quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cândido, um Brasileiro (Parte 2)




Falo pela segunda vez sobre o pintor brasileiro Cândido Portinari. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Catequese, 1941. A tentativa da Religião em ordenar o Mundo e fabricar cidadãos com apuro moral, num grande desafio. Este padre já é idoso, tendo que ficar sentado. Os traços de seu rosto são mais definidos do que os traços dos rostos da meninada. Os meninos são todos indistintos, como anônimos tijolos em uma parede. Seria uma crítica de Portinari ou apenas uma opinião inocente? Cada menino está recém começando a vida, e ouvimos o ditado “Cresça e apareça”. Podemos ouvir a voz do padre no silêncio dos alunos que prestam atenção. É a questão do “rebanho”, na empreitada civilizatória do Vaticano, que vê no Brasil um terreno propício para espalhar a Palavra de Deus. Todos os meninos vestem indistintas roupas brancas, ao contrário do sacerdote, que está em um traje marrom escuro, discreto, profundo. Ao lado do padre, um grande vaso vermelho, na cor de Cristo sendo crucificado, no sangue do Salvador escorrendo dolorosamente pela cruz, chegando até o chão, nas mãos de Maria. Bem ao fundo no quadro, uma modesta construção de madeira, ou seja, a Escola, na missão de padres e freiras em anexar Cultura Erudita ao cidadão, civilizando este. A escolinha tem uma discreta cruz no topo do telhado, avisando que se trata de uma instituição onde os valores católicos são transmitidos. Enquanto o padre é grisalho, mostrando assim experiência de vida, os meninos são todos de cabelo negro, mostrando vidas que recém estão começando. A Escola é mais do que um lugar para crianças não ficarem o tempo todo em casa; a Escola é o baluarte da construção de uma nação, e isso não é diferente com o Brasil – é a missão do Vaticano. Enquanto o padre fala, os meninos estão em absoluto silêncio, demonstrando respeito. Na Escola, a indisciplina é punida severamente, punindo o indivíduo que não levar a vida a sério. O vaso vermelho é o vinho tomado na Missa, sempre remetendo à Última Ceia. O vaso é o receptáculo feminino, numa religião que eleva a mulher que gerou o Salvador em meio ao mistério da Imaculada Conceição – o sexo é um problema para a Igreja e não é um problema para a Psicologia. Poucos destes meninos carregam pinceladas vermelhas, da cor do vaso, no interior de um ovo de Páscoa, no mistério da vida, da vida que se gera de modo intocado – somos todos frutos de uma Imaculada Conceição, só que a nível espiritual. Tanto o padre quanto os meninos estão com os pés descalços, mostrando simplicidade e humildade, características essenciais para quem quer ganhar respeito. As freiras educam as meninas e os padres educam os meninos, na eterna ritualização humana em torno de gênero, no ritual matrimonial unindo masculino e feminino, resultando, desta junção, Tao, o caminho uno. Entre todos os meninos, há um mais baixinho do que os demais, como no pequeno Davi, que vence um gigante aparentemente invencível, como a Invencível Armada Espanhola sendo vencida por uma então humilde Inglaterra. O vaso guarda o mistério da Vida, no interior uterino, como no interior lindo de um figo cortado ao meio. E, ao lado desta escolinha no quadro, uma cerca que representa o discernimento, dividindo duas forças opostas que não são inimigas – bem pelo contrário, são amigas; grandes amigas.


Acima, Dom Quixote e Sancho Pança saindo para as suas aventuras, 1956. O Sol protagoniza glorioso aqui, espalhando uma luz dourada pelo quadro, emoldurando a empreitada de Quixote e seu companheiro. A lança fálica de Quixote é tão extensa que escapa ao quadro, num cavaleiro protegido por uma armadura impenetrável, do modo como a Psicologia diz que saber dizer “não” é como vestir uma armadura. Esta armadura reluz lustrosa e altiva, e Quixote monta um inquieto e majestoso cavalo branco, enquanto Pança parece montar um jumento: seria o jumento a “burrice” em Quixote ser tão alucinado e louco? Enquanto o ossudo Quixote é magérrimo e delgado, Pança é bem obeso, como na comédia hollywoodiana de “O Gordo e o Magro”. Quixote é o líder protagonista, sendo seguido por Pança, que se mostra mais discreto, sempre à sombra de seu senhor. Os pés de Quixote são pontiagudos tais quais agulhas, numa passada agressiva, de um homem louco que vê gigantes ao invés de moinhos de vento. Por todo o fundo do quadro, linhas amarelas ondulantes, mostrando o movimento dos ares e da luz solar, dando mais movimento à cena, como num intenso dia de Sol de Verão, do modo como Quixote tem obstinado esclarecimento de que não é louco. A armadura de Quixote é um exoesqueleto de formiga, rechaçando as armas do inimigo. A cena tem movimento, quase como Cinema, e podemos ouvir os passos dos animais troteando, no barulho de ferraduras se impactando com o chão. Pança parece usar um chapéu, enquanto a cabeça deste Quixote é estranhíssima, e fica difícil ver ali um rosto humano. Quixote e a lança formam um ser só, e a arma é uma extensão do corpo do cavaleiro, do modo como o pincel e Portinari formaram um só ser; do modo como o piano se tornou parte de Tom Jobim. Abaixo no quadro, a bela assinatura do artista, tranquilo. As patas dos animais são elegantes e nobres, num Portinari amante da Fauna e da Flora. E a dupla, como diz o título, sai para uma aventura, buscando propósito e motivação na Vida, do modo como Portinari encontrou-se na Arte.


Acima, Futebol, 1935. Portinari traz uma paixão nacional – o Futebol. Meninos pobres jogam em um rústico chão terroso, e não em um gramado apropriado, provavelmente com uma bola de pano. Vemos a mistura racial brasileira, pois há meninos brancos e negros. Uma cabra e um jegue dividem a cena, alheios ao jogo que ocorre. Seria esta uma doce lembrança de infância de Portinari? Um poste de luz tem claro formato de cruz, como se estivesse abençoando a diversão dos meninos, num Portinari religioso, apesar de nunca ter se tornado pintor de Arte Sacra. Os meninos pobres sequer têm dinheiro para jogar com chuteiras, e ralam os pés no chão duro, assim como é dura a vida nas camadas sociais miseráveis, numa denúncia social do pintor, denunciando a Pobreza do Brasil. Bem ao fundo, uma escolinha com a bandeira nacional hasteada, num Portinari patriota, confiante no fato de que o Brasil é o país do Futuro. A aula acabou (ou está em intervalo), e os meninos aproveitam o período de folga. Este chão é bem avermelhado, como se estivessem sangrando os pés descalços miseráveis dos meninos, como se estivesse escorrendo sangue da “cruz” ao fundo. Também ao fundo, um pequeno cemitério da vila, um receptáculo que espera por todos nós, no inevitável Desencarne. Mas este cemitério não é sombrio ou agourento, e integra-se normalmente na cena, na Morte sendo vista como algo natural e normal. Quase ao lado do cemitério vemos uma vaca, que é o princípio materno provedor de leite, ou seja, a Mãe desses meninos todos, provavelmente a mulher que teceu a bola de pano. Na cena, vemos três tocos de árvores cortadas, e isso é a Mortificação, na necessidade do espírito de se desapegar de ilusões e viver uma vida simples, sem vaidades faraônicas. As árvores ceifadas são a inevitabilidade do Progresso, tendo a Natureza que dar lugar à Civilização, num Portinari progressista, honrando os dizeres da Bandeira Nacional. Ao fundo da cena, vemos ainda árvores frondosas, e vemos também plantações de alguma cultura, na fecundidade da Terra Brasileira. Também ao fundo, vemos mais tocos cortados, servindo como delimitações, cercas, num Portinari se delimitando a retratar uma cena determinada. O céu da cena é claro e azul, belo, num dia de Sol sobre o território nacional, como no azul da Bandeira. É um retrato doce de um Brasil como uma nação prestes a ingressar na II Guerra Mundial, tirando a vida e a diversão destes inocentes meninos, transformando estes em soldados que vão ao encontro da Morte, pois, como eu já disse, lá está o cemitério.


Acima, Índia e Mulata, 1934. Mais uma vez, a peculiar Miscigenação Brasileira, diferente dos EUA, nos quais, em geral, negro casa com negro e branco casa com branco. Novamente vemos uma árvore ceifada, morta, sacrificada. A índia, de vestido rosa, repousa a mão sobre o ombro da mulata, como uma irmã consolando outra irmã, como comadres, na junção brasileira de sangue de raças e etnias diversas. Seriam elas quem cortou a árvore? Troncos cortados repousam ao chão, numa cor metálica, como algum produto industrial, em um Brasil tão vasto ecologicamente. Há um vínculo sanguíneo entre as mulheres aqui, e parece sangue escorrendo um fio vermelho ao fundo na colina, uma estradinha que “escorre” do topo e vai de encontro ao chão, como o princípio passivo sedutor de Tao, como na Lei da Gravidade, onde tudo se rende à força dos lugares mais inferiores. A colina ao fundo está completamente aproveitada em Agricultura, e o vale ao chão também é fértil e produtivo. Um caudaloso rio banha a cena, no curso natural da Vida. Uma pedra saliente revela-se sobre a água, num Portinari que se sobressai como mestre pintor. É como uma pontinha de iceberg, revelando, abaixo do nível d’água, toda uma base sedimentar, trazendo firmeza e certeza. O Céu ao fundo é majestoso, com nuvens pomposas, na promessa do Reino dos Céus feita por Jesus Cristo. As mulheres aqui estão cansadas e desanimadas, talvez depois de um dia de labor tão ardente. A mão da índia aprece estar calejada, marcada pelo labor ardido, suado e esforçado, num Portinari incansável e produtivo, concentrado. O chão aos pés das mulheres é bem escuro, imprevisível e misterioso, guardando segredos, no sentido de que a Divina Providência nunca revela algo que até o momento não pode ser revelado. A mulata tem pés grandes e descomunais, no termo “pés no chão”, ou seja, realista, forte, embasada, enraizada, ao contrário da árvore cortada, que foi assassinada. A pele das mulheres entra em harmonia cromática com o chão, num Portinari atento à magia das cores. A casinha ao topo da colina é o Lar, como numa favela, colocando os pobres em regiões do Rio de Janeiro, regiões estas desvalorizadas imobiliariamente. Vemos aqui o Brasil do Trabalho, da Produtividade, com terras cultivadas laboriosamente. E as nuvens ao fundo são os sonhos de um artista, sempre em busca da autoexpressão. O rio segue pacato em seu curso, e podemos ouvir o delicioso som das águas correndo, convidando-nos a relaxar depois de um dia tão duro.


Acima, Flautista, 1934. Numa metalinguagem – artista falando de artista, de modo como um artista não só faz Arte como também aprecia a Arte de outrem, numa simbiose, numa cadeia de artista inspirando artista, num furacão inspiracional. O músico aqui é negro, e toca despretensiosamente, sem se preocupar com a vida; sem pedir qualquer dinheiro por tocar o instrumento. A flauta sob a regência do negro é a riqueza da Música Popular Brasileira, da cultura popular do Brasil, nas raízes africanas do samba e de tantos outros gêneros cariocas, como o funk, que veio dos morros e estabeleceu-se. Esta vila é um lugar simples e acolhedor, sem luxos nem pretensões elitistas ou aristocráticas. É um lugar simples, um lar que acolhe, que reconforta com suas formas simples e limpas, elegantes, do modo como a vida simples é mais leve de se levar. Seus sapatos brancos são elegantes, limpos, galantes, e suas vestes são também simples, sem pretensões de brasões principescos. A pequena e singela flor é a vida, delicada, pequena, cercada por folhas que simbolizam toda a riqueza da Flora Brasileira. A flor faz metáfora com a mulher formosa ao fundo, na beleza da Mulher Brasileira. Esta mulher está com uma elegante saia, e o chão terroso do morro é a fertilidade da mente de Portinari, um apaixonado pelo Brasil, encontrando neste inspiração infindável, numa verdadeira declaração de amor ao Brasil, tornando-se um embaixador da nação. Os sapatos do homem estão impecavelmente limpos, sem parecer que caminham por um chão terroso, não pavimentado. As casas deste morro são toda similares, no charme das favelas cariocas, incrustadas nos morros, tendo uma vista incomparável à Natureza do Rio de Janeiro, no encanto do personagem Zé Carioca, de Disney, numa identidade brasileira, única. A mulher está encantada com o flautista, e sorri suavemente. O flautista a seduz, e o quadro todo é sedutor também. Ao fundo, o Céu, o Mar e os Morros do Rio, num lugar que, neste quadro, é tão desprovido de problemas como narcotráfico e violência urbana. Portinari, assim como Tom Jobim, acredita num Brasil melhor, mais nobre, mais elegante. O músico cruza elegantemente as pernas, demonstrando polidez e classe, como se fosse um autêntico herdeiro de príncipes africanos. Nesta vila, portas e janelas se abrem para o Mundo, dando respiro, ventilação, circulação de ideias e pensamentos, do modo como um artista tem que se sentir livre para criar. Então, podemos claramente ouvir a música, a melodia, na riqueza da MPB, num Brasil respeitado ao redor do Mundo. O flautista não usa meias, pois está no calor tropical carioca. A florzinha é uma nesga de esperança, sonhando com um Brasil menos pobre, e a flor é a promessa de que, um dia, todo aquele chão terroso estará coberto de flores, num Brasil rico e próspero, sem tanta miséria. Temos a simplicidade de um Portinari cansado dos excessos da Elite Brasileira. Portinari mergulha em uma nova Arte, inovadora, implacável, inevitável. São os ventos de novos tempos. O flautista é o próprio Portinari, fazendo Arte despreocupadamente, nunca almejando glórias nababescas e, por isso mesmo, tornando-se grande. A Vida é de quem não tem expectativas. Enquanto redijo este texto, eu como castanhas de caju, que simbolizam a riqueza gastronômica brasileira e, assim, simbolizam o Brasil em si, promissor. O flautista é Jobim encantado com a Garota de Ipanema.

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