Na comédia dos anos 1990 A Morte lhe Cai Bem, uma poção mágica faz
com que a pessoa seja jovem e bela para sempre, e o filme, com muito humor,
mostra celebridades que beberam a tal poção, e uma dessas pessoas foi Andy
Warhol, o qual não era só artista – era famosão também, e gostava do status de celebrity, algo muito pertinente com o
movimento que foi a Pop Art, a qual tocou na cultura de massa, na indústria, na
identidade do século XX, no capitalismo de mercado, no consumo, na arte como
produto, na mercantilização. As cinzentas feridas da II Guerra Mundial já
estavam saradas, mas a Guerra Fria estava no auge, e o bloco capitalista não
via além da Cortina de Ferro, a qual passava a impressão de ser descolorida,
morta, e esta guerra teve como uma consequência o chumbo da ditadura militar no
Brasil – o mundo estava dividido ideologicamente, e a Pop Art foi uma bandeira
espontânea.
As cores dos anos 1960 tomaram conta do Mundo Ocidental, e
o divertido personagem Austin Powers, vivido no cinema por Mike Myers, dá o tom
de como foi aquela época colorida e sexualmente liberada. Autodeclarados mais
famosos do que Jesus Cristo, os Beatles estouraram – foi o início da pop music, a qual floresce até hoje, uma
vertente do rock, fazendo parte da indústria cultural, a qual gira em torno de
vendas, de popularidade, da celebridade estampada na mídia de massa, com a
pressão de vender, por exemplo, revistas, o que Osterwold chama de “vida
hollywoodesca”, no encantado mundo de Caras – a mídia é uma “religião” em seus
sinais auspiciosos, suas mentiras. No filme Uma
Secretária de Futuro, dos anos 1980, a casa de uma executiva chique, vivida
pela sempre competente Sigourney Weaver, tem uma grande tela em alusão clara a
Andy Warhol. Trata-se de um artista que conquistou o seu lugar no imaginário
mundial, tornando-se rota obrigatória para quem quer pesquisar sobre a Pop Art,
do mesmo modo como Piet Mondrian é um must
do movimento De Styl. Esta crônica tem como base um livro luxuoso da Taschen
sobre o movimento artístico que incluiu Warhol, e o volume foi-me dado de
presente de formatura no ano de 2009, e agora em 2016 é a primeira vez que abro
este livro, o qual fala sobre outros sete artistas importantes na Pop Art.
Livro em português, é como descobrir a prata da casa, além de ser objeto de
decoração. Talvez posteriormente eu fale de outros artistas.
Andy nasceu em 1928 em Pittsburgh,
EUA, filho de imigrantes tchecos, perdendo o pai muito cedo. Nos anos 1940,
estuda desenho, e muda-se para Nova York no fim desta década, em uma América
pós-guerra. Nos anos 1950, passa a fazer exposições. Os anos 1960 tiveram uma
intensa produtividade de Andy, um homem multimídia, que também fazia cinema e
literatura, editava revistas e produzia TV, entendendo que as artes estão umas
dentro das outras, como um Leonardo da Vinci, cheio de dons. Nos anos 1970,
Andy ganha o mundo com muitas mostras ao redor do globo. Falecendo em 1987,
tem, dois anos depois, uma retrospectiva no MoMA, o Museu de Arte Moderna de
Nova York, na maior retrospectiva da história do museu até então. A grande
coleção de obras de arte de Warhol foi leiloada em Londres, e seu testamento
exigiu a criação de uma instituição de apoio à Arte, entendendo as dificuldades
de artistas iniciantes, que se deparam com um mundo duro e cético, no qual um
artista tem que ter muita força e talento para sobreviver. Aviso que as
análises semióticas a seguir são minhas, e não do livro citado de Osterwold.
Acima, Campbell’s Soup Can 1, ou seja, a clássica lata de sopa Campbell,
de 1968, uma serigrafia sobre tela. É a “coisificação” da escala industrial, o
erotismo da matéria, o fetiche do objeto em si, que pode ser facilmente
adquirido no supermercado. A lata é arrogante, imponente; basta a si mesma. É
inacessível, porém, acessível ao dinheiro. No mundo capitalista, quem não tem
dinheiro é igual a cocô. A metade de cima do rótulo tem base vermelha e texto
branco; na metade abaixo, o oposto, num contraste que tem como objetivo chamar
a atenção do consumidor e vender o produto. A concorrência nas gôndolas de
supermercado é atroz – são como plantas que lutam entre si para obter um lugar
ao Sol, no caso, a atenção do consumidor, na agressividade da concorrência.
Certa vez eu fui estagiário em uma firma de design gráfico de embalagens. A
intenção do designer é seduzir, ou seja, mentir, na mentira de dizer que tal
produto é essencial, indispensável. A sociedade de consumo inventa necessidades
frívolas e, quem está de fora, não faz parte desse carnaval de mentirinha.
Ladeando a palavra “soup”, ou seja, “sopa”, elementos de pretensão
aristocrática, querendo dizer que o produto é nobre, perfeito, tudo o que você
precisa para ser feliz, ícones absolutos de autossuficiência. Warhol expõe a
ânsia capitalista de vender, vender, vender. E tem como base o clichê, a
repetição da esteira que fabrica os produtos e os embala com embalagens que
vendem fornicação, prazer. Ao pegar a lata, o consumidor compra a ilusão de que
existe perfeição no mundo, e que o supermercado é o templo dessa pretensão. Eu
tenho uma pessoa de minha família que simplesmente odeia shopping centers,
chamando-os de “templos do consumismo”. A lata de sopa de tomate de Andy é esse
objeto religioso e, do mesmo modo que foi adquirida, será descartada, surgindo
então a necessidade de comprar mais uma lata, e mais outra, e mais outra,
alimentando a acumulação dos lixões. Nada mais americano, não? É por isso que é
bom delinear o abismo ideológico da Guerra Fria, pois os soviéticos não faziam
ideia dessa euforia consumista pós II Guerra na América. A lata de tomate vende
mais do que apenas tomate, pois, se fosse sincera e dissesse que era só tomate,
não venderia. O capitalismo é uma agradável mentira, nessa fome insaciável por
produtos. Como diz o Taoísmo: “Se o que você tem você não acha que é o
suficiente, então você nunca terá o suficiente”. O contraste cromático no
rótulo da lata mostra a contradição do consumo, o qual, além de vender
satisfação, vende também, inevitavelmente, a insatisfação. São as perenes
consequências da Revolução Industrial inglesa, a qual reina hoje no mundo, como
na rica China, teoricamente comunista.
Acima, a célebre obra que mostra
Marilyn Monroe, de 1962, obra cujo estilo repete-se em muitas outras do artista, numa
“marca registrada” de notoriedade. Andy adora explorar ao máximo as opções
cromáticas. Por um lado, há a repetição, o clichê monótono; junto a isso, o
carnaval de cores, dando um novo sabor à mesma imagem de base, no caso, o rosto
de Marilyn. A indústria cultural é isso: encontra novas formas de vender o mesmo
artista. Cada Marilyn é diferente, única, e, mesmo assim, repetitiva. É como um
ator, que tem que fazer coisas diferentes durante a carreira para não ser
considerado monótono ou repetitivo, sobrevivendo à fome de um mercado, mercado
este sempre faminto por novidade – não deve ser fácil ter décadas de carreira
sem repetitividade. O próprio Warhol fez parte desse esquema capitalista
“canibalesco”, e este artista teve que se inovar frequentemente, pois, se
passasse o resto de sua vida fazendo obras como a de Marilyn, seria descartado
e cairia no esquecimento. Sobrevivência: isso é o que é importante no mundo
capitalista, na cultura liberal de que o homem pertence a si mesmo, e não a um
estado, com contraste profundo com o Marxismo, no qual o homem pertence a um
estado, sendo prisioneiro deste – tanto o Capitalismo quanto o Marxismo são
ruins, e se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. As cores dos anos
1960 estouram nas mãos de Andy, o qual traduz os anseios de uma época. Temos
uma Marilyn assim, temos uma Marilyn assado. É como dar novas dimensões ao
mesmo assunto: há um ponto de vista político, um econômico, um social etc.,
tudo sobre o mesmo princípio monótono. Cada Marilyn é única e nova, numa
tentativa desesperada de se vender aquilo que já foi vendido antes. Uma artista
como Cindy Lauper, por exemplo: ela não sobreviveu aos anos 1980, pois não
soube se reinventar, e até hoje canta o mesmo repertório da referida década.
Cindy tem que lançar material novo no mercado, apesar de poder manter grandes
clássicos de seu repertório oitentista. Com suas experiências multimidiáticas,
Andy entendeu que um produto tem um ciclo de vida no mercado, e que a novidade
logo envelhece e torna-se desatraente. Portanto, sobreviver é essencial. A
cultura pop é merecidamente tachada de “comercial”, do mesmo modo como qualquer
artista plástico, no fundo, deseja ser um sucesso comercial, e esse desejo
assim foi com Warhol, uma ironia: um vendedor falando de vender. E a arrogante Nova
York é o pano de fundo desse desejo, com seus arranhacéus fálicos, afiados como
uma seringa e agulha.
Acima, Do It Yourself (Flowers), ou seja, Faça Você Mesmo (Flores), de 1962. Nas partes coloridas, não há
números, os quais só aparecem nas partes em branco, nas lacunas cromáticas.
Andy mostra a obsessão humana em classificar e definir, do mesmo modo que se
diz que um artista é “comercial” ou não. A parte colorida é a parte divertida,
“louca”; a em preto e branco, racional e sisuda. Andy quis fazer um contraste,
buscando conciliar paradoxos. As cores são o legado dos anos 1960, num Warhol
sedento por inovação, buscando sobreviver ao grande ícone que ele mesmo foi
desta década. Sobrevivendo a si mesmo. Os números dançam desordenadamente,
seduzidos e embriagados pelas cores. Masculino e feminino juntam-se no mesmo
baile, como Marte seduzido por Vênus, num artista que quer conhecer a si mesmo
e buscar aquilo que lhe falta existencialmente. Os grandes lírios amarelos são
como sóis brilhantes, aquecendo a cena, numa exuberância tropical. Parece que
uma leve brisa passa pelo quadro, mexendo com tudo à sua volta, mas nunca
fazendo com que os números saiam das partes em branco do quadro. Warhol opta
por não misturar “alhos com bugalhos”, mantendo o discernimento entre público e
privado, impossível ao Marxismo, que não confere propriedade privada ao seu
cidadão. A cor azul do céu “de brigadeiro” une-se às flores e, dentre os vários
tons, flores em azul e rosa pastéis conferem delicadeza e perfume à cena, como
um sedutor perfume à venda – o mercado de perfumaria é outro aspecto do
mercantilismo, pois o conteúdo da embalagem de vidro acaba, e uma nova tem que
ser adquirida. É como o Facebook, uma sede interminável por assunto, soterrado
abaixo de mais assunto, numa cascata ad
eternum. Ninguém pode parar de trabalhar. Nuca pare.
Acima, Tunafish Disaster, ou
seja, Desastre do Atum, de 1963. A obsessão com a
repetição da esteira industrial. A lata de atum é a magia materialista do
objeto, daquilo ao alcance de quem tiver dinheiro, em harmonia com o preço da
própria obra de arte, pois, no fundo, já disse, todo artista quer se vender,
quer ser um sucesso, quer ganhar dinheiro. O mercado de arte novaiorquino é
isso: um plano de moeda de troca. Todos querem sucesso, todos buscam isso com a
obsessão capitalista da riqueza mundana. A imagem, em preto e branco, é a
crueza da mídia jornalística, a qual tem a missão de vender exemplares. As
mulheres estampadas são essa transformação do ser humano em ser midiático.
Todos querem ser monstros midiáticos, celebridades ricas, belas e perfeitas.
Deuses. A repetição é indiferente aos sentimentos do ser humano. Como em Matrix, o ser humano é um servidor cego de
um sistema sutil e esmagador, um poder tão forte que mal pode ser percebido. A
pessoa nasce e morre nessa esteira industrial, sendo mais um tijolo na parede.
A pesca predatória está na carne do peixe, oprimida, comprimida em uma lata que
é o claustrofóbico sistema do dinheiro. O ser humano é negligenciado em sua
singularidade humana, transformado em um consumidor faminto por novidades do
supermercado. Nessa fome constante, as mulheres sorriem, mas não por dentro. A
superficialidade da propaganda não quer discutir questões, mas vedar os olhos
do cidadão, como o personagem Neo fica cego no final da saga de Matrix. As mulheres são como
presidiárias tachadas, identificadas por um frio número, como em um campo de concentração.
E a lata brilha fria, terrível, cortante como uma faca, e, se você for esperto,
não dará murro nessa ponta de faca. A Filosofia não muda o mundo; só o discute.
O “desastre” aludido é a inescapável insensibilidade de um mundo duro, no qual
o indivíduo tem que se virar, tem que tomar atitudes, como a banda U2, a qual
não parou de lançar novidades. Como disse-me uma querida pessoa (já falecida)
de minha família: “Estou empurrando a vida para a vida não me empurrar”. Como
disse o escritor Michael Cunningham, o qual conheci quando ele veio para a
Feira do Livro de Porto Alegre, doce ou amarga, a próxima hora virá, e as
páginas têm que ser viradas.
Referência
bibliográfica:
OSTERWOLD,
Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007
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