Há tempos eu entrei em um
museu e uma das funcionárias estava trajada tal e qual Frida Kahlo, com
penteado floral e buço, numa declaração de amor à pintora mexicana. Frida
adorava autorretratos, colocando-se em sua própria obra, como uma popstar. Em
um dado momento, Kahlo sofreu um grave acidente automobilístico e passou por
excruciante dor, catarseando isso em suas pinturas. Frida tem um pé no
Surrealismo, sendo enigmática. Seu traço é “cru”, “selvagem”, longe das sutis
pinceladas dos mestres renascentistas. Há alguns anos foi lançada uma
cinebiografia estrelada por Salma Hayek no papel da artista, numa
metalinguagem: artista falando de artista. Berrante em sua arte e discreta
pessoalmente, Frida cultivava um buço e uma “monocelha”, os quais eram
vinculados ao conceito de “mulher fina e de família”, como no costume inglês de
proibir que mulheres da Aristocracia pintem o próprio cabelo: castração que
proíbe a mulher de ser mulher, como na polêmica burca. A única extravagância pessoal
à qual Frida reservava-se eram seus penteados floridos e extravagantes, como em Carmen Miranda, simbolizando
a fertilidade de uma mente criadora. Esse estilo fridano deixou Frida muito
confortável dentro de si mesma, tendo sido reconhecida ainda em vida, ao
contrário de artistas como Van Gogh, só reconhecido postumamente. As análises
semióticas a seguir são inteiramente minhas.
Acima, As Duas Fridas. Essas “gêmeas” têm laços de sangue, unidas pelo
mesmo útero, no sentido de que todos viemos do mesmo útero, no conceito de
Igualdade da Revolução Francesa, no paradigma democrático contemporâneo. Frida
pinta a si mesma sempre olhando para o espectador, conversando com este,
indagando-o. O espectador sente-se parte do quadro, entrando neste. Recatadas,
sequer podemos ver os pés dessas Fridas. Os corações pulsam como o Sagrado
Coração de Maria, e os vasos sanguíneos unem as irmãs, numa comunhão da hóstia
na missa católica. Elas estão de mãos dadas, unidas por laços de afeto e
proximidade, intimidade. A de branco está mais recatada do que a outra ao lado,
nos dois lados da artista: sacro e profano. Sequer vemos o pescoço da Frida de
branco, no machismo da Sociedade Patriarcal, na qual uma mulher tem que estar
sempre submetida a um homem: seu pai, ou seu marido, ou seu patrão ou o Papa.
Seus cabelos são negros como a asa da graúna, sem um fiozinho branco, no vigor
da juventude. O penteado é atrevido e exótico, algo como uma Carmen Miranda. É
uma família unida pelo sangue. Na mão da Frida branca há uma tesoura, a qual
acaba de cortar um vaso, provocando sangramento, dor, perda. Rompimento. É a
Razão atropelando a Emoção, no sentido de que a frieza racional tem que ser
ouvida e considerada, pois o coração, sozinho, não consegue guiar a vida de uma
pessoa. Elas estão sentadas, repousando, numa artista inquieta, a qual não
descansava nem se acomodava. As mãos dadas são a união fraternal, o amor
incondicional que rege todas as dimensões do Universo. A pele das Fridas é
bronzeada, sem palidez nem apatia. Como toda mulher na Sociedade Patriarcal,
Frida era reprimida, encontrando na Arte uma válvula de escape, fazendo da dor
um poema. No plano de fundo, um céu nebuloso e duvidoso, fechado, antipático,
no mistério cinzento da encarnação: o que são o Céu e o Inferno? Por que nada é
só preto e nada é só branco? É um céu carregado, preparando uma tormenta, um
abalo sísmico, do modo como Frida abalou as estruturas da Arte, mostrando como
uma mulher não está abaixo de um homem. O banco no qual sentam é o repouso do
lar, de casa, sempre acolhendo os pés cansados que enfrentam o Mundo lá fora.
As Fridas têm bochechas coradas e lábios de rubi, numa mulher que, no fundo,
queria se libertar do Machismo e se maquiar para ficar bem bonita. O céu
nebuloso tem cheiro de chuva, e podemos ouvir trovoadas, como o acidente
automobilístico de Frida assinalou uma grande tempestade de dor.
Acima, O Marxismo Dará Saúde aos Doentes. Temos uma Frida simpatizante do
Marxismo? Talvez. Para Marx, a Religião era uma piada. Teria Frida aversão às
religiões? Talvez, pois ela não colocava muitos signos religiosos em sua obra.
Vemos aqui um par de muletas, provavelmente no momento pós-acidente
automobilístico, e eu já passei por isso, usar muletas: elas são como uma
prisão. No lado direito vemos um cogumelo, como numa explosão de bomba atômica,
no poder da Arte em “detonar” as mentes das pessoas, causando comoção, catarse.
Acima, uma pomba branca, numa Frida clamando por Paz, por entendimento entre as
nações do Mundo. Talvez de modo inconsciente, Frida quis representar o Espírito
Santo, o qual combate o ceticismo antirreligioso marxista, representando Marx ao
lado, com seus longos cabelos e longa barba. Deste Marx, sai um forte pulso de
uma mão corpulenta, forte, que esgana um homem de cartola com corpo de ave:
seria Winston Churchill, representante do Capitalismo Ocidental, derrotado pelo
Comunismo? Estaria Frida torcendo para o Comunismo triunfar no Mundo? Abaixo do
pombo branco, a esfera terrestre, palco da competição em Capitalismo e
Comunismo, na Guerra Fria. O continente asiático está claramente mostrado, e um
tom discreto de azul retratada o Oceano, na discrição da própria Frida, a qual
tinha uma face política e ativista, socialista, a qual não impediu que fosse
reconhecida nos EUA, o nervo capitalista mundial. Aqui, abraçam Frida duas
gigantescas mãos, como as mãos de Deus, do Infinito, abençoando a artista,
protegendo-a. Na palma de uma das mãos vemos um olho, como o Ser Supremo, que
tudo vê: Onisciência. Também abaixo do pombo vemos uma esfera menor, talvez a
Lua, guiando os ritmos terrestres, no mistério feminino das fases lunares
menstruais, nos inevitáveis sangramento e cólica, testando a coragem das
mulheres. Frida aqui segura um livro de capa vermelha, talvez um livro do
próprio Marx, como um cidadão brasileiro que, na época da Ditadura Militar,
sequer podia andar nas ruas portando qualquer livro de capa vermelha. Aqui,
vemos uma Frida seminua, provocante, longe dos holofotes preconceituosos
patriarcais. Frida usa um corpete desconfortável da cor da pele, como num espartilho
que reprime a mulher. As grandes mãos patriarcais parecem impor esse tipo de
tortura, vestindo Frida. Ainda assim, é um traje ousado, como no célebre corpete
de seios cônicos que Jean-Paul Gaultier desenhou para Madonna no início dos
anos 90. As brancas unhas destas grandes mãos são cuidadosamente cuidadas,
recatadas, caprichadas, numa Frida que caprichava na hora de produzir,
esforçando-se.
Acima, O Veado Ferido. Críticas alvejando alguém. Desconforto de ser
criticado. Dor de um grave acidente de carro, com as ferragens perfurando o
corpo do motorista. Fratura exposta. Um santo católico em martírio. Um
guerreiro ferido no combate. A expressão do rosto de Frida é plácida e
tranquila, aguentando estoicamente a dor, nunca sofrendo por essa dor. Frida
opta por não deixar a dor tomar o controle do cenário. Vemos aqui um bosque de
árvores sem vida, desoladas, e o veado está perdido, sem referência,
tornando-se vítima de caçadores impiedosos. Mas é a luta pela vida, e os
caçadores e suas respectivas famílias têm fome. É a Lei da Natureza: a Cadeia Alimentar.
Ao fundo vemos um rio ou um mar, de um azul caribenho, maravilhoso. O mar está
tranquilo e sem ondas, numa artista que produzia com exemplares calma e
ponderação, deliciando-se no processo criativo, numa formiguinha construindo
pacientemente o formigueiro, visto que certa vez perguntei a uma grande artista
qual era o segredo da “coisa”, e esta artista disse-me: “Paciência”, pois nunca
ouvimos que Roma não foi construída em um dia só? Acima do Mar vemos
ramificações vegetais, como veias num corpo, como um raio de tempestade,
trazendo a força terrível e implacável da Vida. Ao chão, vemos um ramo cortado
de árvore, com muitas folhas, no sacrifício da Vida, no inevitável sacrifício.
Aqui a Vida está ceifada, morrendo, assim como o inocente veado sofre com a
dureza do Mundo. As flechadas sangram, como no vinho da Última Ceia, como em
culturas primitivas, nas quais seres humanos e animais eram sacrificados em
nome das divindades pagãs. Cada flechada é uma crítica amarga, mas que acaba
fazendo o Bem, como um remédio de gosto ruim. Cinzento e duvidoso, o veado está
prestes a tombar, desequilibrando-se sobre suas finas e frágeis pernas, as
quais, apesar de ágeis, não conseguiram fugir do caçador. O Pensamento Racional
acaba impondo-se, e as críticas fálicas acabam por se revelar doces – é só uma
questão de tempo. Parece que um caçador tirou uma fotografia do veado, e a luz
agressiva do flash revela a verdade nua e crua. Os chifres na cabeça de Frida
são exuberantes e elegantes, e talvez serão serrados como um troféu de caça.
Restando ainda poucas forças, o veado tenta fugir, mas seu destino já está
selado.
Acima, Sem Esperança. Da boca de Frida sai uma catarse tsunâmica, num
vômito que expulsa aquilo que não estava fazendo bem a Frida, como num filme
onde o Bem triunfa ao final. Nesta lama catártica vemos peixes, uma agourenta
caveira, um terneiro, pedaços de carne vermelha, linguiças e uma ave. É como
numa mesa de refeição, e as carnes estão sendo preparadas. A caveira é a
finitude da vida, na inevitável Morte, e cada pessoa tem que fazer algo de
positivo durante os anos que essa mesma pessoa tem pela frente. Frida está
doente e abatida, e seu cabelo está solto, revolto, sem a usual aprumação
capilar que vemos em Frida em outros quadros. Ela repousa ao relento, desolada,
e um deserto pedregoso estende-se ao fundo, num sentimento inevitável de
solidão, sendo que cada pessoa tem que ter alguns momentos de solitude, na
solidão essencial para o processo de criação. Seus lençóis e travesseiros são
brancos e limpos, aconchegantes. A estampa do lençol traz esferas, talvez planetas,
numa Frida que olha para o céu noturno e pergunta-se sobre os segredos do
Universo, na sensibilidade do questionamento filosófico, da curiosidade. Vemos
um firmamento cinzento acima do deserto de pedras, e brilham juntos o Sol e a
Lua, convivendo pacificamente, nunca um ofuscando o outro, como num casamento
feliz e harmonioso. A cabeceira da cama traz dois mastros fálicos, assim como
as flechas que abatem o veado analisado nesta mesma postagem de blog. Os paus
são duas sentinelas impiedosas, como os extremos lunar e solar, no mistério
rítmico universal – o que faz o Universo funcionar? Aqui, Frida chora de dor, e
o vômito catártico dói para ser expelido. Como é terapêutica a Arte! Frida
coloca para fora o que a assombrava interiormente. Acima da cama, vemos uma
estrutura de madeira que acolhe os elementos da catarse, e tudo derrete como os
célebres relógios de Salvador Dalí. O Surrealismo é altamente psicológico, e o
artista ilumina o escuro, o inconsciente. De outro modo, em outra
interpretação, essa massa catártica parece estar sendo sugada e engolida por
Frida, como alimento espiritual. As lágrimas são gotas de chuva, nos fenômenos
da Natureza, e as gotas de dor servem para lavar e purificar, assinalando um
ponto de renovação, pois, já ouvi de uma psicoterapeuta, as crises são
positivas. Aqui, há paradoxo: a cama e o travesseiro são altamente confortáveis
e aconchegantes, mas, mesmo assim, há desconforto, pois nunca ouvimos dizer que
ser mãe é padecer no paraíso? Frida é mãe de sua própria arte, sentindo as
dores do parto e ficando orgulhosa de sua própria prole. O deserto solitário é
o retiro, o recato, numa mulher que viveu todo o machismo da cultura mexicana e
latinoamericana. A Arte é uma válvula de escape, curando. Arte é Saúde. E o
desespero do quadro traz esperança.
Acima, O Abraço Amoroso do Universo, da Terra, México, Eu Mesma, Diego e o
Senhor Xolotl. Frida adora Astronomia, retratando o Sol e a Lua no
firmamento. Aqui, temos um Sol imperfeito, revelando-se um revolto poço de fogo
furioso. Como Yin e Yang, há uma divisão de contraste no quadro, e uma mão
albina e outra negra abraçam o quadro inteiro, tendo abaixo de si ramificações
de nervos, ou plantas, ou raios de trovão, como uma planta desenraizada,
esperando para ser replantada e cuidada, do modo como Frida cuidava com muito
amor a própria obra. No plano geral ao fundo, uma face de uma mulher, que é
Tao, resultado da junção dos opostos. Nuvens negras e alvas trazem o contraste
de forma ampla e clara, numa Frida encontrando-se dentro de si mesma. Ao fundo
de Frida, a Mãe Terra, o solo primordial terroso, e uma gota de leite sai do
seio da Mãe Provedora, talvez a mãe de Frida, nos mistérios da Criação – o ser
humano jamais conseguirá ser Deus. Aqui, uma Frida de cabelos negros soltos, e
em seus braços um bebê gigante, como numa Pietà, e o bebê tem um terceiro olho
enorme, no poder da clarividência, enxergando-se a si mesmo no espelho existencial.
O bebê repousa sobre a saia de Frida, a qual tem tom terroso, com cheiro de
campo, de ar livre, de concepção – a Vida brota, sempre. Ao pé da saia, um
pequeno, adorável e inofensivo animal repousa em sono, acolhido pela paz do
útero, da Vida Metafísica, na qual a Paz reina absoluta. Pelo quadro em geral
vemos muitas plantas, no fascínio de Frida sobre a Vida que brota da misteriosa
Terra. Vemos alguns cactos, agressivos em sua espinhosidade, mas suculentos por
dentro, na recompensa do esforço, como Frida empenhou-se em sua própria obra.
Aqui, temos metalinguagem: a Grande Mãe, abraçando uma Mãe Menor, a qual abraça
outra ainda menor, a qual abraça o bebê, que abraça a si mesmo, como num plano
multidimensional, numa hierarquia, como no quadro de Da Vinci linkado aqui. Há
várias plantas espinhosas no quadro, representando a dor e, também, a
agressividade, o Yang. É a Coroa de Cristo, num homem que, em vida, frustrou-se
enormemente, prostrado na Cruz, só sendo reconhecido tempos depois. O bebê
segura um coração em chamas, como o Coração de Cristo, e a chama arde
intensamente, na vontade de Frida de produzir e se destacar, como na Natureza
existe a luta pela Vida. Perguntaram a Dercy Gonçalves o que é a Vida, e Dercy
respondeu: “A Vida é luta”.
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