No Ensino Médio, em um livro
de História, fascinou-me a obra A
Liberdade Guiando o Povo, de Eugène Delacroix, no afã da Revolução Francesa
em libertar o povo das garras monárquicas, uma revolução que, muito tempo
depois, inspirou a criação da República Brasileira; uma revolução que definiu
os moldes democráticos que perduram até hoje e, muito provavelmente, perdurarão
por muito mais, num paradigma político fortíssimo – existe forma de governo
mais digna e racional do que a Democracia? Os textos e análises semióticas a
seguir são inteiramente meus.
Acima, A Barca de Dante. Delacroix faz uma construção fabulosa de nus, com
cada músculo definido, num jogo de luz e sombra, num verdadeiro herdeiro de
Leonardo da Vinci, o precursor da Arte Europeia Acadêmica. É um quadro de
instabilidade, de escuridão, de caos, de trevas. O barco instável é a Vida,
inevitavelmente inconstante, numa existência errática, torta, conflituosa. Ao
fundo, uma cidade em chamas, em pleno processo de destruição, como um cadáver
apodrecendo, como no terceiro tomo de O
Jardim das Delícias: caos e destruição, na completa falência da Vida em
Sociedade, no retorno à desorganização da Natureza, uma selva onde as Leis dos
Homens nada mais significam. A cidade arde em chamas como o Inferno de Dante,
numa dimensão caótica, onde só o que resta é rezar para se sair dali. É uma
armadilha quase inescapável, da qual poucos se desvinculam, com almas
sofredoras se arrastando infindavelmente, sempre sofrendo com fome, sede, frio
ou calor. É uma visão pessimista, sem ilusões em relação ao Ser Humano, como em
Tolkien, o qual tem uma visão pessimista do Homem, colocando este como fraco
demais para resistir às tentações e ambições humanas: Tudo o que um homem
poderoso quer é ter mais poder. As águas instáveis ameaçam a barca, numa vida
tão frágil, tão submetida a solavancos violentos que trazem a tortuosidade de
colunas barrocas, em águas tão impiedosas, tão desprovidas de acolhimento ou
contentamento. É como a soberba cena do naufrágio de Titanic, onde a Vida em Sociedade falha enormemente, condenando
aqueles seres humanos à Morte, ao fim de tudo, nas profundas entranhas do
Oceano, como quando, no fim do filme, uma preciosíssima joia é intencionalmente
jogada no Mar, rechaçando as ambições humanas, que só querem riqueza mundana,
só ouro, só matéria, ignorando que há uma metáfora nas pedras preciosas, as
quais representam o Infinito e o Eterno, mas pedras que são nada mais do que
rochas, pedras, no modo como a Matéria (e tudo relacionado a esta) está
condenada à danação e à deterioração, e nada de material é eterno, nem mesmo o
mais caro colar de pedras caras – nada é maior do que a Eternidade, a qual
revela um poder imenso que nos rege. Os dois homens vestidos na barca são o
privilégio social, e suas vestes entram em contraste com os corpos nus que se
debatem n’água, como se fosse um liquidificador, sem qualquer noção de Paz ou
estabilidade. A incidência de luz sobre alguns corpos é soberba, numa técnica
digna de mestre. Um homem seminu está também dentro do barco e segura um remo,
que, sendo retilíneo, é o poder da Razão, da Lógica, do Raciocínio, e busca
impor alguma ordem a um cenário tão caótico e louco, numa guerra entre Razão e
Loucura, em que a Vida em Sociedade busca estabelecer limites e noções
civilizatórias, buscando em
Jesus Cristo as noções de Bem, de algo construtivo e
positivo, no maior pensador da História. Num quadro tão desorganizado, tudo o
que resta ao indivíduo é rezar, como numa pobre alma desnorteada e perdida no
Umbral, sem consolo algum, tendo que rezar e ter a esperança de que será
resgatado de tão terrível e dura prisão, no modo como o Espiritismo diz: Se
você quer saber que o encarnado gosta de estar encarnado, pergunte a um
prisioneiro se ele gosta da prisão, como no filme em que Clint Eastwood
faz um prisioneiro de Alcatraz, obcecando-se em fugir a qualquer custo, numa
ironia, pois o espectador fica torcendo para que o bandido se dê bem. Os corpos
que estão jogados n’água querem desesperadamente entrar na barca, a qual é um
espaço para poucos, no modo como os privilégios sociais são para poucos; no
modo como o ouro é para poucos, e, a pessoa rica, considerada feliz na Terra,
fica reduzida a um quadro de infelicidade existencial enorme. No canto inferior
direito, dois homens lutam e se debatem, querendo um montar sobre o outro; um
afogar o outro. É o egoísmo humano, no qual o indivíduo mal se importa com
outrem; com as vicissitudes que outrem enfrentam. É um quadro trágico da Vida
Humana, no qual cada um pensa só em si, no modo de como amar, sem pieguice ou
sentimentalismo, é se colocar nos sapatos do outro, produzindo compreensão. É a
patetice das vaidades humanas, sempre ridículas, sempre cruéis.
Acima, A Liberdade Guiando o Povo. Apesar de exausta, a Liberdade segue
guiando o Povo Francês, num último empreendimento de esforço rumo à redenção.
Os lindos seios são a Mãe Provedora, a Mãe Pátria, amamentando seus filhos nos
ares de liberdade e renovação que significaram a Revolução Francesa. É uma
turba raivosa, indignada com o preço do pão, num povo exausto dos luxos de uma
aristocracia, sendo esta uma camada social que pouco se importava com as bases
da pirâmide social, num rei enfraquecido, que se afastou do seu próprio povo, praticamente
depondo a si mesmo. E por que a Liberdade aqui é uma figura feminina, opondo-se
à agressividade masculina dos revoltosos? É uma espécie de musa, de inspiração,
na beleza da mulher comum, da mulher não pertencente à Aristocracia, no modo
como a bela Maria Antonieta foi guilhotinada, sepultando as noções que
vinculavam poder a beleza. O cabo rijo da bandeira francesa resiste firmemente,
empunhando uma bandeira intacta, a qual não mostra qualquer sinal de tempo ou
uso, numa simplicidade gráfica que se opunha aos excessos gráficos
aristocráticos franceses. E o vermelho da bandeira é o sangue derramado na
guerra, no sangue comum aos seres humanos, num momento em que o conceito de
“sangue azul” perdia total força, pelo menos na França, ao contrário da
Inglaterra, que cultiva até hoje suas raízes monárquicas, tendo aqui duas
nações tão diferentes uma da outra; tão próximas geograficamente. Homens aqui
pegam em armas, furiosamente, não mais aceitando curvar-se perante reis que
pouco amavam o próprio povo, num ponto de ruptura, sendo esta muito grande, ao
ponto de projetar no pescoço de Maria Antonieta todos os males absolutistas,
males estes aqui combatidos e rechaçados, como no assassinato da família real
russa, os Romanov, tendo aqui outra revolução, de outra época e contexto, mas
uma revolução que, provavelmente, encontrou na Francesa alguma luz ou
inspiração. Nunca ouvimos falar de que todo poder emana do povo e em nome deste
deve ser exercido? Um ponto interessante: ao lado da musa da Revolução, um
menino, de tenra idade, com uma pistola em cada mão, atirando arruaceiramente
para cima, e é um filho da revolução, numa França que renascia, voltando a ser
criança de novo, renascendo, com todo um futuro pela frente, amadrinhado pela
Liberdade que guia o povo. A Liberdade aqui protege o menino, e é também a
visão de Delacroix sobre o Ser Humano: a Humanidade tem tanto ainda por vir, a
Humanidade tem tanto ainda para crescer, mas ainda não cresceu, e, muitas
vezes, é um irresponsável infante pegando em armas, as quais, segundo Tao, são
coisas terríveis, e nenhum homem de Paz poderia pegar em armas. Uma figura
humana se curva aos pés da Liberdade, pedindo piedade – seria um aristocrata
arrependido? A Revolução Francesa foi um ponto de inversões enormes, em que a
pirâmide foi virada de pernas para o ar, estarrecendo o Mundo Ocidental. Mas a
Liberdade está ocupada demais em liderar o Povo Francês. É um quadro muito
belicista, com armas em punho e ferocidade, e assim é qualquer revolução – um
momento de rompimento violento, agressivo, numa aristocracia arrogante que se
achava tão superior ao proletariado, como o czar deposto, que pouco se
importava com os rigorosos invernos russos. Aos pés deste quadro, cadáveres
caídos, aristocratas violentamente assassinados, sequer com o direito a um
sepulcro decente, representando a ordem social falida e obsoleta. São os
soldados do rei, incubidos de reprimir ao máximo o movimento popular – o povo
fora subestimando. Atrás da Liberdade, um céu que se abre iluminado, limpo e
majestoso, na beleza racional do pensamento republicano, reduzindo a monarquia
aqui a um ser malévolo, patético, animalesco e desprezível. É um quadro viril,
e a Liberdade aqui é uma guerreira, uma amazona, num momento em que a
Feminilidade de uma rainha pouco importava. Bem ao fundo, prédios de uma Paris
tomada pelos rebeldes, numa cidade que renasce pelas brumas bélicas de um novo
dia, dando à França um papel protagonista na História Ocidental. Translúcida, a
bandeira tremula heroicamente, transparecendo a aurora de um novo dia para os
franceses.
Acima, Grécia e as Ruínas de Missolonghi. Um decote ousado revela seios
belos. Esta figura feminina é como uma Iemanjá, de braços abertos, acolhendo
navegadores e barqueiros, oferecendo as dádivas do Mar, numa mãe generosa,
sempre nutrindo seus filhos, como na logomarca dos produtos Nestlé: uma mãe
pássaro alimentando os filhotes no ninho, como na estratégia constante do sabão
Omo, estratégia que evoca a figura da Super Mãe, que sempre faz de tudo pelos
filhos, como no filme Esqueceram de Mim,
no qual uma mãe está disposta a vender a alma ao Diabo para pegar um avião e
ver se o filho está bem. Delacroix traz roupas fluidias, como toalhas dentro
d’água, em tecidos leves como o ar, evocando um agradável dia de Primavera, com
uma brisa que acolhe e acalenta, na temperatura ideal que permeia as cidades
espirituais, pois lá os espíritos não mais estão ligados aos corpos carnais, os
quais são sensíveis ao frio e ao calor. A mulher pisa sobre escombros, e
debaixo destes há um homem morto, como uma Vênus seduzindo Marte, pondo fim a
uma guerra. É Jesus no Santo Sepulcro, guardado pela Virgem Maria e por Maria
Madalena, e, dias depois, o milagre da Ressurreição, quando o Pensamento
triunfa sobre a Carne, no modo como todo artista deixa no Mundo um legado de
pensamento, de ideias, de conceitos, assim como foi a divulgação dos
pensamentos de Jesus, pois a força de Sua passagem pela Terra reside no pensamento
que o Cristo espraiou, rechaçando a obsessão pela matéria, pelo material, pelo
dinheiro, pelo mundano. Os escombros anunciam o fim de uma sanguinolenta
guerra, e esta Vênus está triunfante, restabelecendo a Paz, no seu vestido
claro, clamando por uma trégua. O homem soterrado dorme tranquilamente, como um
bebê ninado pela mãe, no fato de que é só no Amor que existe Vida, que existe
Liberdade, nos conceitos da Revolução Francesa, segundo os quais todos somos
iguais, filhos do mesmo Pai. Apesar desta mulher estar iluminada, é um quadro
sombrio, com as trevas de uma guerra horrível, na qual muitas e muitas vidas
foram abreviadas, como num campo de concentração, na total falta de valorização
da Vida Humana, no modo como a Vida tem que ser valorizada, e não descartada
como se fosse lixo. Ao fundo no quadro, um negro com uma grande lança, que é,
inevitavelmente, a Razão, a Racionalidade, na estratégia fria de guerra,
buscando matar o máximo de inimigos, como numa Guerra das Malvinas, na qual
vidas de ambos os lados foram ceifadas, tendo em Buenos Aires a famosa
flor metálica, feita de destroços de aviões que lutaram na guerra, e Thatcher
era exatamente assim, uma flor metálica andrógina: tinha a brandura feminina de
uma flor; tinha uma personalidade pétrea, forte, impenetrável como uma armadura,
dura ao ponto de querer declarar uma guerra, e não há beleza na Guerra. O negro
entra em harmonia cromática com o fundo negro, como na sequência inicial de O Senhor dos Anéis, mostrando uma
batalha terrível, com o céu diurno tomado por trevas impenetráveis, num dia
feio, horroroso. Temos aqui os destroços de um combate, e a figura feminina
aparece ao final, clamando por mais Amor entre irmãos. A mulher abre os braços
generosamente, como uma anfitriã generosa em uma festa bonita, na qual flores
desabrocham em perfume, no modo como a Festa da Uva de Caxias do Sul não
aconteceu durante a II Guerra Mundial – não havia clima para festejar, mas só
notícias sangrentas do conflito global. O homem morto é um feto em gestação,
repousando profundamente, e sua mão corpulenta revela força, apesar de estar
abatido no campo de batalha, no lar que acolhe aqueles que caem na batalha, pois,
como diz o slogan do canal Sportv: “Somos todos campeões”. A mulher é a estrela
matutina, anunciando um novo dia. E a razão do Sol lançará luz sobre os
estragos e óbitos, jogando uma luz realista sobre o horror. A mulher olha para
cima, como se estivesse rezando por Paz, por um fim à Dor.
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