quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O Adulto Criança


Afroamericano, Jean-Michel Basquiat marcou a Arte do fim do Século XX, sendo aclamado principalmente em Nova York, cidade que respira Arte. Foi namorado da posptar Madonna, e formaram um belo casal interracial de artistas, pois ambos eram pop. Com um charmoso e conveniente sobrenome que remete à França, Basquiat chegou a pintar um quadro para a capa do disco de remixes de Like a Prayer da cantora. Em sua simplicidade, Basquiat tinha um traço cândido e quase infantil, revelando a pura inocência que guia qualquer artista. As análises semióticas a seguir são inteiramente minhas.


Acima, Box. Agressividade de um boxeador, o qual ergue as mãos como se estivesse sendo abordado por um bandido armado, do modo como Basquiat tomou o Mundo de assalto, sendo um assaltante do Bem. Acima da cabeça, vemos algo como uma coroa de espinhos, na dor extrema da crucificação de Jesus, torturando, na dor existencial que acomete a todos, como rosas com espinhos. A coroa tem duas bolinhas vermelhas, remetendo a um headphone, como se Basquiat pintasse ao som de algo que apreciava, buscando inspiração musical para pintar, pois nada mais natural do que um artista gostar de outra Arte, de qualquer outra Arte, como me disse uma amiga artista, para a qual tudo a interessa, revelando-se ela uma cabeça grandiosa, sem mesquinharias. As luvas de Box erguem-se ameaçadoras, prometendo bater em alguém que chegue perto demais, num aviso: respeite a linha divisória entre você e eu. O boxeador é corpulento e forte, é claro, amedrontando e aterrorizando o oponente, reinado na arena de competição, como um verdadeiro gladiador. As obras de Basquiat não costumam ser minimalistas, e vemos um complexo conjunto de traços, formando camadas de detalhes infindáveis, como num muro extremamente pichado e vandalizado, nas cicatrizes inevitáveis da existência as quais contam uma história, um trajeto, uma proveniência, na acumulação existencial de experiências e aprendizado – Basquiat cresceu por meio da própria arte. A boca do boxeador parece estar aprisionada por uma focinheira de um cão agressivo, como um pitbull, ou como a claustrofóbica máscara que aprisionou o psicopata Hannibal Lecter no clássico O Silêncio dos Inocentes. Aqui, o boxeador está contido como nos instantes que antecedem uma briga de galos, pronto para ser libertado e extravasar toda a sua agressividade implacável, como um Mike Tyson arrancando com os dentes a orelha do oponente – o ser humano é tosco, e Basquiat explora isso com o próprio traço “tosco”. Apesar das cores coadjuvantes, o predomínio no quadro é entre o fundo branco e o corpo negro do boxeador, como na cor da pele de Basquiat, como David Bowie caracterizado como boxeador na capa do álbum Let’s Dance, ou uma Madonna boxeadora na capa de Hard Candy – não só o Mercado Fonográfico, mas o mundo da Arte é agressivo para qualquer um que queira prosperar, numa esfera competitiva, e Basquiat sabia disso. Os músculos do boxeador impõem-se, assustando quem quiser enfrentá-lo. Para Basquiat, não havia linhas divisórias muito claras, obtendo um efeito “míope”, desfocado, incerto, gerando uma estranheza que ganhou o gosto do espectador. Sobre a cabeça do boxeador, uma trilha que aprece um trilho de trem fazendo uma curva fechada, como na “Curva da Morte” da rodovia São Vendelino, onde certa vez quase sofri um acidente. Os olhos do boxeador são “vazados”, vazios, brancos, como na cegueira de animais que vivem nas profundezas oceânicas, ocultos ao Mundo, nunca sendo reconhecidos, condenados a uma vida de obscuridade, a qual é o temor de qualquer artista: não ser reconhecido nem valorizado, na luta pela afirmação profissional. O boxeador parece erguer os braços como se comemorasse uma sofrida vitória, triunfando sobre um oponente, este abatido, derrotado e esquecido. O boxeador é tosco, parecendo um primata pré-histórico. Como o ser humano é tosco, como dizia o mestre Tatata Pimentel, chamado os grossos de “macacos”. Eterno mestre Tatata!


Acima, Cabeças Empoeiradas. Há uma dupla de figuras humanas, mais parecendo ídolos de pedra da Ilha da Páscoa ou divindades incas, gravadas toscamente em relevo na pedra. Ambos erguem as mãos e abanam, como se quisessem fazer amizade com o espectador, estabelecendo um vínculo. O homem da direita sorri numa boca que parece ter sido desenhada por uma criança, como quase tudo em Basquiat. O fundo é negro, como numa noite encoberta, na dificuldade enorme de se prever o Futuro, pois nada acontece exatamente do modo como prevíamos, nas surpresas as quais a Vida nos reserva. Quanto ao homem da esquerda, não sabemos se este sorri. Ambos têm olhos grandes e arregalados, como esculturas sumérias, representando homens que olham incessantemente ao Céu, talvez esperando por uma revelação de ídolos extraterrestres, como na denominação de Cidade dos Deuses para a misteriosa cidade arqueológica de Teotihuacán. Os homens aqui têm cabelo arrepiado, eriçado como espinhos, e um respeita o espaço do outro. Entre eles há uma divisória esbranquiçada, como uma parede ou um muro, separando vizinhos, cada um em seu lote, em seu reino, em seu domínio, como dois grandes reis conversando, cada um feliz com o próprio reino, nunca querendo invadir o reino vizinho, na busca pela Paz, simbolizada pela cor branca. Basquiat brinca com a tinta escorrendo, nunca querendo perfeccionismo, como se soubesse que a intenção da vida NÃO é ser perfeita, mas cheia de percalços, os quais devem ser driblados com elegância olímpica e coragem. Apesar do enclausurante fundo preto, vemos aqui uma festa de cores, na candura de uma colorida caixa de balas ou bombons. Os homens parecem estar divertindo-se num baile de Carnaval, jogando muita serpentina pelo salão alegre. É um momento de brinde e euforia, numa festa onde a Harmonia reina, esquecendo-se aqui as diferenças entre os reinos da Terra – é o poder pacificador das festas, num ato de saúde coletiva. Os traços rabiscados aqui remetem a vasos sanguíneos, unindo os seres humanos sob o mesmo sangue, sob o mesmo tronco genealógico primordial, pois, se somos irmãos, por que há guerras? A Arte é o oposto da Guerra, pois nesta não há beleza, nem harmonia, nem bondade. Na face do homem da esquerda, vemos várias “formigas” negras caminhando em conjunto, talvez construindo um formigueiro, um lar onde possam trabalhar e, depois, repousar, num incessante labor. As formigas prometem entrar em reprodução e tomar conta do quadro e de tudo mais, como nas legiões de fãs angariadas por Basquiat, o qual caiu nas graças de quem ama Arte, no privilégio de ser devidamente reconhecido. O homem da direita está com ambas a mãos para cima, abanando a um amigo, num momento festivo eufórico, talvez bradando a passagem de uma escola de Samba, como no púbis da foliã fotografada ao lado do então presidente Itamar Franco, numa notícia que ganhou o Mundo – no Carnaval, tudo pode acontecer. O homem da direita tem o corpo avermelhado, no sangue de folião que pulsa no Carnaval. Já, o da esquerda tem o rosto alaranjado, como uma laranja ou uma bergamota, na acidez criativa de um artista que possui dentro de si uma saudável e necessária pitada de agressividade. Vemos um Basquiat incerto, como na cativante insegurança existencial do personagem Charlie Brown, o qual, no Natal, diz não se sentir tão animado para decorar árvores e dar presentes, sentindo-se humildemente como uma tesoura cega. E os olhos dos homens são esferas gravitando ao redor do mesmo sol, na dança incessante do Universo, regido pelo ritmo sensual gravitacional, como na dança entre as estações do ano. Os homens estão felizes, num artista feliz em ser quem é, no conforto existencial, o qual, porém, sempre trará uma pitada de dor – mas é só uma pitadinha.


Acima, Africanos Hollywoodianos. Basquiat fazendo menção à sua própria cor, anos antes de Obama ser presidente. Três faces humanas aparecem – a mais da direita repousa a mão sobre o queixo, como se estivesse pensando, filosofando, num artista sempre buscando possibilidades. Esta é uma obra-redação, pois há inscrições variadas pelo quadro, cuja cor predominante é o amarelo, a cor do Sol, do ouro, na ambição de vencer e ganhar o ouro olímpico. O quadro parece ser uma parede na rua, uma parede que já sofreu inúmeras violações e degradações, exibindo cicatrizes de vandalismo, uma praga de qualquer grande cidade ocidental. É o ouro do Oscar, a estatueta cobiçada, a qual só pertence a poucos privilegiados, na exclusão dos concorrentes que só foram indicados. Vemos duas pegadas azuis – uma maior e outra menor, como alguém com um defeito físico, com pés de tamanhos diferentes, nas dificuldades de quem não nasce normal, de quem não é previsível. É um “defeito” que acaba tornando-se um diferencial, uma vantagem, e o artista consegue vislumbrar o próprio lugar no Mundo, encontrando-se consigo mesmo, encontrando-se sempre dentro de si mesmo, nunca fora. É a pessoa que se nega a projetar-se em outrem, sabendo enxergar a si mesmo, sem projeções. O artista tem um caso de amor com a própria arte, amando esta, respirando esta, fazendo desta um propósito de vida, um norte existencial – quem não tem norte, sofre. Na parte inferior vemos um lindo azul caribenho, num mar delicioso, como um confortável útero. É como se Basquiat estivesse de férias, só que trabalhando, encontrando prazer em produzir. Também na parte inferior vemos um desenho de coroa, num Basquiat rei, dono absoluto de seu próprio reino, reinando livre pela Arte, alcançando reconhecimento. A parede é como as paredes de um surrado banheiro público masculino, com inscrições agressivas e chulas, numa sociedade que cobra implacavelmente dos homens o desenvolvimento da agressividade. Vemos seis estrelas azuis, só que há a inscrição Sete estrelas. O que será que aconteceu com a sétima estrela? Teria sido surrupiada? Não sabemos. E Basquiat tem que se contentar com apenas seis estrelas, no sentido de que, na Vida, não se pode ter tudo, precisando haver contentamento, pois já ouvi dizer: “A maior riqueza é se contentar com pouco”, como diz Tao: “Se o que você tem você acha que não é o suficiente, então você nunca vai ter o suficiente”. Este quadro realmente não busca por beleza, e Basquiat era assim, “feio”, cheio de atitude e estilo desbravador, como Freud para a Psicanálise. Realmente, aqui a beleza é ignorada, e a agressividade aparece exatamente para proteger o que é belo, feminino e frágil. As três faces são as Três Marias no céu, brilhando no enigma da existência: o que será o universo? E Hollywood aparece aqui como a terra do sucesso e da frustração, pois o Mundo do Cinema é repleto de sonhos que acabaram naufragando. É claro que Basquiat era um sonhador. Mas, ao mesmo tempo, ele percebia a necessidade de “feiura”, de atitude, como disse-me um psiquiatra: “Vivemos num mundo competitivo, e a agressividade é necessária”. Então surge a necessidade de diferenciação, e cada artista tem que buscar o seu próprio estilo, deixando uma marca inconfundível e indelével, como num lindo poema de minha falecida avó Nelly Veronese Mascia, que dizia que as estrelas coruscando no céu são os poetas mortos comunicando-se por Código Morse. A questão da violência vem aqui com a inscrição Gangsterism, mencionando as gangues de criminosos, poluindo o corpo social, na questão preconceituosa de ligar a cor negra ao conceito de bandido, como o músico negro Lenny Kravitz já foi confundido com um bandido.


Acima, Ironia do Policial Negro. Mais uma vez, entra em cena a questão racial. O policial usa uma elegante cartola, como um Sir Winston Churchill. Aqui, vemos a inscrição Negro que, em inglês, é um termo pejorativo e preconceituoso, ofensivo, num Basquiat enfrentando de frente a questão racial na América. O policial é de um discreto azul marinho, na discrição do policial, este zelando pela Lei e pela Ordem, como nas inscrições positivistas na Bandeira Nacional Brasileira. O rosto do policial é cadavérico, remetendo a uma caveira, como um deus de vodu, remetendo à Cultura Negra, como a inquietante Seção Africana do museu Met. O fundo é branco, clamando por harmonia, querendo colocar um fim no Racismo, o qual não tem finalidade, não tem virtude. É divertido observar o traço infantil de Basquiat, parecendo um desenho de uma criança na Pré-Escola. Basquiat quer Paz, inspirando-se na pureza infantil. O policial tem algo que parece ser um distintivo dourado, impondo autoridade, no poder de prender pessoas por desacato, como na personagem Phoebe de Friends, ao encontrar um distintivo perdido na rua e começar a fica embevecida com o poder representado pelo distintivo, do modo como o Anel de Tolkien corrompe almas honestas, destruindo o caráter de homens honestos e íntegros – Tolkien tem uma visão sombria sobre a Humanidade. A caveira mostra a finitude, o fim da encarnação, na danação da carne, na lei de que o que nasce, morre. Como tudo em Basquiat, vemos muitos traços afoitos e incertos, como uma criança explorando possibilidades de Arte e Criação, num Basquiat “grávido”, cheio de filhotes para colocar no Mundo, numa mente rica e inquieta, sempre criando, como se diz que Tao está sempre criando. O policial tem mãos que parecem ser garras de Wolverine, na agressividade necessária para que o Crime seja combatido e a Sociedade seja protegida, como na Liga da Justiça.


Acima, Sem Título. Vemos uma grande caveira pensativa, com cabelos ralos que parecem ser espinhos, como os raios de Sol, que não podem ser vistos diretamente, podendo causar cegueira. É um cabelo de militar do sexo masculino, sem chance alguma para beleza, como nas policiais femininas, obrigadas a usar um espartano coque. É a disciplina. A caveira está cabisbaixa, olhando para o chão, meio desanimada, deprimida, solitária. Sua boca não sorri, e usa dentes que parecem ser de ouro, ou dentes amarelados pelo tempo, como o papel envelhece e fica amarelo, na inevitável passagem do Tempo, o qual, apesar de extenso, passa rápido. O cérebro aqui divide-se em vários setores e gavetas, numa organização psíquica, com cada coisa guardada devidamente no seu lugar, numa vida organizada e estruturada. Os olhos estão mortificados, desprovidos de ilusão, não mais idealizando a Vida e o Mundo. No fundo temos um predomínio de rosa e azul, como num doce céu crepuscular, enchendo os olhos de cor. Há formas aqui que parecem ser cicatrizes, sucedendo cortes suturados, como na roupa de Mulhergato de Michelle Pfeiffer, como um Frankenstein, com partes de cadáveres unidas e trazidas à Vida. É um quadro rico em cores, como muito em Basquiat. As já mencionadas “cicatrizes” podem também ser interpretadas como os rabiscos de presidiários, contando os dias para sair da prisão, do modo como o Espiritismo diz: “O espírito gosta de estar encarnado? Pergunte a um prisioneiro se ele gosta da prisão”. Quanto a isso, esta doutrina é muito clara e enfática. Vemos na caveira algumas linhas vermelhas, como na Linha Vermelha do Rio de Janeiro, representando o sangue derramado pela Guerra do Tráfico. Aqui, estas artérias fazem o transporte de oxigênio e nutrientes essenciais, provendo o corpo social, numa Nova York tão sedenta por Arte e novidades, num vislumbre de oportunidade de Negócios, de Mercado. É uma cabeça pensativa. Os rabiscos parecem ser de uma criança que sequer foi alfabetizada. O cérebro toma ponto central no quadro, no modo como a Mente rege o Corpo. Os cabelos são uma grama sendo cultivada, impecavelmente aparada, talvez tolhendo pensamentos mais afoitos e imprudentes. Siso.

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