Certa vez fui presenteado
com um livro ilustrado sobre Michelangelo, o qual expressou-se muito bem em Pintura
e Escultura, ao contrário de da Vinci, que não se aventurou em esculpir – não estou
aqui desmerecendo Leonardo. Os textos e análises semióticas a seguir são
inteiramente meus.
Acima, Pietà. Estimo que no Mundo haja vários milhares de templos
católicos e, fiquei sabendo, há na Terra menos de cem réplicas da Pietà de
Michelangelo, e um destes privilegiados templos com uma réplica é a Igreja de
São Pelegrino em Caxias do Sul. Lá, podemos apreciar a pouca distância cada
detalhe desta obraprima de um dos dez mais expressivos artistas renascentistas.
Lembro-me da freira que acompanhava a mim e meus coleguinhas da Escola, e a
senhora disse-nos: “Olhem a tristeza de Maria ao ver o filho morto”. Em outra
ocasião, uma prima minha mandou-me fotos digitais impressionantes de ângulos
poucos vistos da Pietà, como nos fundos da escultura. Em São Pelegrino,
podemos ver apenas a obra de frente, e o mesmo acontece com o Davi de
Michelangelo na Europa – o correto seria podermos ver quaisquer obras sob todos
os ângulos. Aqui, na Pietà, o dom de Michelangelo é assombroso, e parece que
vemos tecidos, e não pedra. A textura têxtil é impressionante, e na escultura
vemos uma fluidez sedutora, preguiçosa, adormecedora, e Jesus parece mais
dormir do que estar morto. Jesus está amolecido, caindo sobre o ventre da mãe,
retornando ao útero, do modo como o espírito desencarna e volta à colônia
espiritual, no eterno retorno, como de no final de 2001- Uma Odisseia no Espaço: o feto retorna à Fonte, na silhueta
de uma barriga grávida, do modo como o caixão é um útero, um receptáculo, na
crença humana (e espírita) de que a Morte é uma simples vírgula, uma passagem, um
trânsito, no sentido de Jesus desencarnar e ressuscitar – a Mente sobrevive à
morte do Corpo. Maria e Jesus competem para ver quem é a grande estrela da cena,
e Maria está ligeiramente ganhando esta “competição”, colocando-se no ponto
mais alto e visível, exaltando a Dor como forma de expressão, numa catarse do
escultor: a tristeza é “colocada para fora”, no poder terapêutico da Arte.
Temos um Michelangelo que, nessa catarse, deixa de ser melancólico e doloroso,
parando de sofrer pela inevitável Dor da Encarnação – não é o Mundo uma escola
na qual aprendemos por meio das dores? A quase total nudez de Jesus mostra em
minúcias a precisão do autor, e podemos ver cada veia salientando-se sutilmente
na pele no Salvador. Vemos cada músculo definido e nítido, na busca do Ser
Humano pela altivez atlética, pela beleza do corpo em forma, na forma como o
Renascimento traz de volta ao Mundo Ocidental o culto pagão à beleza do corpo
nu, sepultando a sisudez medieval que reprimia qualquer nudez. Com
Michelangelo, e os outros mestres da época, o nu volta à moda, e o Ocidente
nunca mais foi o mesmo. A maestria salta aos olhos em um dos pés de Jesus, o
este membro repousa sobre um toco de madeira, e o Michelangelo abre na pedra um
vão, dando a impressão de que o pé está suspenso, balançando, num aspecto de
movimento, como no enigmático vão do MASP: a sensualidade reside precisamente
no vazio, no vácuo, na vaga, como um copo, que é útil porque é vazio. Ao
contrário da nudez atlética de Jesus, no corpo de um atleta sem uma gota de
gordura no corpo, Maria está extremamente recatada em suas vestes, e sua cabeça
está com um véu que tapa-lhe totalmente as orelhas e os cabelos. Podemos ver,
no máximo, parte do seu pescoço, com uma certa tensão muscular. Vemos somente
as mãos da Mater Dolorosa, e seus pés
estão ocultos. As vestes da Maria são majestosas e luxuosas, dignas de uma
rainha, e não de uma esposa de carpinteiro: Maria desencarnou e tornou-se
“rica”. Jesus está num padrão de beleza masculina atual: magreza com músculos
definidos. Podemos ver em seus joelhos o osso definido sob a pele. Cada detalhe
dos dedos de pés e mãos são trazidos e, repito, podemos ver cada veia sobressaliente
nos braços de Jesus. Podemos ouvir o choro de Maria, com sutis murmúrios,
audíveis apesar de discretos. Jesus afunda confortavelmente no colo da mãe, no
modo como o Espiritismo assinala a sensação deliciosa de fluidez na Experiência
Extracorporal – Jesus parece estar dormente e não morto, descansando depois de
um episódio tão cruel como o da Crucificação. Jesus sequer se lembra de ter
sido crucificado, na vitória do desencarne: ressuscitar é uma passagem, e tudo
de material é deixado para trás. O rosto de Maria é imaculado, jovem, sem
qualquer ruga ou linha de expressão, na metáfora da Imaculada Conceição: a
Dimensão Metafísica é intocada, “virgem”, longe das máculas inevitáveis da
Dimensão Material, da Encarnação. Tudo nesta Pietà flui deliciosamente, e as
pedras de mármore nobre que emolduram a cena, atrás da Pietà, também trazem,
ironicamente, formas de fluidez, no sentido de que a Matéria está condenada à
fluidez, ao “derretimento”, e que a Matéria, simplesmente, não é eterna, como nos
relógios derretidos de Dalí e nos diamantes que, cedo ou tarde, “derretem” e
danam-se. Na Vida Eterna, só o pensamento perdura, só o vazio, Tao, aquilo que
não é feito de matéria. Os diamantes não são eternos – Marilyn Monroe que me
perdoe.
Acima, A Criação de Adão. Para poucos é novidade de que a imagem que temos
de Deus é a de um patriarca, com cabelos e barbas brancas, conotando
experiência, como algo ou alguém que sempre existiu e sempre existirá – é o
mistério do Eterno, Tao. Os corpos nus de Michelangelo são extremamente corpulentos,
como “ratos de academia de Educação Física”, e é possível crer que isto
influenciou posteriormente a obra de outro artista, Aldo Locatelli, cujos
homens também são muito corpulentos. Ao contrário de Adão, Deus está vestido, mas
com um traje sumário e vaporoso, como uma nuvem no céu, e podemos observar que
o Criador também é um homem corpulento, apesar de claramente idoso. Na
influência pagã, que moveu o Renascimento, este Deus está como um Zeus, o Rei
dos Deuses, e pagão e não-pagão tentam se tocar e se misturar, mas este toque
está quase consumado, num Michelangelo um tanto mortificado e desiludido pelo
conservadorismo do Vaticano, pois, aqui, Adão e Deus quase se tocam, mas nunca se
tocam de fato, num artista fazendo catarse de uma melancolia, de uma desilusão,
de algo eternamente não-consumado. Apesar de extremamente próximos um do outro,
Adão é um ser e Deus é outro ser, no sentido de Adão, ao ser criado, foi dotado
de individualidade e livre arbítrio, num Adão que pôde optar entre Bem e Mal,
e, como todos sabemos, optou pelo Mal, pela Serpente da Malícia, tendo
decepcionado o próprio Pai e sendo expulso do Paraíso, onde só há espaço para o
Bem. Adão mostra como não há ilusões em relação ao Ser Humano, como na obra de
Tolkien, que não crê na bondade total humana, sempre observando o Mal sobre a
Humanidade e sobre o Ser Humano. Imberbe, este Adão está aprumado,
diferentemente da barba longa do Criador. Por que Adão é imberbe? Seria isto um
sinal de polidez, de civilidade? Por que, ao menos no Ocidente, existe o hábito
de se barbear? Este Adão é jovem, e tem sequer um fio de cabelo branco, num
homem na flor da idade. A genitália é absolutamente desproporcional, num pintor
querendo suprimir qualquer insinuação sexual ou erótica, como na nudez dos anjos
barrocos. E por que os dedos não se tocam nesta imagem? Seria a decepção do Pai
em relação ao filho? Seria o fato de que só há libertação quando desencarnamos?
Quais são as dúvidas de Michelangelo? Aqui, Deus e Adão são verdadeiros deuses
gregos, e a Idade Média “cai de podre”, trazendo à Europa uma nova era, junto
ao boom das Navegações – era o “chuá”
do avanço civilizatório, na sensual e exótica América, tomada de “selvagens”
nativos. A Europa se impõe como paradigma civilizatório. Aqui, Deus está em um
invólucro da cor de carne, no interior uterino, no mistério da Imaculada Conceição,
e neste útero há vários anjos, muitos deles de cabelo encaracolado, como em
esculturas clássicas gregas e romanas. Os anjos também estão nus, e observam a
cena, apreensivos. Eu os chamo de “anjos” por assim dizer, pois eles não têm
asas. São uma espécie de corte real, de séquito, e podemos ouvir um cântico
celestial, afinado, fino, e um cheiro de perfume de sabonete, de banho bem
tomado, na limpeza de Tao. Um dos braços do Criador envolve Eva, a qual observa
tudo, numa Eva quase com medo, observando o marido que lhe foi imposto pelo
Plano Divino. Já ouvi de uma feminista que Eva, o “segundo sexo”, é, na
sociedade machista, uma espécie de arremedo barato, e que a obraprima do
Criador é, sem dúvida Adão, a criação primordial, primeira, a intenção áurea do
Criador, criando Eva mais por necessidade do que por inspiração. Portanto,
nessa lógica machista, a mulher tem que estar submetida ao Homem. Pior: foi de
Eva a ideia de morder a Maçã do Pecado. Ou seja, “as mulheres conspiram contra
os homens”. Puro patriarcalismo, é claro. Um problema filosófico. Também nua,
nesta Eva mal podemos ver o seios, ou seja, a Adão é permitida a nudez viril; a
Eva não é permitida. É a história da “galinha” e do “garanhão”: a sexualidade
feminina é tolhida.
Acima, Expulsão do Paraíso. A serpente tem papel central na história, numa
forma antropomórfica – metade homem, metade animal. Ela enrosca toda a árvore
do pecado, controlando esta. A cobra enforca a árvore, entregando o pomo da
discórdia a Eva. A cena desdobra-se entre antes e depois: antes do pomo e
depois do pomo. Antes, há a ausência da malícia e há a nudez de forma pura e
natural; depois, a nudez torna-se pornográfica e proibida. É a perda da
inocência. A serpente, com sua forma opressora e traiçoeira, sufoca Adão e Eva,
e a forma bela do nu humano torna-se indesejada e banida. Na cena seguinte, à
direita, a anjo, com sua fálica espada racional, expulsa o casal, condenando o
Ser Humano à vida mundana e física, longe dos prazeres primordiais do Éden. A
serpente enforca e sufoca a árvore, e a árvore é a vida natural, desprovida de
malícia. A serpente enforca a inocência, aniquilando-a. A espada que expulsa é
o pensamento racional, frio e matemático, expulsando o casal primordial,
condenando a Humanidade à dureza da existência material. O anjo que expulsa
está vestido de forma recatada, longe da vergonha nua de Adão e Eva. O sexo
entra na mira da condenação moral, e a sexualidade se torna um problema para o
Ser Humano: como posso ser fiel a Deus se sinto prazer sexual? A espada perfura
o pescoço de Adão, e a racionalidade perfura as fraquezas mundanas do Ser
Humano. A serpente traz a vida, e a vida é essencial à encarnação. A serpente é
a liquidiscência vital, regendo a Natureza na dança do DNA. O Éden, em sua
pureza, é a dimensão na qual o Ser Humano não tem dor nem vicissitudes, sendo
um lugar onde tudo é lógico e natural. A expulsão fálica e a racionalidade
impondo-se, trazendo todos aos problemas da existência carnal: como posso ter
paz se tenho desejo sexual? A Árvore da Vida está tomada pela serpente, e a
Malícia se impõe. No fundo da cena de expurgo, um céu relativamente claro,
trazendo esperança à Humanidade, na promessa de um mundo melhor e menos
doloroso. Na cena, a mulher tem papel central, cedendo à tentação da maçã,
trazendo a Humanidade à condenação da matéria, entregando a Humanidade à
danação. E por que essa danação foi trazida por uma mulher? Por que a mulher é
o sexo frágil? A expulsão é a condenação à dureza da vida material, do mundo
material, da vida pragmática, da encarnação. Nesse contexto, a mulher tem papel
essencial, pois a dureza da encarnação é necessária à evolução do espírito – a
vida não tem sentido sem dificuldades. A encarnação precisa ser repleta de
dureza para valer a pena. De outro modo, de que vale uma encarnação sem vicissitudes,
sem crescimento espiritual? Há aqui uma Eva antes e depois da danação: a de
antes, tem o rosto puro e sem intenções más; a de depois, um rosto malicioso,
quase carrancudo, como uma prostituta velha, entalhada pelo curso natural da vida.
O Adão pós-expulsão tem o rosto sofrido e marcado ela experiência, num Adão
consciente da dureza da vida. As rochas na cena são a dureza da vida. E o
gramado verdejante é a fertilidade sexual, num casal responsável pela
proliferação da espécie. O Adão pré-expulsão tenta segurar e dominar a árvore,
falhando em sua empresa, sendo dominado pela malícia existencial. Na cena, a
simples e pura nudez fica condenada moralmente, numa Europa medieval tão severa
em relação a sexo e sexualidade, numa malícia só vencida após o Renascimento,
no resgate pagão da nudez. A cauda da serpente é como uma cadeia de DNA, nos
mistérios da Vida: o que somos e para onde vamos? O anjo expulsador veste cor
de carne, no pecado carnal: precisamos de sexo para a reprodução e, ainda assim,
rejeitamos esse mesmo sexo.
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