quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A Mensagem de um Anjo (Parte 2)




Volto a falar sobre Michelangelo. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Davi. Davi encara o gigante Golias. Quando meus pais viajaram à Europa em 1989, depois, de volta, fizeram slides, e uma foto foi exatamente do Davi de Michelangelo. A riqueza de detalhes de Michelangelo, onde podemos ver uma simples veia sobressalente na mão de Davi. Aqui, temos o total resgate dos padrões pagãos de beleza da Antiguidade, e esta peça poderia tranquilamente ter sido feita na Grécia Antiga. O cabelo é complexo, cheio de cachos, num artista meticuloso, que nunca perdeu um detalhe sequer. O olhar de Davi é um pouco tenso, como se algo chamou-lhe repentinamente a atenção. É um corpo perfeito, sem qualquer percentagem de gordura, num ideal de boa forma perseguido obsessivamente pelos “ratos” de academia de ginástica. Em uma das pernas há um suporte, como um tronco de árvore, num Michelangelo que aproveitou um bloco de mármore problemático. Este Davi faz-me lembrar do Kouros do Met de Nova York, de como o Renascimento levou a sério o resgate da Antiguidade Ocidental. Este Davi não sorri, e sua nudez não o envergonha, numa nudez sem tom sexual ou erótico, numa genitália pequena, algo que Michelangelo viu ser necessário frente ao puritanismo da poderosa Igreja Católica da época. O Renascimento mesclou Paganismo e Catolicismo, numa Europa que vivia tempos de avanços. Michelangelo, assim como da Vinci, era apaixonado por Anatomia. Podemos observar os ossos dos joelhos de Davi, sobressaindo-se sob a pele. Do mesmo modo, vemos os ossos dos pulsos. Aqui, o condicionamento físico do modelo é como o físico de Cristo na Cruz, num atleta no auge de sua forma. A musculatura deste Davi é tensa, como a de um cavalo, e o músculo, sob a pele, mostra sua forma extremamente saudável, em padrões de beleza imortais. É um boneco, e não um ser humano. Não podemos imaginar órgãos internos, como um intestino funcionando ou um coração batendo. Este Davi é “sintético”, por assim dizer. É uma máquina, um boneco de pura beleza e nada de orgânico, do modo como não podemos imaginar um deus grego fazendo cocô em uma patente. Temos aqui um Michelangelo que crê que, após o desencarne, a pessoa, livre das vicissitudes da carne, torna-se uma “máquina”, absolutamente livre de dores, doenças, tristezas ou depressões. Este Davi está desencarnado, e não podemos imaginá-lo urinando. Há um aspecto semelhante aos padrões de beleza de hoje: o corpo de Davi é desprovido de pelos, só tendo pelos pubianos e cabelos na cabeça, do mesmo modo como homens hoje em dia depilam-se. Este Davi é imberbe. Por quê? Seria ele jovem demais para ter Barbra? Ou teria ele cuidadosamente barbeado-se antes de posar para o escultor? O que significa a ausência de barba? Significa a civilidade, num cavalheiro que, ao acordar de manhã, barbeia-se para o Mundo. Os testículos deste Davi são a fertilidade da mente de Michelangelo, sempre pensando, sempre criando, num artista que não parava de imaginar, de sonhar, tornando-se um artista que foi uma megaestrela do Renascimento. O pênis infantil é a candura infantil de Michelangelo, o qual criava sem malícia, mas com uma pureza que se revelava em sua Arte, em seu talento que atravessa séculos e, provavelmente, jamais perecerá. Este Davi é simples, e nunca tenta seduzir o espectador. Ali está ele, no esplendor de sua firma, desinibido em sua nudez, sequer percebendo as multidões de espectadores que passam por ali todos os dias. Suas mãos são fortes e corpulentas, como as de um agricultor que trabalha de Sol a Sol. Sua estatura dá-lhe ar de colosso, como se fosse um guardião do museu, impondo respeito pelo seu tamanho e sua força. E por que um Davi tão grande? É a grandiosidade de um artista que de simplório nada tinha. Davi apóia-se em uma das pernas, e a outra relaxa. Ele parece mover-se suavemente, nunca parecendo que é apenas um pedaço de pedra esculpida. Este é o dever de qualquer artista: trazer vida ao inanimado, como Deus deu vida a Adão. O artista persegue Deus, e quer saber como Ele fez e faz tudo. Podemos ver Davi respirando suavemente, vendo seu tórax inflar e desinflar, respirando com calma e serenidade. Seu umbigo é o centro do Universo, numa barriga impecavelmente atlética. Seus músculos do pescoço são fortes, sustentando uma cabeça que pensa sem parar, sempre produzindo concepção, criação. É um gladiador pronto para entrar na arena e vencer um gigante. É paladino, corajoso, sem um pingo de mediocridade ou medo. É alguém certo de que obterá vitória, uma vitória natural e certa. Podemos ouvir o burburinho dos visitantes do museu, comentando sobre como é formidável esta obra que é um dos ícones renascentistas.


Acima, Detalhe do Juízo Final. Jesus reina absoluto no Juízo Final, assim como no Juízo Final de Aldo Locatelli na Igreja de São Pelegrino. Nossa Senhora está passiva e submissa, num papel meramente coadjuvante. Maria está alheia a tudo, mal prestando atenção na cena toda, com a cabeça envolta num sutil véu. Ao contrário de Jesus, que está quase nu, Maria está completamente vestida, e podemos ver apenas seu rosto, mãos e pés nus – o resto está decentemente coberto, pois é absolutamente impossível vermos Nossa Senhora nua, com poucas roupas, e a Imaculada Conceição só pode ser apresentada em meio a muitas vestes, jamais nós podendo imaginar Maria quase nua, pois as fartas roupas são a decência de uma mulher pura e casta, mesmo em momentos mais libertários como o Renascimento. Aqui, temos um Jesus imberbe, ao contrário das imagens de Jesus com as quais estamos acostumados, pois quase sempre vemos um Jesus barbudo e com cabelos longos, num padrão de beleza milenar, num homem em cuja época não havia o corte de cabelos, nem um aparelho de barbear. Por que Michelangelo barbeou Jesus? Na cena, tudo gira em torno de Jesus, e há uma luminosidade emoldura a figura do Salvador, um espírito avançado que veio à Terra para dizer à Humanidade conceitos de apuro moral os quais os Homens de então não conheciam. A luz ao fundo de Jesus é uma nova alvorada, um novo tempo no qual o apuro moral era novidade, num tempo em que os conceitos de Amor e Perdão eram inéditos e desconhecidos. A luz ao redor do Cristo é a aurora de um novo tempo, como na luz do esclarecimento positivista, na qual o Ser Humano precisa se destacar no apuro moral, de decência. Este Jesus é extremamente corpulento, assim como as demais figuras masculinas à sua volta, no padrão renascentista de beleza nua. São corpos absolutamente atléticos, na nudez renascentista que remetia ao paganismo grecorromano. Maria está completamente vestida, e revelar nudez em Maria seria uma heresia inominável, uma ofensa, um assédio absolutamente repreensível. Aqui, o Homem está além da Mulher, sendo o guardião viril da feminilidade, do modo como jamais uma mulher poderá ser Papa. O gesto de Jesus, com uma das mãos elevadas, assemelha-se muito ao Juízo de Locatelli, e Jesus reina absoluto no julgamento do caráter moral dos Homens, julgando quem tem ou não tem apuro moral. O Juízo Final é o fim dos tempos, num momento decisivo em que as ações são reveladas sob a luz de um microscópio, revelando quem merece ou não merece o Céu. O Juízo é o desencarne, um momento no qual o indivíduo é confrontado, sendo condenado ao prazer ou à dor, no momento em que o indivíduo é confrontado com o modo com o qual viveu. É claro que o Juízo Final não faz sentido, pois tudo é processo, e tudo o que acontece é o julgamento do indivíduo após o desencarne. Não haveria sentido em um ponto final, no qual tudo permaneceria constante e imutável. Na verdade, cada indivíduo tem a chance de evoluir moralmente e de voltar a encarnar, para que, assim, possa evoluir e ter novas chances. Neste detalhe de Michelangelo, temos muita presença do azul anil, na cor do céu que reina nas colônias espirituais, na cor da serenidade, em um azul muito plácido e límpido. Tudo gira em torno do Salvador, aquele homem que trouxe os parâmetros de moralidade, consolidando as leis dos Dez Mandamentos de Moisés. O objetivo da Humanidade é o apuro moral, e, nas colônias espirituais, só entra quem tiver este apuro. Anjos e homens giram em torno de Jesus, e a masculinidade de Adão sobressai-se sobre a feminilidade de Maria: por que o Salvador tinha que ser do sexo masculino? Por que Maria tem um papel tão passivo e submisso? Por que houve a Imaculada Conceição? Qual é o problema com o sexo? Maria está resguardada pelo filho, e ela nunca tem um papel decisivo na história. É um mundo de homens, e quanto mais passiva for a mulher, melhor. Podemos ver nos pés de Jesus os furos dos pregos da crucificação, na cicatrizes de um trauma indelével. Confortáveis nuvens abrigam seus pés descalços, numa promessa de reconforto a pés cansados de uma caminhada tão exaustiva e dolorida – é a promessa de um amanhã melhor, no qual as dores são reconfortadas e curadas. É a volta ao Lar.


Acima, Moisés. Moisés desce do Monte Sinai com os Dez Mandamentos e vê seu próprio povo idolatrando uma figura. Sentado como um rei em seu trono. Sua barba é extremamente extensa, revelando a sabedoria de muitas décadas de vida. É uma barba majestosa e fluidia, como ondas no Mar, em um efeito de movimento no qual Michelangelo era mestre. Ao redor deste grande trabalho em Escultura, o entorno traz decoração neoclássica, no paradigma ocidental de beleza, elegância e fineza, um paradigma que segue indestrutível até hoje. Aqui, Moisés tem um bíceps colossal, numa forma atlética de um homem no auge de seu vigor, no vigor da sociedade patriarcal, na forma fálica e agressiva do cajado de Moisés, com cujo instrumento abriu-se um vão milagroso no Mar Vermelho e libertou os Hebreus. Moisés é um libertador, um grande líder, um paladino com coragem o suficiente para desafiar um império tão poderoso, escravocrata, brutal, cruel e belo como foi o Antigo Egito. É como Davi derrotando o gigante, como a Inglaterra de Elizabeth I derrotando a então toda poderosa Espanha. Moisés tem a coragem de um libertador, do modo como Cristo, de certa forma, libertou a Humanidade, trazendo os parâmetros morais da Era Cristã. Aqui, Moisés tem veste de rei, majestosa, luxuosa. Debaixo do braço tem a tábua dos Dez Mandamentos, os quais foram um marco civilizatório, pois traziam regras comportamentais de moralidade, pois, como diz o Espiritismo, o objetivo da existência de um ser humano é o apuro moral – os que não desenvolvem moral, sofrem no Umbral, que é uma dimensão de sofrimento, chamada de “Inferno” pelos católicos... As religiões não são bobagens – o Marxismo que me perdoe. É claro que este Moisés não é um gurizote, mas um homem absolutamente maduro, racional, responsável, guiando um povo que não parou de sofrer, vide o Holocausto. A Estrela de Davi faz parte do design da Colônia Nosso Lar, no filme espírita homônimo. O Judaísmo sobrevive como o primeiro foco monoteísta da Humanidade, quase no mesmo momento do herege reinado do faraó Aquenáton, um rei que desprezou o paganismo egípcio da época. Moisés condenou a Idolatria, ficando furioso quando seu próprio povo confeccionou um ídolo, uma imagem, uma estátua, do modo como o Islamismo despreza e condena quaisquer tentativas de se dar forma a Deus, ou então a Alá. O Renascimento traz o culto às imagens mas, ao mesmo tempo, respeita a antidolatria judaica, porém rendendo-se ao delicioso apelo visual renascentista. Goste ou não, aqui temos uma imagem de Moisés, uma Idolatria, só que “filtrada” pela moralidade do Vaticano – o Renascimento foi uma onda poderosa. Este Moisés olha para o lado, como se algo tivesse lhe chamado a atenção. Está tenso, talvez preocupado com o atraso moral do Ser Humano, sendo este um ser que está constantemente seduzido por Imoralidade – Moisés fica furioso com a Idolatria. Mas a Idolatria é inevitável, seja na Política, seja na Arte. Este Moisés não está completamente parado, e parece se mover em seu lindo trono, inquieto, sempre observando a tendência antimoral do Povo. Temos um Moisés desconfiado, sem muitas ilusões em relação à Humanidade. A iconografia de Michelangelo segue imbatível em plena Era Digital, numa mente de inacreditável destreza. Apesar de maduro, este Moisés está no auge da juventude. Este Moisés, na tendência pagã renascentista, está como um Poseidon, o deus dos Mares, com artistas buscando no Olimpo a inspiração para criar com liberdade, num Vaticano rendendo-se a este onda pagã que varreu o Ocidente após a Idade Média. Foi uma releitura, uma reedição, como nunca antes na trajetória da Humanidade – era considerado moderno, afiado, atual. E este Moisés é um guardião, um zelador de algo marcante e importante – os santos viram deuses e viceversa.

Um comentário:

  1. Gostei muito, como sempre. Uma nova leitura, sempre é interessante de se ver. Ainda mais quando bem feita, com talento e aquidade.
    Só a titulo de contribuição. Para o bom entendimento das duas obras (Davi e Moisés) é importante levarmos em conta o momento retratado.
    No caso do rei Davi o momento é aquele em que o jovem Davi encara o gigante Golias.
    No caso do Moisés o momento é aquele em que Moisés, descendo do Sinai com o decálogo, vê os hebreus cultuando o bezerro de ouro.
    Parabéns, mais uma vez. Arnoldo.

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