quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Os Tons de Tom Wesselmann



             Nascido em 1931 em Cincinnati, EUA, não foi imediatamente que Tom Wesselmann encontrou-se na vida, pois, antes de fazer Arte, cursou Psicologia na Universidade de Cincinnati, e essa faculdade influenciou-o em sua obra posteriormente. Em meados dos anos 1950, ao se formar no referido curso, Tom ingressa no curso de Arte da mesma instituição e, na segunda metade da década, começa a estudar Arte e Arquitetura em Nova York, numa época em que o artista flertava com o movimento expressionista abstrato. Em 1961, sua primeira exposição na Big Apple e, no ano seguinte, participa de uma mostra coletiva no MoMA. Em 1963, mostra na cidade de Houston. Em 1965, mostra no Whitney Museum de Nova York, instituição especializada em Arte Americana. Em 1967, participação na Bienal de São Paulo, Brasil. Em 1974, participação em mostra sobre Pop Art, no Whitney. Em 1976, mostra em Sidney, Austrália, fazendo muitas outras mostras na mesma década e na anterior. Em 1980, obra de retrospectiva de seu próprio trabalho, na qual Tom usou um pseudônimo. Em 1994, organizaram para Tom uma grande retrospectiva de sua obra. Tom falece em 2004, em Nova York. Tido como artista provocador, Wesselmann namora com a estética publicitária e o desbravamento do corpo nu feminino. Com o conhecimento em Psicologia, Tom estabeleceu uma relação de naturalidade com a nudez e com a sexualidade, algo difícil em um país de raízes puritanas como os EUA. E o artista também embarcou na tendência multicolorida da Pop Art. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

            Acima, Great American Nude n. 54, ou seja, Grande Nu Americano n. 54, de 1967, tela com diversas técnicas e diversos objetos e sonorização, numa criativa mistura de tela com instalação. Uma mulher nua deita-se em uma pose quase ginecológica. As cores em vermelho, com a calefação, aquecem a cena, quente como a sensualidade tórrida da mulher. O amarelo da tela entra em harmonia com o amarelo da árvore através da janela. Flores pintadas e reais simbolizam a feminilidade. As cortinas rubras são a vagina e, de dentro do útero materno, tem-se a vista para o exterior, o ar livre, o princípio viril de liberdade. A mulher espreguiça-se lânguida, e o interior de seu corpo é aquecido como as cores quentes da cena. Uma cadeira de costas para o público parece contemplar por si só, distraída com a vista, parecendo não se dar conta da mulher nua. A mulher tem cor de pele parda, mestiça, até negra, e os bicos de seus seios são “afiados”, desafiadores, disponíveis ao toque, movimentando-se enquanto a modelo espreguiça-se, esta acordando ou pegando num sono de apelo sedutor, sonolento. A mulher não parece ser vulgar, apesar da pose. Ela lida muito bem com seu próprio corpo, e Wesselmann pinta uma pose de naturalidade, sem malícia mas, ainda assim, provocadora, podendo ser alvo de moralistas, tão abundantes na América. A Arte prova ser independente, gravitando acima de julgamentos medíocres. No rosto da mulher, um pequeno traço pode ser o contorno do queixo ou lábios sorrindo, exalando o simples prazer de deitar-se e relaxar o corpo. Pequenos elementos em azul têm a missão de fazer contraste com o registro quente cromático, realçando este, contraditoriamente. Na mesinha atrás da cadeira, um prato com legumes, na sensualidade de se digerir uma boa refeição. Ao lado, dois doces de morango com chantilly, imitando os seios da mulher, associando o prazer sexual ao gastronômico. Comer é um prazer. Descansar é um prazer. Um telefone branco de parede está em meio ao amarelo caloroso da parede. O telefone é um ligação com o mundo lá fora, mundo este esquecido e deletado, tal a paz de um sono bem dormido. Provavelmente, o elemento de sonorização da cena é o aparelho tocando, e a mulher está absolutamente alheia ao chamado do mundo lá fora. O telefone toca, toca e toca, e só recebe a indiferença da cena indoor. A mulher tem prazer em ignorar o telefone. A gostosa soneca é sedutora; a preguiça, também, num doce pecado capital. O carpete vermelho acolhe o espectador, e convida-o a pisar nele, descalço. Relaxe. A mulher é embasada por um cor-de-rosa pastel, dando continuidade à paleta de cores femininas. A mulher está dentro de si mesma, e nada vai removê-la dali. O telefone segue tocando, desprezado. O mundo lá fora chama, mas o mundo lá dentro ignora, tendo este suas próprias regras. A mulher tem especial prazer em ignorar a chamada – quanto mais ele toca, mais preguiça ela tem. Quase apenas pela pequena brecha das cortinas vaginais é que podemos vislumbrar um pouco do exterior. A mulher não vai sair dessa cama, móvel que é fonte dois prazeres – o sexo e o sono. Atrás da mulher, há uma brecha ainda menor na cortina vermelha, e um pouco da cena ensolarada pode ser visto. As cortinas são de Chapeuzinho Vermelho, e o Lobo Mau está à espreita lá fora, talvez telefonando para a mulher chapeuzinho. A cena é um claustro amenizado pela vista do mundo exterior. Parece que cada chamada do telefone dá prazer à mulher. Alguém quer desesperadamente falar com ela, mas ela quer ficar em paz. Ela dorme, e mal nota o apelo do mundo exterior. Ela parece estar prestes a cair da cama e acordar de seu soninho gostoso. Wesselmann tem um desprendimento europeu ao tratar da nudez com naturalidade. Ele não é pornográfico, mas erótico, e seu fascínio pelo corpo feminino é muito claro.

            Acima, Great American Nude n. 98, ou seja, Grande Nu Americano n. 98, também de 1967, com telas sobrepostas. Um cigarro aceso repousando em um cinzeiro e espalhando a fumaça cinzenta. Uma mulher loira de sensuais lábios sorridentes parece ter muito prazer no tabagismo, em uma época em que o cigarro não tinha as conotações não-saudáveis dos dias de hoje. Um bico de seio da mulher revela uma parte do corpo de grande apelo erótico. A mulher, da qual vemos apenas duas partes – seio e parte inferior do rosto -, parece estar em completo êxtase. Seus lábios são provocantemente vermelhos e lustrosos, como o bico do seio o é, e esses dois elementos apoderam-se do conjunto pictórico, apesar de estarem em meio a outros elementos. Uma caixa azul de lenços de papel tem uma função purificadora, lutando contra o erotismo, como o conflito prazer vs. culpa. O azul da caixa combina com o encosto de uma cadeira azul atrás da mulher. Frente a tudo, uma suculenta laranja, quente como um sol de verão. Diante de tudo, a laranja luta para se destacar, e sua forma redonda é como o seio da mulher loira. Embasando todos os elementos, uma discreta base cinzenta como a fumaça do cigarro. É impressionante como a boca feminina apodera-se do conjunto, como uma vagina avermelhada e convidativa, irresistível. Os dentes brancos da mulher são limpos como o lenço de papel. A mulher é limpa e, ao mesmo tempo, “suja” em seu apelo – é anjo e demônio; bipolar. A laranja e os cabelos loiros combinam entre si, e o conjunto fala de prazeres da vida. O bico do seio é perfeito, muito provocante. Mais uma vez, Wesselmann traz-nos uma mulher lânguida, desdobrando-se em um momento de orgasmo. A mulher ri de alguma piada, e está completamente à vontade, confortavelmente recostada na cadeira azul, que é o princípio masculino sisudo que respalda a modelo. O lenço de papel é o prazer de se manter limpo, como uma boa chuveirada. O lenço em si é como uma nuvem, leve, suave, e a caixa azul é o céu, em um dia bonito o qual dá muito prazer de se presenciar. O cinzeiro preto é a morte à espreita, talvez pelos riscos do cigarro à saúde. É a morte que, cedo ou tarde, vem a todos, portanto, a vida tem que ter prazeres. O sorriso da mulher parece desdenhar da morte, e lida naturalmente com ela. A saudável laranja está ali para mostrar que não se deve ter culpa em relação a prazeres, e que é saudável uma pitada de pecado. Relax and enjoy the moment, ou seja, relaxe e curta o momento. O lenço de papel tem como missão limpar a luxúria, mas esta nunca desaparece por completo. E o brilho da laranja revela um raio de Sol reconfortante, gostoso. A Pop Art revela-se em suas cores estimulantes, e trata da sedução dos anúncios publicitários, os quais vendem prazer. Os elementos nessa obra de Wesselmann são vitrines de objetos de desejo, e tudo está a venda: o batom na boca da mulher, produtos de higiene, alimentos, cigarro, seios siliconados. E o prazer sorridente da mulher aceita toda essa mercadologia insana, provocante e, como diz o marqueteiro americano Al Ries, responsável por despertar o desejo que o consumidor já tem dentro de si mesmo. A maior ambição de um publicitário é estimular o desejo em outrem. E o sorriso da mulher, como uma Monalisa pós-moderna, aceita todo esse apelo consumista. Ela delira de prazer. Wesselmann é um mistério.

            Acima, Bathtub 3, ou seja, Banheira 3, de 1963, com tela e objetos diversos compondo a cena. Mais uma vez, uma mulher completamente nua. Com a pele alva como neve, seca-se calmamente com uma toalha listrada, que patrioticamente lembra um pouco a bandeira nacional dos EUA, na beleza da mulher americana. Mais uma vez, a cor vermelha de Chapeuzinho, no apelo erótico pelo interior do corpo da mulher, rubro como uma decoração de bordel, ou a Casa da Luz Vermelha, prostíbulo da obra de Jorge Amado. A cortina revela uma Vênus de Botticelli emergindo das profundezas aquáticas do inconsciente humano. Aquecendo a cena, três elementos no mesmo tom de amarelo caramelo: cabelo, parede e toalha, a qual está dependurada, tendo sido esquecida e ignorada pela mulher. A vulva da mulher é escura, misteriosa, uma porta de entrada para o desconhecido. Os tons de azul fazem-se presentes: azul marinho nos azulejos, azul ciano na banheira e azul esverdeado na cesta de roupa suja. A cesta está fechada, alheia ao mundo, guardando coisas inimagináveis, como o segredo de uma mulher reservada e sedutora. Um pequeno interruptor de luz aparece discretamente, ao lado de uma mulher que tem o controle sobre si mesma: ela pode ligar ou desligar quando bem entender, com independência. As mulheres de Wesselmann são sexy mas não são submissas; não estão submetidas a qualquer misoginia; estão confortáveis em sua própria pele. A porta branca faz conjunto com a alva pele: como algo tão esclarecido pode ser tão indecifrável? O formato redondo da maçaneta combina com os bicos dos seios, que, por suas vezes, não estão tão em evidência como o bico de seio de Grande Nu Americano n. 98, analisada anteriormente nesta crônica. Os azulejos quadriculados conferem organização, e as listras curvilíneas da toalha simbolizam o caos, a paixão, o sofrimento, os sentimentos em geral. A mulher pega as linhas retas e subverte-as, tomando conta da cena que é Banheira 3. A perspectiva do interior do box de banho traz profundidade tridimensional, e a mulher ocupa o seu lugar no olho do furação, no centro das atenções. A função do azul marinho é contrastar com a pele branca. Ao lado da banheira, um tapete quase preto, recolhido em sua discrição. Ele aguarda pela mulher para acolher confortavelmente os pés dela; está ali à sua inteira disposição, um servo, um escravo da beleza feminina. E a porta, onde vai dar? É outro mistério. A porta é o acesso para o mundo lá fora, e tem a função de salvaguardar a mulher em seu recinto íntimo de higiene e beleza. A cortina está aberta porque a porta está fechada. A mulher sente-se segura e tranquila. O bastão metálico prateado que segura a cortina é o princípio fálico, nas linhas retas e práticas do pensamento racional. Mas o bastão está por demais afundado na bagunça sensual, e desaparece na cena, fazendo um papel mínimo, uma pontinha coadjuvante. O bastão está preso assim como a toalha amarela está em um gancho, o qual tem sua função definida: sustentar a mulher; girar em torno dela. Tudo o que existe de quadricular e retangular na cena – inclusive a estrutura de vime do cesto – combate a tortuosidade feminina, com o balançar dos quadris da mulher.

            Acima, Stillife n. 20, ou seja, Natureza Morta n. 20, de 1962, numa mistura de pintura com objetos, algo que Wesselmann gosta muito de fazer. A Pop Art aqui revela-se completamente nas embalagens de produtos à venda no mercado: Coca-Cola, pão, cerveja e produtos de limpeza. As bananas trazem uma discreta alusão a Carmen Miranda, um ícone pré Pop Art, mas que trazia muitas cores na era Technicolor, “vendendo” o Brasil e a tropicalidade. Mais uma vez, Tom lança mão da cor vermelha, no desejo constante de calor, tempero e estímulo visual – o vermelho nos torna mais agressivos e estimulados. No lado direito, metalinguagem, pois é artista falando de artista – há uma tela de Piet Mondrian, em suas ultracélebres linhas pretas retas formando quadrados e retângulos que abrigam cores primárias. A fria lâmpada branca ilumina a torneira: uma vez caída a água, esta desaparecerá, e mais água será necessária, assim como um produto que é comprado – tudo perece, e o consumo constante prevalece sempre. É a frieza capitalista. A portinhola revela produtos guardados, os quais são dignos de respeito, pois servem para algo; têm propósito. O quadro de Mondrian está ali como qualquer outro produto, sempre à venda. Na Pop Art, tudo está a venda em uma prateleira de supermercado. O pote vazio na prateleira é o sentimento de vazio do consumismo: quanto mais tenho, menos feliz sou; menos é mais; como diz o Taoismo, fraco é forte, forte é fraco. O que é melhor: uma casa abarrotada de coisas ou uma casa limpa? O vazio material combate o materialismo. Há paz no vazio. Não compre jóias, pois, se você o fizer, fará com que queiram roubá-las de você. O pão é o alimento do espírito, sendo este cansado de tanto consumo. O vermelho de Mondrian encontra-se com o vermelho de Wesselmann, estabelecendo harmonia cromática entre os dois artistas. E as maçãs são como a laranja viçosa em Grande Nu Americano n. 98, tudo a venda em uma quitanda. As torneiras são como os seios das mulheres de Wesselmann, e a torneira é o aparelho urinário, por onde flui a urina. As bananas, junto às cervejas, são o princípio fálico, como na dança pagodeira erotizada da garrafa. A Coca-Cola consolida a marca Pop Art, e está geladinha e deliciosa, irresistível em seu apelo mercadológico, assim como são irresistíveis as mulheres de Wesselmann. A sociedade de consumo funciona perante à irresistência do consumidor, e a sedução feminina é forte, ou seja, fraca.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

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