quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Cândido, um Brasileiro


O brasileiro Cândido Portinari nasceu e cresceu em um ambiente rural, algo que influenciou decididamente em sua obra. Foi absolutamente produtivo em sua vida artística, tornando-se sinônimo de Arte e talento. Há na ONU, em Nova York, o gigantesco painel “Guerra e Paz” de Portinari, um trabalho que passou por recente restauração, pois as décadas e décadas de Sol cobraram seu preço, e hoje, depois do restauro, os vidros ao lado do painel foram substituídos por vidros que filtram a luz solar, preservando a célebre peça. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Descoberta da Terra, 1941. Ao fundo, vistosas caravelas, ao lado de um morro que parece ser o Pão de Açúcar, no Rio. As águas aqui são inconstantes, impiedosas, revoltosas, longe de ser um paraíso, e os homens lutam para dar estabilidade à embarcação. Eles se dependuram por cordas e fazem força para guiar o veículo, remontando a uma época em que as tecnologias eram precárias, possuindo poucos guias, como a Bússola e as Estrelas. O título deste quadro faz então menção à descoberta das Américas e, consequentemente, do Brasil. As naus portuguesas dão um recado a possíveis rivais nos Mares, numa Portugal que, na época, era temida e poderosa na Europa. Há um choque entre europeus e índios, sendo estes últimos dizimados e destituídos da própria terra. A nau está inquieta e instável, e os homens corpulentos tentam domar como um toureiro doma o touro – são as forças da Natureza, da Dimensão Material, diferente da placidez da Dimensão Metafísica, onde reina a Paz. A vicissitude faz com que o ser humano cresça, e uma vida sem dificuldades não tem sentido, pois, sem obstáculos, não há crescimento – só estagnação, como disse-me uma amiga psicóloga: “As crises são positivas”. Neste quadro, há um retrato de crise, e as dificuldades são gritantes, no ardor do trabalho esforçado. Dentro desta nau, vemos uma imagem que parece se homens trabalhando em uma lavoura, curvados, suando, trabalhando, arando o solo e colhendo, como recompensa, o fruto da terra, obtido de forma tão esforçada. Os homens dependurados estão em contraste quase barroco, entre claro e escuro, no contraste entre Yin e Yang, nas forças opostas que regem o Universo, na dança eterna da Criação – o artista quer ser como Tao; quer criar e se expressar, pois, já ouvi, Arte é um ser humano querendo se expressar. Há formas assemelhadas a ovos vermelhos, que são a fertilidade da mente artística, na magia do ovo de Páscoa, sendo aberto e revelando o tesouro da vida dentro, no mistério da Criação. Arte é um ovo sendo aberto e visto, no fetiche do voyeur, de olhar o que há dentro, o que há escondido, no prazer da violação, das desvirginação. Há também formas que parecem ser vasos de barro, no barro indistinto da mão do artista, e este cria do nada, fazendo de algo, de algum material, algo novo, do modo como Deus fez Adão do pó – é o mistério criacional. As cordas aqui têm forma de serpentes revoltosas e sensuais, hipnotizando os homens e seduzindo-os aos encantos da feminilidade, do princípio belo e gracioso da Vida – é um jogo de sedução. Ao fundo da nau, figuras de homens rabiscados, parecendo abanar para as naus ao fundo, no processo de comunicação entre seres humanos, do modo como o artista “conversa” com o espectador – gente falando com gente; mente atingindo mente. Nada mais humano do que a Arte. Os homens tentam domar essas “cobras”, na empreitada viril de desvirginar terras selvagens e virgens, cheias de “selvagens incivilizados”, exercendo fascínio na Europa, com muitos europeus narrando os hábitos de canibalismo dos indígenas. As naus são o “Clube do Bolinha”, e mulheres não têm vez no ato agressivo civilizatório, no mergulho da Europa nas Américas, na agressividade (e até na violência) do europeu civilizador. Este quadro balança, num ritmo que só uma grande mente artística pode prover, como na Dança, na Música ou no Cinema, pois, já me disse uma artista, as Artes estão uma dentro da outra, na universalidade da Mente Humana.


Acima, Meio Ambiente, 1934. Todo o amor de Portinari pelo Brasil, principalmente pelo Rio de Janeiro. Amor pela diversidade, pela riqueza natural brasileira. Um rico cacho de bananas está maduro e delicioso, pronto para ser devorado, como numa Carmen Miranda que, em Hollywood, é apresentada ao público como a diva de um país selvagem e belo chamado Brasil, cheio de bananais. Um símio insinua-se para comer uma banana, na riqueza da gastronomia brasileira, uma gastronomia que é fruto da Cultura Popular. Exuberantes folhagens tomam papel na cena, num Darwin fascinado pela Fauna e Flora dos Trópicos. Flores estranhas e exóticas também surgem, hipnotizando o ser humano que não vive nos Trópicos – o Brasil é sedutor, num Portinari que queria ser uma espécie de embaixador do Brasil, divulgando imagem, como dizia o diretor Fábio Barreto: “O Brasil tem que exportar mais imagem, e não apenas importar imagem”. Uma arara colorida repousa em um tronco forte de árvore, do modo como a Arte se tornou o baluarte da vida de Portinari, num tronco duro pelo qual a preciosa seiva artística transita, na vida pulsante por veias de pensamento – Portinari mistura-se com o seu próprio Brasil. Ao fundo, uma doce praia de areias brancas, plácidas, limpas e puras, muito longe da realidade da falta de modos do brasileiro na beira da praia, numa atriz Patrícia Pillar que foi fotografada na praia do Rio catando do chão o lixo que os praianos pouco educados jogam na areia. Pillar e Portinari acreditam num Brasil melhor, muito melhor. E o tronco da árvore é o pilar da Natureza, da riqueza biológica. Mais ao fundo, deliciosas ondas, como nas gravuras em pedra portuguesa no calçadão carioca, no doce balanço das ondas do Mar de Tom Jobim: como o Brasil é rico em artistas! Bem ao fundo, os exuberantes morros cariocas, nas pernas torneadas de Maria do Socorro, caminhando pelas ladeiras do Morro. Os morros erguem-se imponentes, e já ouvi uma portuguesa dizer: “Tudo no Brasil é grande!”. E, finalmente, céus ensolarados, banhando de luz a Cidade Maravilhosa, tendo um amigo já me dito que, quem é muito branco e vai morar no Rio, a pele dessas pessoas fica “curtida” pelo Sol, nos corpos bronzeados dos cariocas. E como há flores nesta cena! De vários aspectos, cores e formas. E na bananeira surge o coração da bananeira, no coração amoroso de um Portinari, um artista que pulsou junto com o Brasil, na fartura da Culinária Brasileira. Este sagui é furtivo, esperto, sendo “primo” dos furtivos esquilos do Central Park. Estas flores são o florescimento de uma nova era na Arte, num Portinari vanguardista, abraçando os novos tempos de então. Portinari consagrou-se, sendo tido como sinônimo de status, como na novela O Dono do Mundo, da Globo, na qual o personagem cínico de Antônio Fagundes adquiria obras de Portinari não pela Arte em si, mas pelo elevado preço das pinturas. Aqui, vemos uma cena rica em camadas, e podemos observar o que está perto e o que está longe. E a areia parece ser de puro açúcar, num Portinari doce e poético. Esta areia é repleta de flores e plantas, no milagre da Vida. Na cena, vemos também alguns cactos, com seus espinhos agressivos, num Portinari que sabia que o Mundo da Arte é concorrido e que, todos os dias, inúmeros artistas querem se destacar e se tornar célebres. E este céu azulado é um tanto renascentista, como dizem que é extremamente límpido o céu das colônias espirituais. Portinari é um sonhador, e sonhou com um Brasil melhor, sem tanta corrupção, sem tanta sujeira, como no manifesto do último carnaval do Rio: a Arte não pode se alienar, sendo a Censura um golpe muito forte na cara de qualquer artista. Arte é expressão. E Portinari foi um agente da Identidade Brasileira.


Acima, Namorados, 1940. Dois vultos negros se abraçam à luz da Lua e de estrelas – o romântico Portinari acredita no Amor. Não há alguém além do casal, com duas pessoas completamente a sós, como num aviso em uma porta de quarto de hotel: “Não perturbe”. O céu atrás é transitório, combinando dia com noite, e não sabemos se está anoitecendo ou amanhecendo, em como o tempo voa quando se está amando. Mais acima, o céu tem um elegante tom de azul marinho profundo, e nuvens ondulantes são a sensualidade dos enamorados, que se abraçam e se beijam até formar um só ser. Love is beautiful. É um casal heterossexual: a mulher usa na cabeça um laço avermelhado, como em Chapeuzinho Vermelho, na cor da feminilidade; o homem usa um chapéu de tom claro. O casal são as partes do artistas se unificando, sendo uno, sem vida dupla. O Amor aqui une opostos e resolve conflitos, trazendo Paz e unificação. Do lado direito, vemos uma caixa que parece ser de correio, do modo como os namorados trocam cartas de Amor. Parece também uma caixa de pão, do modo como um relacionamento feliz alimenta a alma e o corpo. É uma caixa misteriosa, e não sabemos o que há dentro – é o mistério do Amor, força que rege o Universo. Acima da caixa, vemos arbustos enfilerados, como vinhedos, na sensualidade do vinho e de Baco, na sedução entre amantes. O terreno atrás é de um amarelo arenoso, desértico, e os dois amantes estão absolutamente a sós, desligados do mundo ao redor, concentrados no puro e simples namoro. É como se os amantes estivessem fugindo do Mundo lá fora, do modo como um artista se refugia em seu próprio trabalho, produzindo a sós, concentrado, desligando-se temporariamente da “loucura” do mundo lá fora. Vemos rochedos sólidos, na solidez do talento de um artista tão reconhecido como Portinari. É a firmeza da afirmação, num artista provando ter talento. Aos pés dos namorados, uma poça negra, imprevisível. O que acontecerá com o casal? Será que a chama desta paixão durará para sempre? Mas os namorados não se importam com essas dúvidas, pois sabem que o relacionamento será eterno, mesmo que não dure para sempre: o que importa é a qualidade do tempo compartilhado, e não a quantidade. O deserto tem um apelo sensual, no vazio, como numa orla vazia, esperando para ser preenchida pela Vida.


Acima, O Lavrador de Café, 1939. Toda a paixão de Portinari pela terra e pelas fazendas; pela cena rural. Vemos um toco de árvore cortada, tolhida, ceifada, no inevitável fato de que um dia o artista morrerá, com a Morte esperando pelo inevitável momento do desencarne – cada um tem que decidir o que fazer com o tempo que lhe é dado. O trabalhador é um Portinari laborioso, focado, concentrado, sempre produzindo, trabalhando. Cândido mostra a miscigenação brasileira, única no Mundo, com um rapaz que tem sangue misturado de negro, com mãos e pés fortes e descomunais, fortes para dar conta do trabalho pesado na lavoura. A cena é um cafezal, na riqueza brasileira, num artista rico em talento produtivo. A enxada é o instrumento essencial, como o pincel o foi para Portinari. O rapaz veste roupas simples e confortáveis, própria para o labor rural. Ele está de perfil, olhando para tudo o que fez e para tudo o que tem ainda por fazer, num trabalho incessante, incansável, apaixonado, apesar de desgastante, como se formou o culto ao trabalho na região gaúcha de Imigração Italiana. O cabo fálico da enxada é a agressividade do senhor das terras, senhor dos cafezais, em um Brasil que ainda vive ecos da Escravatura, num contexto social em que ser preto é sinônimo de ser pobre, de ser socialmente desavantajado. Aos pés do rapaz, um monte de terra, talvez um monte feito pelo próprio trabalhador, ou pode ser um formigueiro, silencioso em seu interior de formigas em constante labor, dia e noite. A calça branca é a paz de um atelier produtivo, no silêncio do dia a dia de labor, numa rotina deliciosa, sempre construtiva, dinâmica. A cor rósea da terra combina com a camiseta, na cor sensual da carne, do terreno fértil, reprodutor, da Mãe Terra provedora. Os céus têm “nuvens de algodão”, plácidas, convidando para uma plácida soneca bem no meio da tarde de trabalho, num canto sedutor de descanso, de um doce Pecado Capital da Preguiça. E o toco de árvore cortado segue mostrando o seu interior róseo, outrora repleto de seiva e vida. O rapaz corpulento tem a força necessária para trabalhar a terra. Seus pés descalços revelam simplicidade; revelam falta de vaidades fúteis ou auspiciosas. O rapaz e sua enxada são o centro deste quadro, na paixão de Portinari pela força e beleza do trabalhador brasileiro. E os cafezais revelam-se muito vastos, até onde a vista alcançar, no poder de um Brasil rico por causa do Café. O Universo é vasto, muito vasto, ao ponto do Ser Humano não ter como o apreender: há mais estrelas no Universo do que grãos de areia de todas as praias da Terra juntas. Oh, My God. Tao é o infinito.


Acima, Os Retirantes, 1944. Aqui, temos um Portinari crítico social, numa face política do artista, como no último desfile da Beija-Flor no Carnaval do Rio, numa crítica ao Governo Brasileiro. Aqui, temos representada toda a miséria do Mundo (e do Brasil). Esta família paupérrima tem feições distorcidas, fantasmagóricas, infelizes, miseráveis. São magérrimos, ossudos, esfomeados, tristes. O terreno na cena é árido, desolado, sem vegetação, sem água, sem cor, só deserto e pedras áridas atiradas ao chão. Esta família sequer tem sapatos. Uma das crianças demonstra ter verminose, tal o inchaço da barriga. Temos um Portinari indignado com os abismos sociais brasileiros. No céu, agourentos urubus negros, pessimistas, sombrios, fantasmagóricos, amaldiçoando quem passar por terras tão infelizes como esta. As cores neste quadro puxam pelo cinzento, na cor das cinzas, simbolizando a finitude, a Morte, a condenação a uma encarnação dolorida, ardida, desprivilegiada, pobre. Portinari não é alienado – bem pelo contrário. Como brasileiro, Cândido conhece de perto o próprio país, amando-o e criticando-o ao mesmo tempo. Neste céu sombrio e maldito, uma Lua Nova pálida, apagada, fraca, sem força para brilhar, abatida, doente. Ao fundo na paisagem, vemos montanhas desoladas e duras – é a dureza de uma vida tão miserável. Podemos ouvir o barulho de um vento castigante, gelado, açoitando quem estiver por perto. Esta família simplesmente não tem para onde ir. As numerosas aves negras voando condenam estes seres humanos, esperando para que essas pessoas morram e sirvam de carniça alimentar. Podemos ouvir os passos ofegantes destas pessoas, num Brasil sem planejamento familiar. Um velho patriarca segura uma longa vara, tentando guiar seu povo, batalhando para poder vislumbrar um amanhã melhor, menos sofrido. Portinari não tem medo da feiúra da realidade, e faz questão de mostrar os problemas do Mundo. Todos nesta cena estão calados, sem comentários sobre a própria situação de padecimento. Ao centro do quadro, a mãe carrega sobre a cabeça uma trouxa de roupas, os únicos bens de uma família que não tem casa. São semimendigos, tendo só praticamente a roupa do corpo. As pedras cortantes no chão castigam os pés cansados, e há várias crianças na cena, pessoas que nasceram sem saber o que é ser minimamente abastado financeiramente. A Sociedade de Consumo despreza esta família pobre, pois esta mesma sociedade só interpela o indivíduo que tem dinheiro. Esta família está bem em cima da margem, faltando pouco para que virem moradores de rua. Mais acima no quadro, o céu está completamente mergulhado nas sombras, sem beleza, sem céu azul, sem Sol. Seus estômagos estão vazios, carentes. E, no chão, só há ossos de animais, animais estes há muito vencidos pela dureza de uma vida assim tão rica em provação, em privação.

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