quarta-feira, 13 de junho de 2018

Delícia de Delacroix



No Ensino Médio, em um livro de História, fascinou-me a obra A Liberdade Guiando o Povo, de Eugène Delacroix, no afã da Revolução Francesa em libertar o povo das garras monárquicas, uma revolução que, muito tempo depois, inspirou a criação da República Brasileira; uma revolução que definiu os moldes democráticos que perduram até hoje e, muito provavelmente, perdurarão por muito mais, num paradigma político fortíssimo – existe forma de governo mais digna e racional do que a Democracia? Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Barca de Dante. Delacroix faz uma construção fabulosa de nus, com cada músculo definido, num jogo de luz e sombra, num verdadeiro herdeiro de Leonardo da Vinci, o precursor da Arte Europeia Acadêmica. É um quadro de instabilidade, de escuridão, de caos, de trevas. O barco instável é a Vida, inevitavelmente inconstante, numa existência errática, torta, conflituosa. Ao fundo, uma cidade em chamas, em pleno processo de destruição, como um cadáver apodrecendo, como no terceiro tomo de O Jardim das Delícias: caos e destruição, na completa falência da Vida em Sociedade, no retorno à desorganização da Natureza, uma selva onde as Leis dos Homens nada mais significam. A cidade arde em chamas como o Inferno de Dante, numa dimensão caótica, onde só o que resta é rezar para se sair dali. É uma armadilha quase inescapável, da qual poucos se desvinculam, com almas sofredoras se arrastando infindavelmente, sempre sofrendo com fome, sede, frio ou calor. É uma visão pessimista, sem ilusões em relação ao Ser Humano, como em Tolkien, o qual tem uma visão pessimista do Homem, colocando este como fraco demais para resistir às tentações e ambições humanas: Tudo o que um homem poderoso quer é ter mais poder. As águas instáveis ameaçam a barca, numa vida tão frágil, tão submetida a solavancos violentos que trazem a tortuosidade de colunas barrocas, em águas tão impiedosas, tão desprovidas de acolhimento ou contentamento. É como a soberba cena do naufrágio de Titanic, onde a Vida em Sociedade falha enormemente, condenando aqueles seres humanos à Morte, ao fim de tudo, nas profundas entranhas do Oceano, como quando, no fim do filme, uma preciosíssima joia é intencionalmente jogada no Mar, rechaçando as ambições humanas, que só querem riqueza mundana, só ouro, só matéria, ignorando que há uma metáfora nas pedras preciosas, as quais representam o Infinito e o Eterno, mas pedras que são nada mais do que rochas, pedras, no modo como a Matéria (e tudo relacionado a esta) está condenada à danação e à deterioração, e nada de material é eterno, nem mesmo o mais caro colar de pedras caras – nada é maior do que a Eternidade, a qual revela um poder imenso que nos rege. Os dois homens vestidos na barca são o privilégio social, e suas vestes entram em contraste com os corpos nus que se debatem n’água, como se fosse um liquidificador, sem qualquer noção de Paz ou estabilidade. A incidência de luz sobre alguns corpos é soberba, numa técnica digna de mestre. Um homem seminu está também dentro do barco e segura um remo, que, sendo retilíneo, é o poder da Razão, da Lógica, do Raciocínio, e busca impor alguma ordem a um cenário tão caótico e louco, numa guerra entre Razão e Loucura, em que a Vida em Sociedade busca estabelecer limites e noções civilizatórias, buscando em Jesus Cristo as noções de Bem, de algo construtivo e positivo, no maior pensador da História. Num quadro tão desorganizado, tudo o que resta ao indivíduo é rezar, como numa pobre alma desnorteada e perdida no Umbral, sem consolo algum, tendo que rezar e ter a esperança de que será resgatado de tão terrível e dura prisão, no modo como o Espiritismo diz: Se você quer saber que o encarnado gosta de estar encarnado, pergunte a um prisioneiro se ele gosta da prisão, como no filme em que Clint Eastwood faz um prisioneiro de Alcatraz, obcecando-se em fugir a qualquer custo, numa ironia, pois o espectador fica torcendo para que o bandido se dê bem. Os corpos que estão jogados n’água querem desesperadamente entrar na barca, a qual é um espaço para poucos, no modo como os privilégios sociais são para poucos; no modo como o ouro é para poucos, e, a pessoa rica, considerada feliz na Terra, fica reduzida a um quadro de infelicidade existencial enorme. No canto inferior direito, dois homens lutam e se debatem, querendo um montar sobre o outro; um afogar o outro. É o egoísmo humano, no qual o indivíduo mal se importa com outrem; com as vicissitudes que outrem enfrentam. É um quadro trágico da Vida Humana, no qual cada um pensa só em si, no modo de como amar, sem pieguice ou sentimentalismo, é se colocar nos sapatos do outro, produzindo compreensão. É a patetice das vaidades humanas, sempre ridículas, sempre cruéis.


Acima, A Liberdade Guiando o Povo. Apesar de exausta, a Liberdade segue guiando o Povo Francês, num último empreendimento de esforço rumo à redenção. Os lindos seios são a Mãe Provedora, a Mãe Pátria, amamentando seus filhos nos ares de liberdade e renovação que significaram a Revolução Francesa. É uma turba raivosa, indignada com o preço do pão, num povo exausto dos luxos de uma aristocracia, sendo esta uma camada social que pouco se importava com as bases da pirâmide social, num rei enfraquecido, que se afastou do seu próprio povo, praticamente depondo a si mesmo. E por que a Liberdade aqui é uma figura feminina, opondo-se à agressividade masculina dos revoltosos? É uma espécie de musa, de inspiração, na beleza da mulher comum, da mulher não pertencente à Aristocracia, no modo como a bela Maria Antonieta foi guilhotinada, sepultando as noções que vinculavam poder a beleza. O cabo rijo da bandeira francesa resiste firmemente, empunhando uma bandeira intacta, a qual não mostra qualquer sinal de tempo ou uso, numa simplicidade gráfica que se opunha aos excessos gráficos aristocráticos franceses. E o vermelho da bandeira é o sangue derramado na guerra, no sangue comum aos seres humanos, num momento em que o conceito de “sangue azul” perdia total força, pelo menos na França, ao contrário da Inglaterra, que cultiva até hoje suas raízes monárquicas, tendo aqui duas nações tão diferentes uma da outra; tão próximas geograficamente. Homens aqui pegam em armas, furiosamente, não mais aceitando curvar-se perante reis que pouco amavam o próprio povo, num ponto de ruptura, sendo esta muito grande, ao ponto de projetar no pescoço de Maria Antonieta todos os males absolutistas, males estes aqui combatidos e rechaçados, como no assassinato da família real russa, os Romanov, tendo aqui outra revolução, de outra época e contexto, mas uma revolução que, provavelmente, encontrou na Francesa alguma luz ou inspiração. Nunca ouvimos falar de que todo poder emana do povo e em nome deste deve ser exercido? Um ponto interessante: ao lado da musa da Revolução, um menino, de tenra idade, com uma pistola em cada mão, atirando arruaceiramente para cima, e é um filho da revolução, numa França que renascia, voltando a ser criança de novo, renascendo, com todo um futuro pela frente, amadrinhado pela Liberdade que guia o povo. A Liberdade aqui protege o menino, e é também a visão de Delacroix sobre o Ser Humano: a Humanidade tem tanto ainda por vir, a Humanidade tem tanto ainda para crescer, mas ainda não cresceu, e, muitas vezes, é um irresponsável infante pegando em armas, as quais, segundo Tao, são coisas terríveis, e nenhum homem de Paz poderia pegar em armas. Uma figura humana se curva aos pés da Liberdade, pedindo piedade – seria um aristocrata arrependido? A Revolução Francesa foi um ponto de inversões enormes, em que a pirâmide foi virada de pernas para o ar, estarrecendo o Mundo Ocidental. Mas a Liberdade está ocupada demais em liderar o Povo Francês. É um quadro muito belicista, com armas em punho e ferocidade, e assim é qualquer revolução – um momento de rompimento violento, agressivo, numa aristocracia arrogante que se achava tão superior ao proletariado, como o czar deposto, que pouco se importava com os rigorosos invernos russos. Aos pés deste quadro, cadáveres caídos, aristocratas violentamente assassinados, sequer com o direito a um sepulcro decente, representando a ordem social falida e obsoleta. São os soldados do rei, incubidos de reprimir ao máximo o movimento popular – o povo fora subestimando. Atrás da Liberdade, um céu que se abre iluminado, limpo e majestoso, na beleza racional do pensamento republicano, reduzindo a monarquia aqui a um ser malévolo, patético, animalesco e desprezível. É um quadro viril, e a Liberdade aqui é uma guerreira, uma amazona, num momento em que a Feminilidade de uma rainha pouco importava. Bem ao fundo, prédios de uma Paris tomada pelos rebeldes, numa cidade que renasce pelas brumas bélicas de um novo dia, dando à França um papel protagonista na História Ocidental. Translúcida, a bandeira tremula heroicamente, transparecendo a aurora de um novo dia para os franceses.


Acima, Grécia e as Ruínas de Missolonghi. Um decote ousado revela seios belos. Esta figura feminina é como uma Iemanjá, de braços abertos, acolhendo navegadores e barqueiros, oferecendo as dádivas do Mar, numa mãe generosa, sempre nutrindo seus filhos, como na logomarca dos produtos Nestlé: uma mãe pássaro alimentando os filhotes no ninho, como na estratégia constante do sabão Omo, estratégia que evoca a figura da Super Mãe, que sempre faz de tudo pelos filhos, como no filme Esqueceram de Mim, no qual uma mãe está disposta a vender a alma ao Diabo para pegar um avião e ver se o filho está bem. Delacroix traz roupas fluidias, como toalhas dentro d’água, em tecidos leves como o ar, evocando um agradável dia de Primavera, com uma brisa que acolhe e acalenta, na temperatura ideal que permeia as cidades espirituais, pois lá os espíritos não mais estão ligados aos corpos carnais, os quais são sensíveis ao frio e ao calor. A mulher pisa sobre escombros, e debaixo destes há um homem morto, como uma Vênus seduzindo Marte, pondo fim a uma guerra. É Jesus no Santo Sepulcro, guardado pela Virgem Maria e por Maria Madalena, e, dias depois, o milagre da Ressurreição, quando o Pensamento triunfa sobre a Carne, no modo como todo artista deixa no Mundo um legado de pensamento, de ideias, de conceitos, assim como foi a divulgação dos pensamentos de Jesus, pois a força de Sua passagem pela Terra reside no pensamento que o Cristo espraiou, rechaçando a obsessão pela matéria, pelo material, pelo dinheiro, pelo mundano. Os escombros anunciam o fim de uma sanguinolenta guerra, e esta Vênus está triunfante, restabelecendo a Paz, no seu vestido claro, clamando por uma trégua. O homem soterrado dorme tranquilamente, como um bebê ninado pela mãe, no fato de que é só no Amor que existe Vida, que existe Liberdade, nos conceitos da Revolução Francesa, segundo os quais todos somos iguais, filhos do mesmo Pai. Apesar desta mulher estar iluminada, é um quadro sombrio, com as trevas de uma guerra horrível, na qual muitas e muitas vidas foram abreviadas, como num campo de concentração, na total falta de valorização da Vida Humana, no modo como a Vida tem que ser valorizada, e não descartada como se fosse lixo. Ao fundo no quadro, um negro com uma grande lança, que é, inevitavelmente, a Razão, a Racionalidade, na estratégia fria de guerra, buscando matar o máximo de inimigos, como numa Guerra das Malvinas, na qual vidas de ambos os lados foram ceifadas, tendo em Buenos Aires a famosa flor metálica, feita de destroços de aviões que lutaram na guerra, e Thatcher era exatamente assim, uma flor metálica andrógina: tinha a brandura feminina de uma flor; tinha uma personalidade pétrea, forte, impenetrável como uma armadura, dura ao ponto de querer declarar uma guerra, e não há beleza na Guerra. O negro entra em harmonia cromática com o fundo negro, como na sequência inicial de O Senhor dos Anéis, mostrando uma batalha terrível, com o céu diurno tomado por trevas impenetráveis, num dia feio, horroroso. Temos aqui os destroços de um combate, e a figura feminina aparece ao final, clamando por mais Amor entre irmãos. A mulher abre os braços generosamente, como uma anfitriã generosa em uma festa bonita, na qual flores desabrocham em perfume, no modo como a Festa da Uva de Caxias do Sul não aconteceu durante a II Guerra Mundial – não havia clima para festejar, mas só notícias sangrentas do conflito global. O homem morto é um feto em gestação, repousando profundamente, e sua mão corpulenta revela força, apesar de estar abatido no campo de batalha, no lar que acolhe aqueles que caem na batalha, pois, como diz o slogan do canal Sportv: “Somos todos campeões”. A mulher é a estrela matutina, anunciando um novo dia. E a razão do Sol lançará luz sobre os estragos e óbitos, jogando uma luz realista sobre o horror. A mulher olha para cima, como se estivesse rezando por Paz, por um fim à Dor.

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