Afroamericano, Jean-Michel
Basquiat marcou a Arte do fim do Século XX, sendo aclamado principalmente em Nova York, cidade que
respira Arte. Foi namorado da posptar Madonna, e formaram um belo casal
interracial de artistas, pois ambos eram pop. Com um charmoso e conveniente sobrenome
que remete à França, Basquiat chegou a pintar um quadro para a capa do disco de
remixes de Like a Prayer da cantora. Em
sua simplicidade, Basquiat tinha um traço cândido e quase infantil, revelando a
pura inocência que guia qualquer artista. As análises semióticas a seguir são
inteiramente minhas.
Acima, Box. Agressividade de um boxeador, o qual ergue as mãos como se
estivesse sendo abordado por um bandido armado, do modo como Basquiat tomou o
Mundo de assalto, sendo um assaltante do Bem. Acima da cabeça, vemos algo como
uma coroa de espinhos, na dor extrema da crucificação de Jesus, torturando, na
dor existencial que acomete a todos, como rosas com espinhos. A coroa tem duas
bolinhas vermelhas, remetendo a um headphone, como se Basquiat pintasse ao som
de algo que apreciava, buscando inspiração musical para pintar, pois nada mais
natural do que um artista gostar de outra Arte, de qualquer outra Arte, como me
disse uma amiga artista, para a qual tudo a interessa, revelando-se ela uma
cabeça grandiosa, sem mesquinharias. As luvas de Box erguem-se ameaçadoras,
prometendo bater em alguém que chegue perto demais, num aviso: respeite a linha
divisória entre você e eu. O boxeador é corpulento e forte, é claro, amedrontando
e aterrorizando o oponente, reinado na arena de competição, como um verdadeiro
gladiador. As obras de Basquiat não costumam ser minimalistas, e vemos um
complexo conjunto de traços, formando camadas de detalhes infindáveis, como num
muro extremamente pichado e vandalizado, nas cicatrizes inevitáveis da
existência as quais contam uma história, um trajeto, uma proveniência, na
acumulação existencial de experiências e aprendizado – Basquiat cresceu por
meio da própria arte. A boca do boxeador parece estar aprisionada por uma
focinheira de um cão agressivo, como um pitbull, ou como a claustrofóbica
máscara que aprisionou o psicopata Hannibal Lecter no clássico O Silêncio dos Inocentes. Aqui, o
boxeador está contido como nos instantes que antecedem uma briga de galos,
pronto para ser libertado e extravasar toda a sua agressividade implacável,
como um Mike Tyson arrancando com os dentes a orelha do oponente – o ser humano
é tosco, e Basquiat explora isso com o próprio traço “tosco”. Apesar das cores
coadjuvantes, o predomínio no quadro é entre o fundo branco e o corpo negro do
boxeador, como na cor da pele de Basquiat, como David Bowie caracterizado como
boxeador na capa do álbum Let’s Dance,
ou uma Madonna boxeadora na capa de Hard
Candy – não só o Mercado Fonográfico, mas o mundo da Arte é agressivo para
qualquer um que queira prosperar, numa esfera competitiva, e Basquiat sabia
disso. Os músculos do boxeador impõem-se, assustando quem quiser enfrentá-lo.
Para Basquiat, não havia linhas divisórias muito claras, obtendo um efeito
“míope”, desfocado, incerto, gerando uma estranheza que ganhou o gosto do
espectador. Sobre a cabeça do boxeador, uma trilha que aprece um trilho de trem
fazendo uma curva fechada, como na “Curva da Morte” da rodovia São Vendelino,
onde certa vez quase sofri um acidente. Os olhos do boxeador são “vazados”,
vazios, brancos, como na cegueira de animais que vivem nas profundezas
oceânicas, ocultos ao Mundo, nunca sendo reconhecidos, condenados a uma vida de
obscuridade, a qual é o temor de qualquer artista: não ser reconhecido nem
valorizado, na luta pela afirmação profissional. O boxeador parece erguer os
braços como se comemorasse uma sofrida vitória, triunfando sobre um oponente,
este abatido, derrotado e esquecido. O boxeador é tosco, parecendo um primata
pré-histórico. Como o ser humano é tosco, como dizia o mestre Tatata Pimentel,
chamado os grossos de “macacos”. Eterno mestre Tatata!
Acima, Cabeças Empoeiradas. Há uma dupla de figuras humanas, mais
parecendo ídolos de pedra da Ilha da Páscoa ou divindades incas, gravadas
toscamente em relevo na pedra. Ambos erguem as mãos e abanam, como se quisessem
fazer amizade com o espectador, estabelecendo um vínculo. O homem da direita
sorri numa boca que parece ter sido desenhada por uma criança, como quase tudo em Basquiat. O fundo é
negro, como numa noite encoberta, na dificuldade enorme de se prever o Futuro,
pois nada acontece exatamente do modo como prevíamos, nas surpresas as quais a
Vida nos reserva. Quanto ao homem da esquerda, não sabemos se este sorri. Ambos
têm olhos grandes e arregalados, como esculturas sumérias, representando homens
que olham incessantemente ao Céu, talvez esperando por uma revelação de ídolos
extraterrestres, como na denominação de Cidade
dos Deuses para a misteriosa cidade arqueológica de Teotihuacán. Os homens
aqui têm cabelo arrepiado, eriçado como espinhos, e um respeita o espaço do
outro. Entre eles há uma divisória esbranquiçada, como uma parede ou um muro,
separando vizinhos, cada um em seu lote, em seu reino, em seu domínio, como
dois grandes reis conversando, cada um feliz com o próprio reino, nunca
querendo invadir o reino vizinho, na busca pela Paz, simbolizada pela cor
branca. Basquiat brinca com a tinta escorrendo, nunca querendo perfeccionismo,
como se soubesse que a intenção da vida NÃO é ser perfeita, mas cheia de
percalços, os quais devem ser driblados com elegância olímpica e coragem.
Apesar do enclausurante fundo preto, vemos aqui uma festa de cores, na candura
de uma colorida caixa de balas ou bombons. Os homens parecem estar divertindo-se
num baile de Carnaval, jogando muita serpentina pelo salão alegre. É um momento
de brinde e euforia, numa festa onde a Harmonia reina, esquecendo-se aqui as
diferenças entre os reinos da Terra – é o poder pacificador das festas, num ato
de saúde coletiva. Os traços rabiscados aqui remetem a vasos sanguíneos, unindo
os seres humanos sob o mesmo sangue, sob o mesmo tronco genealógico primordial,
pois, se somos irmãos, por que há guerras? A Arte é o oposto da Guerra, pois
nesta não há beleza, nem harmonia, nem bondade. Na face do homem da esquerda,
vemos várias “formigas” negras caminhando em conjunto, talvez construindo um
formigueiro, um lar onde possam trabalhar e, depois, repousar, num incessante
labor. As formigas prometem entrar em reprodução e tomar conta do quadro e de
tudo mais, como nas legiões de fãs angariadas por Basquiat, o qual caiu nas
graças de quem ama Arte, no privilégio de ser devidamente reconhecido. O homem
da direita está com ambas a mãos para cima, abanando a um amigo, num momento
festivo eufórico, talvez bradando a passagem de uma escola de Samba, como no
púbis da foliã fotografada ao lado do então presidente Itamar Franco, numa
notícia que ganhou o Mundo – no Carnaval, tudo pode acontecer. O homem da
direita tem o corpo avermelhado, no sangue de folião que pulsa no Carnaval. Já,
o da esquerda tem o rosto alaranjado, como uma laranja ou uma bergamota, na
acidez criativa de um artista que possui dentro de si uma saudável e necessária
pitada de agressividade. Vemos um Basquiat incerto, como na cativante
insegurança existencial do personagem Charlie Brown, o qual, no Natal, diz não
se sentir tão animado para decorar árvores e dar presentes, sentindo-se humildemente
como uma tesoura cega. E os olhos dos homens são esferas gravitando ao redor do
mesmo sol, na dança incessante do Universo, regido pelo ritmo sensual
gravitacional, como na dança entre as estações do ano. Os homens estão felizes,
num artista feliz em ser quem é, no conforto existencial, o qual, porém, sempre
trará uma pitada de dor – mas é só uma pitadinha.
Acima, Africanos Hollywoodianos. Basquiat fazendo menção à sua própria
cor, anos antes de Obama ser presidente. Três faces humanas aparecem – a mais
da direita repousa a mão sobre o queixo, como se estivesse pensando,
filosofando, num artista sempre buscando possibilidades. Esta é uma
obra-redação, pois há inscrições variadas pelo quadro, cuja cor predominante é
o amarelo, a cor do Sol, do ouro, na ambição de vencer e ganhar o ouro
olímpico. O quadro parece ser uma parede na rua, uma parede que já sofreu
inúmeras violações e degradações, exibindo cicatrizes de vandalismo, uma praga
de qualquer grande cidade ocidental. É o ouro do Oscar, a estatueta cobiçada, a
qual só pertence a poucos privilegiados, na exclusão dos concorrentes que só
foram indicados. Vemos duas pegadas azuis – uma maior e outra menor, como
alguém com um defeito físico, com pés de tamanhos diferentes, nas dificuldades
de quem não nasce normal, de quem não é previsível. É um “defeito” que acaba
tornando-se um diferencial, uma vantagem, e o artista consegue vislumbrar o
próprio lugar no Mundo, encontrando-se consigo mesmo, encontrando-se sempre
dentro de si mesmo, nunca fora. É a pessoa que se nega a projetar-se em outrem,
sabendo enxergar a si mesmo, sem projeções. O artista tem um caso de amor com a
própria arte, amando esta, respirando esta, fazendo desta um propósito de vida,
um norte existencial – quem não tem norte, sofre. Na parte inferior vemos um
lindo azul caribenho, num mar delicioso, como um confortável útero. É como se
Basquiat estivesse de férias, só que trabalhando, encontrando prazer em produzir. Também
na parte inferior vemos um desenho de coroa, num Basquiat rei, dono absoluto de
seu próprio reino, reinando livre pela Arte, alcançando reconhecimento. A
parede é como as paredes de um surrado banheiro público masculino, com inscrições
agressivas e chulas, numa sociedade que cobra implacavelmente dos homens o
desenvolvimento da agressividade. Vemos seis estrelas azuis, só que há a
inscrição Sete estrelas. O que será
que aconteceu com a sétima estrela? Teria sido surrupiada? Não sabemos. E
Basquiat tem que se contentar com apenas seis estrelas, no sentido de que, na
Vida, não se pode ter tudo, precisando haver contentamento, pois já ouvi dizer:
“A maior riqueza é se contentar com pouco”, como diz Tao: “Se o que você tem
você acha que não é o suficiente, então você nunca vai ter o suficiente”. Este
quadro realmente não busca por beleza, e Basquiat era assim, “feio”, cheio de
atitude e estilo desbravador, como Freud para a Psicanálise. Realmente, aqui a
beleza é ignorada, e a agressividade aparece exatamente para proteger o que é
belo, feminino e frágil. As três faces são as Três Marias no céu, brilhando no
enigma da existência: o que será o universo? E Hollywood aparece aqui como a
terra do sucesso e da frustração, pois o Mundo do Cinema é repleto de sonhos
que acabaram naufragando. É claro que Basquiat era um sonhador. Mas, ao mesmo
tempo, ele percebia a necessidade de “feiura”, de atitude, como disse-me um
psiquiatra: “Vivemos num mundo competitivo, e a agressividade é necessária”.
Então surge a necessidade de diferenciação, e cada artista tem que buscar o seu
próprio estilo, deixando uma marca inconfundível e indelével, como num lindo poema
de minha falecida avó Nelly Veronese Mascia, que dizia que as estrelas
coruscando no céu são os poetas mortos comunicando-se por Código Morse. A
questão da violência vem aqui com a inscrição Gangsterism, mencionando as gangues de criminosos, poluindo o corpo
social, na questão preconceituosa de ligar a cor negra ao conceito de bandido,
como o músico negro Lenny Kravitz já foi confundido com um bandido.
Acima, Ironia do Policial Negro. Mais uma vez, entra em cena a questão
racial. O policial usa uma elegante cartola, como um Sir Winston Churchill.
Aqui, vemos a inscrição Negro que, em
inglês, é um termo pejorativo e preconceituoso, ofensivo, num Basquiat
enfrentando de frente a questão racial na América. O policial é de um discreto
azul marinho, na discrição do policial, este zelando pela Lei e pela Ordem,
como nas inscrições positivistas na Bandeira Nacional Brasileira. O rosto do
policial é cadavérico, remetendo a uma caveira, como um deus de vodu, remetendo
à Cultura Negra, como a inquietante Seção Africana do museu Met. O fundo é branco,
clamando por harmonia, querendo colocar um fim no Racismo, o qual não tem
finalidade, não tem virtude. É divertido observar o traço infantil de Basquiat,
parecendo um desenho de uma criança na Pré-Escola. Basquiat quer Paz,
inspirando-se na pureza infantil. O policial tem algo que parece ser um
distintivo dourado, impondo autoridade, no poder de prender pessoas por
desacato, como na personagem Phoebe de Friends,
ao encontrar um distintivo perdido na rua e começar a fica embevecida com o
poder representado pelo distintivo, do modo como o Anel de Tolkien corrompe
almas honestas, destruindo o caráter de homens honestos e íntegros – Tolkien
tem uma visão sombria sobre a Humanidade. A caveira mostra a finitude, o fim da
encarnação, na danação da carne, na lei de que o que nasce, morre. Como tudo em
Basquiat, vemos muitos traços afoitos e incertos, como uma criança explorando
possibilidades de Arte e Criação, num Basquiat “grávido”, cheio de filhotes
para colocar no Mundo, numa mente rica e inquieta, sempre criando, como se diz
que Tao está sempre criando. O policial tem mãos que parecem ser garras de
Wolverine, na agressividade necessária para que o Crime seja combatido e a
Sociedade seja protegida, como na Liga da Justiça.
Acima, Sem Título. Vemos uma grande caveira pensativa, com cabelos ralos
que parecem ser espinhos, como os raios de Sol, que não podem ser vistos
diretamente, podendo causar cegueira. É um cabelo de militar do sexo masculino,
sem chance alguma para beleza, como nas policiais femininas, obrigadas a usar
um espartano coque. É a disciplina. A caveira está cabisbaixa, olhando para o
chão, meio desanimada, deprimida, solitária. Sua boca não sorri, e usa dentes
que parecem ser de ouro, ou dentes amarelados pelo tempo, como o papel
envelhece e fica amarelo, na inevitável passagem do Tempo, o qual, apesar de
extenso, passa rápido. O cérebro aqui divide-se em vários setores e gavetas,
numa organização psíquica, com cada coisa guardada devidamente no seu lugar,
numa vida organizada e estruturada. Os olhos estão mortificados, desprovidos de
ilusão, não mais idealizando a Vida e o Mundo. No fundo temos um predomínio de
rosa e azul, como num doce céu crepuscular, enchendo os olhos de cor. Há formas
aqui que parecem ser cicatrizes, sucedendo cortes suturados, como na roupa de
Mulhergato de Michelle Pfeiffer, como um Frankenstein, com partes de cadáveres
unidas e trazidas à Vida. É um quadro rico em cores, como muito em Basquiat. As já
mencionadas “cicatrizes” podem também ser interpretadas como os rabiscos de
presidiários, contando os dias para sair da prisão, do modo como o Espiritismo
diz: “O espírito gosta de estar encarnado? Pergunte a um prisioneiro se ele
gosta da prisão”. Quanto a isso, esta doutrina é muito clara e enfática. Vemos
na caveira algumas linhas vermelhas, como na Linha Vermelha do Rio de Janeiro,
representando o sangue derramado pela Guerra do Tráfico. Aqui, estas artérias
fazem o transporte de oxigênio e nutrientes essenciais, provendo o corpo
social, numa Nova York tão sedenta por Arte e novidades, num vislumbre de
oportunidade de Negócios, de Mercado. É uma cabeça pensativa. Os rabiscos
parecem ser de uma criança que sequer foi alfabetizada. O cérebro toma ponto
central no quadro, no modo como a Mente rege o Corpo. Os cabelos são uma grama
sendo cultivada, impecavelmente aparada, talvez tolhendo pensamentos mais
afoitos e imprudentes. Siso.
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