950. Seria a bola vermelha o Sol nascente da bandeira japonesa? Uma poça d’água quente, fervendo, num Miró ardente em criatividade. Três asteriscos brilham como estrelas, como nas Três Marias do Cinturão de Órion, guindo navegadores. São três mucosas anais, prontas para expelir o que deve ser expelido. Esta mulher é estranhíssima, com um olho só, no famoso personagem Guiodai do seriado japonês Changemen, ou como no monstrengo simpático do filme Monstros S.A., ambos com um só olho e uma cabeça descomunal, abrigando um cérebro grande, brilhante, como numa barriga de mãe pronta para o parto, pronta para fazer Arte. Os braços e pernas da mulher são curvos, parecendo um desenho infantil, numa criança se esforçando para se expressar ao Mundo. A mulher aqui tem um grande olho onisciente, que tudo registra, tudo controla, como num regime totalitário, ditatorial, que vigia e controla impiedosamente seus próprios cidadãos, como câmeras de um Big Brother, numa clareza fascista, como um corpo sendo velado por muitos olhos, num defunto pronto para levantar e avisar que não morreu. As estrelinhas ao redor são o encanto de uma fada, e uma das pernas da mulher segura uma varinha mágica, ou um pirulito, ou um cetro, reinando sobre o Povo. O cabo longo é a regência fálica, pronta para punir o cidadão que ferir a Lei. O corpo da mulher é num formato de saia, e o olho descomunal tem um formato de balão de festa de criança, num Miró que se diverte ao criar, na empreitada dos homens querendo ser mães, genitoras. Este balão a gás sobe aos Céus, nas alturas de sonhos, na marcha do Ser Humano para se libertar e viver feliz, sem tanta dor. No cabinho desse “balão”, um formato de gota vermelha, num nariz sangrando após sofrer uma agressão, numa lágrima rubra, cheia de vida, de dor e de propósito. Ao redor da cabeça da mulher vemos tentáculos, como uma Medusa, aprisionando e destruindo homens, castrando-os. É um polvo com várias faculdades, como um deus hindu, como um macrófago, que se alimenta das bactérias que fazem mal ao Organismo. O artista se nutre dessa bactéria, e produz Arte, curando-se de dentro para fora. O grande Sol vermelho está abaixo da mulher, e não sabemos se está nascendo ou morrendo, do modo que, sempre morrendo, o Sol renasce, nos mistérios da Ressurreição de Jesus, que deixou a Dimensão Material para trás e (re)ingressou no Plano Metafísico, onde tudo é mental e nada é material, numa dimensão em que as riquezas mundanas são desprezadas, trazendo, assim, felicidade incondicional. Este sol não é perfeitamente redondo, é incerto, imperfeito, e assim Miró o quis, como se o sol estivesse sofrendo influências de força maior, perdendo sua perfeição e ingressando nos maravilhosos meandros imperfeitos da Arte. Os asteriscos cercam a mulher como se quisessem protegê-la e abençoá-la. O sol está em segundo plano, superado pela mulher gigante, e é como uma bolha de sabão, tortuosa, fluidia, ultrassensível, podendo se desfazer com um simples toque ou sopro – é a fragilidade do Ser Humano. Os asteriscos têm pontas espinhosas e agressivas, e dão um aviso: mantenha-se distante. As pontas estão prontas para estourar o sol rubro, mas não parecem ter o mesmo poder sobre a mulher, a qual reina no quadro, preenchendo-o. É o enigma dos desenhos infantis, no qual a mar é retratada de forma gigantesca, como no famoso personagem Babyssauro, que chamava o próprio pai de “Não é a mamãe”. E por que um só olho? Porque representa a unidade do ser, que tem que ter uma vida só, uma única e simples vida, nunca almejando as sujeiras das vidas duplas. O olho uno é o desejo de paz e integração, e o círculo rubro é um doce tomate, suculento, pronto para ser devorado, no prazer de comer. Aqui, a cabeça da mulher imita o sol, tornando-se o único caminho, a única porta, no inevitável destino – o desencarne. De cabeça para baixo, o quadro parece trazer um tamanduá com um longo bico, nutrindo-se de uma ameba deliciosa e nutritiva, na luta pela Vida. O olho amarelo é o pus, resíduo da luta contra visitantes indesejados, no ato catártico de expulsão.


Acima, Ouro de Azure, 1967. O quadro tem um calor sedutor, num Miró sempre atento às cores, numa vibração espanhola, latina, apaixonada. Mais uma vez, vemos os asteriscos estelares, com traços um tanto tortuosos, incertos, infantis, trêmulos. O círculo azul, cercado por uma aura branca, num formato um tanto oval, é o fértil ovo de Páscoa, numa cor arejada, ao ar livre, na esfera azul que é a Terra, vista do Espaço pelos astronautas, fazendo estes crer em Deus, em uma inteligência suprema, que arquitetou o Universo. O ovo está prestes a explodir de vida, trazendo seres ao Mundo, numa passagem, como Jesus passou ao Mundo Espiritual e os judeus fugiram do Egito. Vemos um pequeno e discreto ponto em vermelho, como um semáforo que tenta impor ordem a um mundo de caos, tentando reger a Humanidade, tendo esta tentativa frustrada por tantas e tantas vezes, fazendo-nos crer que Tao tem paciência eterna para com os pecadores, assim como é rezado na Ave Maria. Este amarelo áureo enriquece o quadro, no prazer de um Sol quentinho no Inverno, numa consolação, na promessa de um Mundo mais elevado, espiritual. É como se pudéssemos olhar diretamente para o Sol, mas este nunca podendo ferir ou ofuscar nossas vistas, num Sol vibrante, porém clemente, num ponto de equilíbrio, de ponderação, numa contradição: é forte e fraco, ao mesmo tempo. Há também no quadro elementos negros, como gotas de piche à beiramar, sujando a orla, dando-nos um aviso: estamos inseridos, entranhados na Dimensão Material. Portanto, não devemos construir ilusões em relação a uma dimensão tão dura, tão exigente, como um duro professor, que cobra o máximo do aluno. Os pontos pretos são partes queimadas, carbonizadas, num fogo que fere e viola, como num sinistro que ocorre do nada, destruindo, do modo como a Gastronomia é uma Arte fadada a ser destruída pela mastigação e pelo estômago. A grande curva negra, em forma de “C”, é um momento de guinada, em que o artista olha a si mesmo e chega à conclusão de que é Arte o que quer produzir, numa pessoa encontrando a si mesma nos labirintos existenciais. A curva negra é como uma grande lombriga, um sociopata parasita, que se alimenta de almas, sendo um verdadeiro vampiro: o sociopata fica feliz com a infelicidade dos outros; o sociopata fica infeliz com a felicidade dos outros. É uma curva bem fechada, na estrada da Vida, e nunca sabemos ao certo o que iremos encontrar ao fim da curva, nessa estrada tão imprevisível, na qual nem tudo sabemos. Na extremidade direita da curva, uma forma que parece ser uma torneira, no dispositivo da Vida: a Água é essencial, e Miró tornou-se essencial à Arte Europeia. Bem ao centro do quadro, outro traço negro, só que mais sutil, discreto e delgado. É como se o traço quisesse dividir o quadro em dois, do modo como Jesus dividiu em duas a História da Humanidade. Em comparação à linha grossa, esta é uma linha fina e elegante, a qual nunca tenta se apoderar do quadro, sendo sempre subestimada, sendo quase invisível. Esta é uma curva mais suave, não tão fechada, na sensualidade das ondas indo e vindo, respirando à beiramar. Os pontos negros são como se o quadro tivesse sido usado como alvo de flechas, estando ferido, violado, estuprado. São como cigarros terem sido apagados nele, marcando-o para sempre, no trauma do Nascimento: vir ao Mundo é o primeiro grande trauma do Ser Humano, saindo do conforto zeloso do útero, enfrentando o Mundo lá fora, tendo que ser corajoso e aventureiro. O “ouro” do título é uma almejada medalha, no topo de um pódio, na intenção dos artistas em busca da valorização.


Acima, Paisagem Catalã – O Caçador, 1924. Mais uma vez, o sedutor Sol espanhol de Miró, dourado, abundante, rico, deslumbrante. Na extremidade superior esquerda, uma estrela negra, seguida de traços que fazem-na parecer a Estrela de Belém, que guiou os Três Reis Magos até a Manjedoura. A estrela, então, tem o papel de guia, de referência, guindo Miró em meio à produtividade, na magia natalina de um pinheirinho cercado de presentes, em meio à magia da Infância, com doces lembranças, como o Cidadão Kaine lembra carinhosamente de seu trenó Rosebud, com o qual, quando criança, brincada na neve, tendo Kaine passado por um trauma, sendo arrancado à força do adorado trenó, lembrando deste em seu leito de morte. Quase ao centro do quadro, vemos uma flecha fálica, agressiva, ditando ordens, direcionando a vida em Sociedade, estabelecendo noções e leis, as quais precisam ser respeitadas, pois, se não, o Caos toma conta do Mundo. É o caçador. Na porção inferior do quadro vemos uma serpente, sinuosa e sexy como o curso de um rio, atravessando vales, rebolando como numa lambada, ou fluindo poeticamente como em uma valsa, numa sensualidade elegante, desprovida de vulgaridade. Cruzando o quadro de ponta a ponta, vemos linhas que parecem ser de um exame cardiológico, no coração de Miró pulsando e construindo obras, apaixonado, vindo de um país que, um dia, foi a nação mais poderosa e temida da Europa. Essas linhas que cruzam o quadro são como picos de montanhas, espinhosos, prontos para agredir e ferir quem ousar chegar mais perto. Na extremidade superior direita, um círculo rubro, como uma lareira que seca a umidade, trazendo consolo em um dia úmido e frio de inverno. A bola vermelha parece se mover, deixando um rastro à sua direita, assim como a Estrela Guia, como pegadas na areia, fadadas a ser deletadas pelo simples galgar das ondas à beiramar. Acima da serpente, uma forma que parece ser uma mulher, com um corpo sinuoso, com seios e glúteos, num vestido como o de uma Mortícia Adams, uma mulher sedutora, pálida, dramática. Sua cabeça é um simples círculo, como uma poça d’água, num Miró sempre atento à simplicidade, nunca querendo carregar o quadro com elementos desnecessários. Por todo o quadro vemos outros elementos, e as nuances douradas trazem tanta riqueza. Ao lado da mulher, vemos uma forma estilizada, que parece ser um homem com os braços para cima, como numa grotesca pintura rupestre, na tentativa humana em perenizar o efêmero, produzindo registros que, mais tarde, transformar-se-ia em letras, trazendo o Homo Sapiens à Era da Civilização. Pelo quadro vemos várias outras formas redondas, como, por exemplo, os círculos concêntricos ao lado da bola vermelha, a qual é um nariz de palhaço, na missão da Arte em entreter, fazendo nascer as Artes Cênicas e, depois, o Cinema. Os círculos concêntricos são como linhas de planetas em rotação, em torno de uma estrela, uma mãe, um Sol capaz de trazer calor e, assim, estimular a Vida, impedindo que um planeta vire uma mera bola de gelo impenetrável e morto. É a dança dos planetas em torno de algo maior, como no topo de um bolo de casamento, no qual reina o casal de noivos; como numa sociedade monárquica: o rei (ou a rainha) é o cidadão mais importante do reino, na tentativa do Ser Humano em imitar as obras de Deus, as quais são infinitamente maiores e melhores do que as do Ser Humano. O artista cria como Deus cria, e este é um artista incansável, sempre criando. Portanto, só resta ao Ser Humano imitar Tao. No lado esquerdo da mulher, uma forma que parece ser um moedor de pimenta, trazendo calor e diversão à comida, na apimentada paixão espanhola, na beleza arrebatadora da Dança Flamenca, celebrando a vida e a vontade de viver, de vencer, de crescer, de se aprimorar. Ao lado do sistema planetário, um ponto negro oval, como um OVNI, bisbilhotando a Terra, tentando compreendê-la, na vontade do artista em entender a Vida, trazendo esta para o nervo da Arte. Temos um catalão apaixonado pela própria terra, sendo, inevitavelmente, amado por esta também. Nunca ouvimos falar que Amor é tudo?

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