quarta-feira, 20 de junho de 2018

Gaguejando por Gauguin



Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, Cristo no Monte das Oliveiras. O cabelo e a barba de Jesus têm uma cor atípica, contrastando com o resto do quadro, que é sombrio e cinzento. Jesus está pensativo, um tanto triste, como se estivesse prevendo sua morte na Cruz. É o destino final do Messias, num óbito que marcará para sempre o curso da História. Ao fundo no quadro, vemos formas vultuosas, misteriosas, e não sabemos ao certo o que são. Seriam apóstolos, procurando pelo líder? Seriam soldados romanos em missão de prisão e execução de Jesus? São vultos agourentos, escuros, como uma nuvem negra no caminho de Jesus, homem cujas intenções primordiais eram das melhores, sendo um homem extremamente mal compreendido; um homem muito à frente do próprio tempo; um homem tão extraordinário que, até hoje, permanece vanguardista, com uma Humanidade que busca, até hoje, compreendê-lo completamente. São espíritos que foram enviados à Terra em uma missão importante e complexa – ajudar a promover o apuro moral do Ser Humano, uma missão árdua, que até hoje se revela muito complicada e difícil. Gauguin busca compreender este mensageiro, num Cristo que trouxe conceitos que geraram a Doutrina Espírita. No quadro, parece ser uma noite de luar, e o monte em questão está banhado por essa luz, como se quisesse iluminar o caminho de Jesus, o qual, aqui, está solitário, abandonado, nada podendo fazer para se desviar da Cruz. As oliveiras se contorcem, como se quisessem aprisionar a mente de Jesus, no modo como o Império Romano, no início, perseguiu e executou brutalmente os cristãos, numa religião que, tempos depois, foi oficialmente adotada pelo César – a Verdade é a filha do Tempo, um belo ditado latino que ouvi. Um tronco de oliveira cruza o quadro, dividindo-o entre antes e depois: a História da Humanidade se divide entre antes e depois de Cristo, num marco, uma referência, uma cisão entre um momento sobrenatural da História, na riqueza dos pensamentos propagados pelos discípulos do Filho de Deus. Os braços desse Jesus são pálidos e frágeis, revelando vulnerabilidade, num homem que foi inofensivo e, ainda assim, rigorosamente condenado, acusado de ser o representante do Demônio, um representante que Jesus, definitivamente, não foi – inclusive, já falei sobre Jesus neste mesmo blog, num assunto inesgotável, digno da cabeça de grandes homens. Os vultos negros são como lobos famintos, perseguindo Jesus e, posteriormente, perseguindo seus apóstolos, na plena estupidez do Ser Humano em perseguir aquilo que não é compreendido. As oliveiras parecem se contorcer em dor, como se sentissem o que Jesus sentiria na Cruz, na morte cruel que teve, como um protestante acusado de ser herege e ser queimado vivo, numa morte tão lenta, do modo como só a crueldade dos caprichos humanos pode fazer, como numa execução de um Tiradentes, com o cadáver esquartejado e exposto em praça pública, no modo como Tolkien tem uma visão sombria do Ser Humano, observando as fraquezas deste. Aqui, podemos os grilos neste bosque, podemos sentir o perfume das azeitonas e podemos também ouvir um choro discreto de Jesus, que disse: “Pai, por que me abandonastes?” As roupas de Jesus são como lama escorrendo, num Jesus totalmente esfolado e sujo, sendo humilhado ao ponto de ter que carregar a própria Cruz – a crueldade humana não tem limites. As entranhas do bosque abraçam Jesus, como se quisessem o proteger, mas o destino está selado, e Jesus sabe disso, rezando para que, finalmente, desencarne, abandonando a Cruz para sempre, deixando o medíocre Mundo Material para trás, abraçando uma nova vida em outra dimensão, num plano mais elevado, mais digno, mais ideal, mais aperfeiçoado.


Acima, Jacó e o Anjo. O quadro quase inteiro é cruzado por uma estrada, uma via: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, no modo como “Tao” quer dizer “Caminho”, no modo como fui criado ouvindo Elis Regina dentro do carro com meus pais e irmã, na estrada, com destino a Gramado ou à praia. É o trajeto existencial, o rumo da pessoa. Mulheres devotas e discretas, com os cabelos completamente cobertos, parecem orar na cena, como no claustro de um convento, onde há trabalho ordinário e prece, numa pessoa que, depois de uma encarnação mundana e fútil, decide ter outra existência, só que uma existência mais centrada, mais focada no essencial, que é Tao, ou seja, Deus. É a opção da pessoa, a escolha, o caminho, numa pessoa que, finalmente, bateu o martelo e decidiu o que quer fazer com os dias que lhe restam no Mundo, pois a vida é uma tarde brumosa, e todos temos que decidir o que fazer destas brumas, como a Grande Deusa, ao final de As Brumas de Avalon, torna-se a Virgem Maria em um convento, do modo que, no início da Era Cristã, as deusas pagãs, como Vênus e Ísis, foram tranquilamente substituídas por Nossa Senhora, o que funciona de forma poderosamente metafórica para o Ser Humano, ao modo deste, para entender que há uma Mãe que nos rege sempre, num ventre imaculado onde não há o mínimo pingo de mundanismo ou materialismo, na busca por virtude, por classe, por distinção, como um fino vinho com Indicação de Procedência, com um Norte, uma noção. E essas mulheres, aqui, personificam este recato, ficando comedidas, comportadas. Domina a cena um chão bem vermelho, na cor da vida que pulsa no interior dos seres, no sangue desperdiçado que escorreu de Jesus na Crucificação. É como numa cultura latina, na qual as cores vibrantes tomam conta, também no modo gastronômico, com temperos “quentes”, vibrantes, vivos, pulsantes, como nos anos 60 em Londres, uma cidade cinzenta e opaca que começou a ver nas ruas jovens vestindo cores vibrantes e chamativas, como certa vez vi uma mulher muito linda, de vermelho, e a mulher fazia ritos pagãos em noites de Lua Cheia, no modo como os militares no Brasil perseguiam o Comunismo, e o pacato cidadão sequer podia caminhar na rua com um livro de capa vermelha sem ser abordado por militares, como a então primeira dama Marisa Letícia usou vermelho na primeira posse de Lula. Aqui, o anjo de asas altivas acolhe Jacó, numa entrega, num alguém tão sedento por encontrar um Lar, um alento, um abrigo, numa pessoa que sofreu bastante com uma vida solitária, uma vida sem perspectivas. O anjo abraça Jacó, num ato de amor fraterno, como nas pessoas de boa vontade nos Centros Espíritas, dando conselhos existenciais a pessoas que estão no fundo do poço, como me disse certa vez uma médium, a qual alegou que eu estava obcecado com algo, e as obsessões não fazem bem ao Ser Humano, pois as obsessões são cegueiras d’alma. Na cena, vemos também um animal quadrúpede, talvez um cervo, que é a fragilidade, a candura e a inocência, num cervo que é largado em um mundo tão malicioso, tão duro, tão difícil, mundo no qual o desenvolvimento da agressividade é capital, num indivíduo que tem que tomar cuidado par anão ficar muito embrutecido, para o indivíduo ser como avós “babões” em torno do neto! Aqui, Jacó está farto disso tudo, e está num momento de recolhimento, de humilhação, e isto é positivo, pois se Fulano, antes de fazer um trabalho, achar que este será facílimo de ser executado, Fulano acabará considerando tal trabalho extremamente difícil – é a questão do Realismo. Quem se curva, reina. O áspero é parte de qualquer labor. O cervo desta cena está sendo abatido, e seu sangue se espalha pelo quadro, no modo como tenho uma lembrança de infância, na qual vi uma ovelha ser abatida, numa cena marcante e impactante, num executor preocupado em fazer o bicho sofrer o mínimo possível. Mas é a Cadeia Alimentar do Mundo Físico, e pouco lembramos do sofrimento de um bicho quando comemos carne ou vestimos couro, na cena de Dança com Lobos, que mostra a caça predatória de búfalos, no modo como li em um livro recentemente: não é de hoje que o Ser Humano agride o Meio Ambiente – esta agressão é crônica na História da Humanidade. É o Mundo dos Homens. Fazer o quê? Tenho parentes que são veganos, mas reconheço que sou chegado numa carne! Jacó está no meio de um trajeto, tomado por uma dúvida cinzenta: Será que conseguirei? Será que vencerei? O que me espera? Então, a fé em Nossa Senhora se revela forte, a fé em um Lar.


Acima, Mulher Meditando. A meditação é o que nos faz humanos, colocando a cabeça para funcionar. A mulher tem traços exóticos, talvez indígenas, ou numa mistura com uma raça africana. É o fascínio de Gauguin pelo exótico, num artista cosmopolita, ao contrário de Paris, a qual, ouvi dizer, é uma cidade muito provinciana, apesar de ser uma urbe com uma aparência tão universal e sofisticada – quem sabe, um dia, visito Paris! A mulher está sem o chapéu, sem a proteção, deixando-se banhar pelo Sol da existência, deixando-se banhar pelo calor do astro, da estrela central da trama, alimentando um sistema solar inteiro, como um patriarca, pois, já sei, a Humanidade é patriarcal por excelência, de forma universal, no Sexo Masculino como o centro da Vida Social. A mulher está um pouco triste e abatida, talvez por levar uma vida tão pobre e difícil. O chão de terra evoca a simplicidade, a entranha da Terra que alimenta vegetais e, de tabela, animais. Este chão cor de tijolo é limpo e simples, numa base muito clara de referência, evocando simplicidade, proveniência. O chapéu é adornado por um lenço rubro, a cor do fogo, no fogo que brilha intensamente na mente e no coração dos grandes talentos, das pessoas que fazem Arte, em inegável talento, reconhecido antes ou depois do óbito do bom artista. Ao lado da mulher vemos uma forma que parece ser um peixe fumegante, como se estivesse sendo cozido, servindo de refeição à mulher. O peixe é a Vida que começou no Oceano; o peixe é um olho de egípcio antigo, fluindo livres por percepções estéticas, as quais o Antigo Egito esbanjou amplamente, fascinando até hoje quem gosta do mínimo de Arte; o peixe é a danação dos animais, que servem de alimento a outros animais e ao Ser Humano; o peixe é a Morte por um objetivo, que é alimentar, do modo como não se pode condenar a Cadeia Alimentar só porque vidas são sacrificadas em prol de outras. Ao lado do peixe, vemos duas formas indistintas, talvez pequenos pratos, ou frutas, não se sabe – é um Gauguin um tanto hermético e dúbio, misterioso, nos mistérios altamente enigmáticos que brotam de um artista, o qual fica livre de quaisquer definições, pois há algo mais monótono do que a obviedade? A Arte é para ser um mistério, alimentando inúmeras interpretações. Ao fundo do quadro, uma varanda, revelando-nos de que a mulher se encontra em uma área interna para o banho de Sol, sendo que este significa o esclarecimento, a beleza da pele bronzeada, a beleza da mente pensante, que se debruça sobre o Universo e a Existência. Na varanda, um cão negro, que é o mistério de algo que nos espera na próxima esquina da Vida, como um cão de guarda, cuja função é guardar algo, defendendo este algo ou alguém de forma feroz e agressiva, espantando bandidos importunantes. O cão é o companheirismo, num artista que se faz amigo de sua própria arte, como já disse Jorge Amado, que declarou que seus próprios personagens são seus melhores amigos, no modo como Leonardo da Vinci jamais conseguiu se desfazer da Monalisa – é uma questão de Amor mesmo, o qual é o nervo da Vida e de todas as dimensões do Universo. Mais ao fundo no quadro, um homem sentado num burrico, e o montador é o controle e a disciplina, no modo como um atelier não é um espaço de diversão, mas de trabalho, num trabalho como qualquer outro. O artista monta o animal e controla o próprio Id, colocando este, de forma catártica, em sua obra. O burrico e o cão são a fidelidade, o companheirismo, num Gauguin que se sentia acompanhado de seu próprio trabalho. Ao fundo da cena vemos um jardim bonito, um Éden, como se o homem e a mulher da cena fossem Adão e Eva num lugar paradisíaco. O laço vermelho no chapéu é a serpente do pecado, seduzindo a Humanidade, zombando desta. E, ainda na varanda, vemos uma parede perfurada, respirando e nos permitindo ver através dela, na sedução da transparência, que dá ao Ser Humano a oportunidade da vidência, da observação do Mundo e da Vida. É a Filosofia. A mulher está numa cena informal e cotidiana, sem muito glamour, nem muitas euforias, no dia a dia de um atelier.


Acima, Autorretrato com Halo e Serpente. O autorretrato é um “espelho” no qual um artista se enxerga, num questionamento existencial: Quem sou? Vemos um nariz grande, como de uma Barbra Streisand, num nariz que dá muita personalidade a um rosto, numa espécie de “feiura bonita”. A serpente está muito presente, como veias sanguíneas, com sangue azul, só que um sangue psíquico, de traz nobreza e talento, no esforço de um artista para ser respeitado como tal. A serpente tem muitas voltas, como um sinuoso rio, encontrando caminho por vales e montanhas, no talento da Vida em sempre encontrar um modo de prosperar, na capacidade humana de adaptação, adaptando-se aos mais incertos terrenos, como já ouvi numa bela canção: o Amor sempre encontra um caminho, e cada um tem que encontrar o seu próprio, no sentido de que o autoencontro tem que ser aprendido de forma autodidata, pois, apesar de haver escolas de Arte, o aluno tem que encontrar a sua própria identidade, buscando marcar época com suas obras, seus esforços. É um quadro de cores vivas, com amarelo e vermelho, cores festivas, como no espírito parisiense de se sentar e tomar um café, apreciando o movimento das ruas, curtindo os simples aspectos da Vida, a qual se desdobra de forma imprevisível e, ainda assim, sem graves surpresas: sabemos que algo vai ocorrer, mas não sabemos exatamente como. Aqui, Gauguin tem um elegante bigode, e uma barba feita impecavelmente, aprumando-se para aparecer em seu próprio trabalho, como se estivesse se arrumando para alguma festa ou para um encontro com alguém especial. É um rosto belo e jovem, e sua pele é alva, levemente rosada. Seu negro cabelo é longo, tornado-se um ponto isolado de negror no quadro, na profundidade de um céu noturno, na sensibilidade de uma pessoa que contempla as estrelas à noite. Gauguin olha para a serpente, e está hipnotizado por seu desenvolvimento tortuoso, sua malícia, sua forma aquosa, sempre se insinuando, num animal elegante e minimalista, sem patas nem orelhas, mas numa forma sucinta. A serpente é o pulso da Vida, sempre faminta, sempre buscando por comida, numa das necessidades mais básicas da Vida – buscar alimento. Gauguin segura a serpente com uma das mãos, e deixa ela se desenrolar. Gauguin está sentindo prazer em ter o bicho em seus dedos, estimando a serpente como um adorável pet. É uma relação de carinho, de estima, de amor, num dono empenhado em alimentar e abrigar um animal, como uma pessoa que conheço, que adora bichos. Ao lado de Gauguin, duas maçãs no pé, dependuradas por um fino e frágil galho, que ameaça se romper a qualquer momento, na fragilidade do Ser Humano, um ser cujos sonhos podem se despedaçar tão facilmente, na tendência humana à frustração. Uma das maçãs está madura; a outra, ainda verde. É a maturidade e a infância convivendo, do modo como uma pessoa, apesar de ter que crescer e amadurecer, tem que sempre conservar, dentro de si, um pouco da inocência infantil, do contrário, a pessoa corre o risco de ficar amarga, sendo necessário o mantimento do senso de humor e da ludicidade. Agora, falo de um ponto engraçado do quadro: Gauguin está com uma aureola sobre a cabeça, endeusando a si mesmo, transformando-se em santo. E por quê? Talvez a aureola se contraponha à malícia da serpente e à tentação da maçã do Éden. A aureola é a pureza, a boa intenção, na vontade de uma pessoa de fazer o Bem, amando o Mundo ao seu redor. Qualquer artista é assim, cheio de boas intenções, sempre correndo o risco de ser mal compreendido. Gauguin está dividido: olha hipnotizado para a serpente, mas carrega sobre a cabeça uma coroa dourada, tentando aqui conciliar opostos, buscando unidade, buscando ser íntegro. A aureola é como um anel de Tolkien, sempre seduzindo o Ser Humano, buscando brechas nas fraquezas deste. É o enigma de Tao, cuja sensualidade reside exatamente no interior oco, rechaçando a Matéria e abraçando o Pensamento, na busca pelo Metafísico.


Acima, A Semente de Areoi. Gauguin nos transporta a um cenário exótico e agradável. Estamos talvez no Havaí ou na Polinésia, com montanhas enormes que parecem ser vulcões, prontos para entrar em erupção a mostrar toda a força da Natureza. Palmeiras douradas tremulam à amena brisa, numa temperatura agradável o suficiente para a modelo ficar completamente nua, no modo como a Nudez não é um problema de pudor para muitas culturas, como indígenas brasileiros. A mulher tem a pele marrom, como um delicioso açúcar mascavo, e seus traços faciais revelam ser de uma etnia que nada tema ver com o branco europeu. Seus seios estão no auge da beleza, e seu olhar é plácido, confortável na própria nudez. É o desejo de se mudar para uma terra diferente, exótica, querendo levar uma vida simples em meio a tantas maravilhas naturais, como um amigo meu, que certa vez se mudou para Florianópolis porque desejava ser “ratão de praia”, só que, depois do Verão, veio o Inverno, e a Vida seguiu sendo séria e demandosa. Portanto, não existe fugir, pois, disse-me alguém certa vez, a Vida é dura em qualquer lugar, e no fundo Gauguin sabe disso. Mas a candura da mulher nos faz esquecer da dureza inevitável, e somos convidados a desfrutar, temporariamente, deste cenário tão doce. Atrás da mulher há muitas flores rosadas, numa eterna Primavera, num frescor infindável, de uma terra que nunca envelhece ou morre, mas uma terra de beleza indescritível, cujas cópias existem pelo Mundo Material, sendo apenas cópias, como adoçante é uma cópia de açúcar. Este quadro é uma janela, a qual será fechada assim que o espectador parar de olhar para o quadro. Três flores brancas adornam o cabelo da mulher, que é uma espécie de Iracema, na idealização da mulher, com os cabelos de um preto profundo e hálito de baunilha, do modo como as idealizações são universais. Podemos ouvir tambores tribais em um dia de festa na tribo exótica, e ouvimos o vaivém de ondas na cândida orla, numa água deliciosa, trazendo sensação de Paz. Na porção inferior do quadro, uma travessa com frutas coloridas, maduras, doces, como uma manga suculenta ou um abacate perfumado, no continuum de sensualidade entre a fruta, o corpo da mulher e o cenário ao redor, com tudo respirando junto. Gauguin quis sair de uma Paris fria, chuvosa e cinzenta para entrar em um lugar tão diferente, no poder da Arte em transportar as pessoas, como num romance escrito ou num filme. Os pés da mulher repousam sobre um tapete de absoluto vermelho, na cor da lava, abocanhando tudo e todos em seu caminho. A mulher repousa sobre uma toalha de gravuras tribais, denotando ser uma mulher de alta posição na tribo, na comunidade. E a mulher tem na mão uma forma misteriosa, que parece uma maçã azul, ou um isqueiro de chama azul, talvez sendo a “semente” evocada no título da obra. A semente é o poder da Vida, de plantas germinando, de animais eclodindo de ovos e de bebês saindo de barrigas. É a celebração da Vida, uma celebração universal, que ocorre em qualquer agrupamento humano. A mulher aqui assume um status de sacerdotisa, como se fosse a guardiã da Vida, um feiticeira de poderes mágicos, guiando seu povo em meio ao senso comum de tradição oral, transmitida de pai para filho durante milênios. Esta mulher é uma espécie de Ísis, no arquétipo feminino de fertilidade e beleza, como num útero imaculado, na ancestral tentativa humana de compreender a Psique.

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