Os textos e análises
semióticas a seguir são inteiramente meus.
Acima, Cristo no Monte das Oliveiras. O cabelo e a barba de Jesus têm uma
cor atípica, contrastando com o resto do quadro, que é sombrio e cinzento.
Jesus está pensativo, um tanto triste, como se estivesse prevendo sua morte na
Cruz. É o destino final do Messias, num óbito que marcará para sempre o curso
da História. Ao fundo no quadro, vemos formas vultuosas, misteriosas, e não
sabemos ao certo o que são. Seriam apóstolos, procurando pelo líder? Seriam
soldados romanos em missão de prisão e execução de Jesus? São vultos
agourentos, escuros, como uma nuvem negra no caminho de Jesus, homem cujas
intenções primordiais eram das melhores, sendo um homem extremamente mal compreendido;
um homem muito à frente do próprio tempo; um homem tão extraordinário que, até
hoje, permanece vanguardista, com uma Humanidade que busca, até hoje,
compreendê-lo completamente. São espíritos que foram enviados à Terra em uma
missão importante e complexa – ajudar a promover o apuro moral do Ser Humano,
uma missão árdua, que até hoje se revela muito complicada e difícil. Gauguin
busca compreender este mensageiro, num Cristo que trouxe conceitos que geraram
a Doutrina Espírita. No quadro, parece ser uma noite de luar, e o monte em
questão está banhado por essa luz, como se quisesse iluminar o caminho de
Jesus, o qual, aqui, está solitário, abandonado, nada podendo fazer para se
desviar da Cruz. As oliveiras se contorcem, como se quisessem aprisionar a
mente de Jesus, no modo como o Império Romano, no início, perseguiu e executou
brutalmente os cristãos, numa religião que, tempos depois, foi oficialmente
adotada pelo César – a Verdade é a filha do Tempo, um belo ditado latino que
ouvi. Um tronco de oliveira cruza o quadro, dividindo-o entre antes e depois: a
História da Humanidade se divide entre antes e depois de Cristo, num marco, uma
referência, uma cisão entre um momento sobrenatural da História, na riqueza dos
pensamentos propagados pelos discípulos do Filho de Deus. Os braços desse Jesus
são pálidos e frágeis, revelando vulnerabilidade, num homem que foi inofensivo
e, ainda assim, rigorosamente condenado, acusado de ser o representante do
Demônio, um representante que Jesus, definitivamente, não foi – inclusive, já
falei sobre Jesus neste mesmo blog, num assunto inesgotável, digno da cabeça de
grandes homens. Os vultos negros são como lobos famintos, perseguindo Jesus e,
posteriormente, perseguindo seus apóstolos, na plena estupidez do Ser Humano em
perseguir aquilo que não é compreendido. As oliveiras parecem se contorcer em
dor, como se sentissem o que Jesus sentiria na Cruz, na morte cruel que teve,
como um protestante acusado de ser herege e ser queimado vivo, numa morte tão
lenta, do modo como só a crueldade dos caprichos humanos pode fazer, como numa
execução de um Tiradentes, com o cadáver esquartejado e exposto em praça
pública, no modo como Tolkien tem uma visão sombria do Ser Humano, observando
as fraquezas deste. Aqui, podemos os grilos neste bosque, podemos sentir o
perfume das azeitonas e podemos também ouvir um choro discreto de Jesus, que
disse: “Pai, por que me abandonastes?” As roupas de Jesus são como lama
escorrendo, num Jesus totalmente esfolado e sujo, sendo humilhado ao ponto de
ter que carregar a própria Cruz – a crueldade humana não tem limites. As
entranhas do bosque abraçam Jesus, como se quisessem o proteger, mas o destino está
selado, e Jesus sabe disso, rezando para que, finalmente, desencarne,
abandonando a Cruz para sempre, deixando o medíocre Mundo Material para trás,
abraçando uma nova vida em outra dimensão, num plano mais elevado, mais digno,
mais ideal, mais aperfeiçoado.
Acima, Jacó e o Anjo. O quadro quase inteiro é cruzado por uma estrada,
uma via: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, no modo como “Tao” quer dizer
“Caminho”, no modo como fui criado ouvindo Elis Regina dentro do carro com meus
pais e irmã, na estrada, com destino a Gramado ou à praia. É o trajeto
existencial, o rumo da pessoa. Mulheres devotas e discretas, com os cabelos
completamente cobertos, parecem orar na cena, como no claustro de um convento,
onde há trabalho ordinário e prece, numa pessoa que, depois de uma encarnação
mundana e fútil, decide ter outra existência, só que uma existência mais centrada,
mais focada no essencial, que é Tao, ou seja, Deus. É a opção da pessoa, a
escolha, o caminho, numa pessoa que, finalmente, bateu o martelo e decidiu o
que quer fazer com os dias que lhe restam no Mundo, pois a vida é uma tarde
brumosa, e todos temos que decidir o que fazer destas brumas, como a Grande
Deusa, ao final de As Brumas de Avalon,
torna-se a Virgem Maria em um convento, do modo que, no início da Era Cristã,
as deusas pagãs, como Vênus e Ísis, foram tranquilamente substituídas por Nossa
Senhora, o que funciona de forma poderosamente metafórica para o Ser Humano, ao
modo deste, para entender que há uma Mãe que nos rege sempre, num ventre
imaculado onde não há o mínimo pingo de mundanismo ou materialismo, na busca
por virtude, por classe, por distinção, como um fino vinho com Indicação de
Procedência, com um Norte, uma noção. E essas mulheres, aqui, personificam este
recato, ficando comedidas, comportadas. Domina a cena um chão bem vermelho, na
cor da vida que pulsa no interior dos seres, no sangue desperdiçado que
escorreu de Jesus na Crucificação. É como numa cultura latina, na qual as cores
vibrantes tomam conta, também no modo gastronômico, com temperos “quentes”,
vibrantes, vivos, pulsantes, como nos anos 60 em Londres, uma cidade cinzenta e
opaca que começou a ver nas ruas jovens vestindo cores vibrantes e chamativas,
como certa vez vi uma mulher muito linda, de vermelho, e a mulher fazia ritos
pagãos em noites de Lua Cheia, no modo como os militares no Brasil perseguiam o
Comunismo, e o pacato cidadão sequer podia caminhar na rua com um livro de capa
vermelha sem ser abordado por militares, como a então primeira dama Marisa
Letícia usou vermelho na primeira posse de Lula. Aqui, o anjo de asas altivas
acolhe Jacó, numa entrega, num alguém tão sedento por encontrar um Lar, um
alento, um abrigo, numa pessoa que sofreu bastante com uma vida solitária, uma
vida sem perspectivas. O anjo abraça Jacó, num ato de amor fraterno, como nas
pessoas de boa vontade nos Centros Espíritas, dando conselhos existenciais a
pessoas que estão no fundo do poço, como me disse certa vez uma médium, a qual
alegou que eu estava obcecado com algo, e as obsessões não fazem bem ao Ser
Humano, pois as obsessões são cegueiras d’alma. Na cena, vemos também um animal
quadrúpede, talvez um cervo, que é a fragilidade, a candura e a inocência, num
cervo que é largado em um mundo tão malicioso, tão duro, tão difícil, mundo no
qual o desenvolvimento da agressividade é capital, num indivíduo que tem que
tomar cuidado par anão ficar muito embrutecido, para o indivíduo ser como avós
“babões” em torno do neto! Aqui, Jacó está farto disso tudo, e está num momento
de recolhimento, de humilhação, e isto é positivo, pois se Fulano, antes de
fazer um trabalho, achar que este será facílimo de ser executado, Fulano
acabará considerando tal trabalho extremamente difícil – é a questão do
Realismo. Quem se curva, reina. O áspero é parte de qualquer labor. O cervo
desta cena está sendo abatido, e seu sangue se espalha pelo quadro, no modo
como tenho uma lembrança de infância, na qual vi uma ovelha ser abatida, numa
cena marcante e impactante, num executor preocupado em fazer o bicho sofrer o
mínimo possível. Mas é a Cadeia Alimentar do Mundo Físico, e pouco lembramos do
sofrimento de um bicho quando comemos carne ou vestimos couro, na cena de Dança com Lobos, que mostra a caça
predatória de búfalos, no modo como li em um livro recentemente: não é de hoje
que o Ser Humano agride o Meio Ambiente – esta agressão é crônica na História
da Humanidade. É o Mundo dos Homens. Fazer o quê? Tenho parentes que são
veganos, mas reconheço que sou chegado numa carne! Jacó está no meio de um
trajeto, tomado por uma dúvida cinzenta: Será que conseguirei? Será que
vencerei? O que me espera? Então, a fé em Nossa Senhora se
revela forte, a fé em um Lar.
Acima, Mulher Meditando. A meditação é o que nos faz humanos, colocando a
cabeça para funcionar. A mulher tem traços exóticos, talvez indígenas, ou numa
mistura com uma raça africana. É o fascínio de Gauguin pelo exótico, num
artista cosmopolita, ao contrário de Paris, a qual, ouvi dizer, é uma cidade
muito provinciana, apesar de ser uma urbe com uma aparência tão universal e
sofisticada – quem sabe, um dia, visito Paris! A mulher está sem o chapéu, sem
a proteção, deixando-se banhar pelo Sol da existência, deixando-se banhar pelo
calor do astro, da estrela central da trama, alimentando um sistema solar
inteiro, como um patriarca, pois, já sei, a Humanidade é patriarcal por
excelência, de forma universal, no Sexo Masculino como o centro da Vida Social.
A mulher está um pouco triste e abatida, talvez por levar uma vida tão pobre e
difícil. O chão de terra evoca a simplicidade, a entranha da Terra que alimenta
vegetais e, de tabela, animais. Este chão cor de tijolo é limpo e simples, numa
base muito clara de referência, evocando simplicidade, proveniência. O chapéu é
adornado por um lenço rubro, a cor do fogo, no fogo que brilha intensamente na
mente e no coração dos grandes talentos, das pessoas que fazem Arte, em
inegável talento, reconhecido antes ou depois do óbito do bom artista. Ao lado
da mulher vemos uma forma que parece ser um peixe fumegante, como se estivesse
sendo cozido, servindo de refeição à mulher. O peixe é a Vida que começou no
Oceano; o peixe é um olho de egípcio antigo, fluindo livres por percepções
estéticas, as quais o Antigo Egito esbanjou amplamente, fascinando até hoje
quem gosta do mínimo de Arte; o peixe é a danação dos animais, que servem de
alimento a outros animais e ao Ser Humano; o peixe é a Morte por um objetivo,
que é alimentar, do modo como não se pode condenar a Cadeia Alimentar só porque
vidas são sacrificadas em prol de outras. Ao lado do peixe, vemos duas formas
indistintas, talvez pequenos pratos, ou frutas, não se sabe – é um Gauguin um
tanto hermético e dúbio, misterioso, nos mistérios altamente enigmáticos que
brotam de um artista, o qual fica livre de quaisquer definições, pois há algo
mais monótono do que a obviedade? A Arte é para ser um mistério, alimentando
inúmeras interpretações. Ao fundo do quadro, uma varanda, revelando-nos de que
a mulher se encontra em uma área interna para o banho de Sol, sendo que este
significa o esclarecimento, a beleza da pele bronzeada, a beleza da mente
pensante, que se debruça sobre o Universo e a Existência. Na varanda, um cão
negro, que é o mistério de algo que nos espera na próxima esquina da Vida, como
um cão de guarda, cuja função é guardar algo, defendendo este algo ou alguém de
forma feroz e agressiva, espantando bandidos importunantes. O cão é o companheirismo,
num artista que se faz amigo de sua própria arte, como já disse Jorge Amado,
que declarou que seus próprios personagens são seus melhores amigos, no modo
como Leonardo da Vinci jamais conseguiu se desfazer da Monalisa – é uma questão
de Amor mesmo, o qual é o nervo da Vida e de todas as dimensões do Universo.
Mais ao fundo no quadro, um homem sentado num burrico, e o montador é o
controle e a disciplina, no modo como um atelier não é um espaço de diversão,
mas de trabalho, num trabalho como qualquer outro. O artista monta o animal e
controla o próprio Id, colocando este, de forma catártica, em sua obra. O
burrico e o cão são a fidelidade, o companheirismo, num Gauguin que se sentia
acompanhado de seu próprio trabalho. Ao fundo da cena vemos um jardim bonito,
um Éden, como se o homem e a mulher da cena fossem Adão e Eva num lugar
paradisíaco. O laço vermelho no chapéu é a serpente do pecado, seduzindo a
Humanidade, zombando desta. E, ainda na varanda, vemos uma parede perfurada,
respirando e nos permitindo ver através dela, na sedução da transparência, que
dá ao Ser Humano a oportunidade da vidência, da observação do Mundo e da Vida.
É a Filosofia. A mulher está numa cena informal e cotidiana, sem muito glamour,
nem muitas euforias, no dia a dia de um atelier.
Acima, Autorretrato com Halo e Serpente. O autorretrato é um “espelho” no
qual um artista se enxerga, num questionamento existencial: Quem sou? Vemos um
nariz grande, como de uma Barbra Streisand, num nariz que dá muita
personalidade a um rosto, numa espécie de “feiura bonita”. A serpente está
muito presente, como veias sanguíneas, com sangue azul, só que um sangue
psíquico, de traz nobreza e talento, no esforço de um artista para ser
respeitado como tal. A serpente tem muitas voltas, como um sinuoso rio,
encontrando caminho por vales e montanhas, no talento da Vida em sempre
encontrar um modo de prosperar, na capacidade humana de adaptação, adaptando-se
aos mais incertos terrenos, como já ouvi numa bela canção: o Amor sempre
encontra um caminho, e cada um tem que encontrar o seu próprio, no sentido de
que o autoencontro tem que ser aprendido de forma autodidata, pois, apesar de
haver escolas de Arte, o aluno tem que encontrar a sua própria identidade,
buscando marcar época com suas obras, seus esforços. É um quadro de cores
vivas, com amarelo e vermelho, cores festivas, como no espírito parisiense de
se sentar e tomar um café, apreciando o movimento das ruas, curtindo os simples
aspectos da Vida, a qual se desdobra de forma imprevisível e, ainda assim, sem
graves surpresas: sabemos que algo vai ocorrer, mas não sabemos exatamente
como. Aqui, Gauguin tem um elegante bigode, e uma barba feita impecavelmente,
aprumando-se para aparecer em seu próprio trabalho, como se estivesse se
arrumando para alguma festa ou para um encontro com alguém especial. É um rosto
belo e jovem, e sua pele é alva, levemente rosada. Seu negro cabelo é longo,
tornado-se um ponto isolado de negror no quadro, na profundidade de um céu
noturno, na sensibilidade de uma pessoa que contempla as estrelas à noite.
Gauguin olha para a serpente, e está hipnotizado por seu desenvolvimento
tortuoso, sua malícia, sua forma aquosa, sempre se insinuando, num animal
elegante e minimalista, sem patas nem orelhas, mas numa forma sucinta. A serpente
é o pulso da Vida, sempre faminta, sempre buscando por comida, numa das
necessidades mais básicas da Vida – buscar alimento. Gauguin segura a serpente
com uma das mãos, e deixa ela se desenrolar. Gauguin está sentindo prazer em
ter o bicho em seus dedos, estimando a serpente como um adorável pet. É uma
relação de carinho, de estima, de amor, num dono empenhado em alimentar e
abrigar um animal, como uma pessoa que conheço, que adora bichos. Ao lado de
Gauguin, duas maçãs no pé, dependuradas por um fino e frágil galho, que ameaça
se romper a qualquer momento, na fragilidade do Ser Humano, um ser cujos sonhos
podem se despedaçar tão facilmente, na tendência humana à frustração. Uma das
maçãs está madura; a outra, ainda verde. É a maturidade e a infância convivendo,
do modo como uma pessoa, apesar de ter que crescer e amadurecer, tem que sempre
conservar, dentro de si, um pouco da inocência infantil, do contrário, a pessoa
corre o risco de ficar amarga, sendo necessário o mantimento do senso de humor
e da ludicidade. Agora, falo de um ponto engraçado do quadro: Gauguin está com
uma aureola sobre a cabeça, endeusando a si mesmo, transformando-se em santo. E por quê? Talvez
a aureola se contraponha à malícia da serpente e à tentação da maçã do Éden. A
aureola é a pureza, a boa intenção, na vontade de uma pessoa de fazer o Bem,
amando o Mundo ao seu redor. Qualquer artista é assim, cheio de boas intenções,
sempre correndo o risco de ser mal compreendido. Gauguin está dividido: olha
hipnotizado para a serpente, mas carrega sobre a cabeça uma coroa dourada,
tentando aqui conciliar opostos, buscando unidade, buscando ser íntegro. A
aureola é como um anel de Tolkien, sempre seduzindo o Ser Humano, buscando
brechas nas fraquezas deste. É o enigma de Tao, cuja sensualidade reside
exatamente no interior oco, rechaçando a Matéria e abraçando o Pensamento, na
busca pelo Metafísico.
Acima, A Semente de Areoi. Gauguin nos transporta a um cenário exótico e
agradável. Estamos talvez no Havaí ou na Polinésia, com montanhas enormes que
parecem ser vulcões, prontos para entrar em erupção a mostrar toda a força da
Natureza. Palmeiras douradas tremulam à amena brisa, numa temperatura agradável
o suficiente para a modelo ficar completamente nua, no modo como a Nudez não é
um problema de pudor para muitas culturas, como indígenas brasileiros. A mulher
tem a pele marrom, como um delicioso açúcar mascavo, e seus traços faciais
revelam ser de uma etnia que nada tema ver com o branco europeu. Seus seios
estão no auge da beleza, e seu olhar é plácido, confortável na própria nudez. É
o desejo de se mudar para uma terra diferente, exótica, querendo levar uma vida
simples em meio a tantas maravilhas naturais, como um amigo meu, que certa vez
se mudou para Florianópolis porque desejava ser “ratão de praia”, só que,
depois do Verão, veio o Inverno, e a Vida seguiu sendo séria e demandosa.
Portanto, não existe fugir, pois, disse-me alguém certa vez, a Vida é dura em
qualquer lugar, e no fundo Gauguin sabe disso. Mas a candura da mulher nos faz
esquecer da dureza inevitável, e somos convidados a desfrutar, temporariamente,
deste cenário tão doce. Atrás da mulher há muitas flores rosadas, numa eterna
Primavera, num frescor infindável, de uma terra que nunca envelhece ou morre,
mas uma terra de beleza indescritível, cujas cópias existem pelo Mundo
Material, sendo apenas cópias, como adoçante é uma cópia de açúcar. Este quadro
é uma janela, a qual será fechada assim que o espectador parar de olhar para o
quadro. Três flores brancas adornam o cabelo da mulher, que é uma espécie de
Iracema, na idealização da mulher, com os cabelos de um preto profundo e hálito
de baunilha, do modo como as idealizações são universais. Podemos ouvir
tambores tribais em um dia de festa na tribo exótica, e ouvimos o vaivém de ondas
na cândida orla, numa água deliciosa, trazendo sensação de Paz. Na porção
inferior do quadro, uma travessa com frutas coloridas, maduras, doces, como uma
manga suculenta ou um abacate perfumado, no continuum de sensualidade entre a
fruta, o corpo da mulher e o cenário ao redor, com tudo respirando junto.
Gauguin quis sair de uma Paris fria, chuvosa e cinzenta para entrar em um lugar
tão diferente, no poder da Arte em transportar as pessoas, como num romance
escrito ou num filme. Os pés da mulher repousam sobre um tapete de absoluto
vermelho, na cor da lava, abocanhando tudo e todos em seu caminho. A mulher
repousa sobre uma toalha de gravuras tribais, denotando ser uma mulher de alta
posição na tribo, na comunidade. E a mulher tem na mão uma forma misteriosa,
que parece uma maçã azul, ou um isqueiro de chama azul, talvez sendo a “semente”
evocada no título da obra. A semente é o poder da Vida, de plantas germinando, de
animais eclodindo de ovos e de bebês saindo de barrigas. É a celebração da
Vida, uma celebração universal, que ocorre em qualquer agrupamento humano. A
mulher aqui assume um status de sacerdotisa, como se fosse a guardiã da Vida,
um feiticeira de poderes mágicos, guiando seu povo em meio ao senso comum de
tradição oral, transmitida de pai para filho durante milênios. Esta mulher é
uma espécie de Ísis, no arquétipo feminino de fertilidade e beleza, como num
útero imaculado, na ancestral tentativa humana de compreender a Psique.
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