quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Guns and Rosenquist



            Pacifista, James Albert Rosenquist é preso por algum tempo nos EUA por ter se declarado publicamente contra a Guerra do Vietnã – foi acusado de simpatizar com o Comunismo. James nasce americano em 1933 em Dakota do Norte. Em 1948 começa a estudar Arte, migrando para os estudos de Pintura. Em 1954, começa com pinturas para espaços publicitários. Viagem a Cuba. Interesse por impressionistas. Em 1955, ganha uma bolsa de estudos de Arte em Nova York. Em 1957, aluga um atelier e faz desenhos publicitários. No fim da década, é empregado como pintor chefe de uma grande empresa de design, mas abandona este trabalho em 1960. Casa-se com uma desenhista têxtil. Passa a decorar vitrines. Em 1962, sua primeira mostra individual. No ano seguinte, recebe uma grande encomenda. Em 1965, começa a trabalhar com litografia e produz F-111, um painel de 26 metros de comprimento, obra que viaja o mundo sendo exposta solenemente. Em 1966, JR participa de uma retrospectiva no MoMA. Os anos 1970 são marcados por muita atividade do artista. Nos anos 1980, James recebe várias retrospectivas e, no fim da década, recebe distinção de uma importante instituição americana de Arte. Em 2002, grande retrospectiva de James no Museu Guggenheim de Nova York. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

            Acima, F-111, de 1965, considerada a obra mais importante de James. Riqueza em cores, típica da Pop Art. Turbinas de um potente avião. Um grande pneu de ônibus. Uma menininha feliz em um secador de cabelos de salão de beleza. Uma bomba atômica estourando em todo o seu terror, atrás de um guarda-chuva. Semelhante à bomba, ar explodindo dentro d’água. Macarrão ao molho vermelho, como na obra I Love You My Ford, analisada nesta mesma crônica. O painel é um manifesto contra as guerras. As cores buscam maquiar, evitar o terrorismo, por exemplo. A bomba estourando é um lembrete desse posicionamento político de Rosenquist. A menininha é a promessa de um futuro mais colorido e menos dolorido. O texto USA Air Force aparece para citar a nação do artista, o qual não gosta de conflitos, usando a arte como catarse, como vômito purificador. O painel, no geral, tem muito movimento. O maquinário pesado não consegue vencer o aspecto orgânico, que é o macarrão. O guarda-chuva quer proteger o mundo das guerras, por isso, aquele está à frente da explosão. A explosão é como um popstar sendo revelado ao mundo, como um Michael Jackson implacável. A inocente menininha olha para o maquinário e não faz ideia das vidas que ele ceifará na guerra. O pneu esmagador passa por cima de tudo e todos, ignorando a vida, deixando cicatrizes pelo caminho. No geral, o avião ocupa todo o quadro, mas não é absoluto, impondo-se de forma discreta, de ponta a ponta, sendo um princípio fálico de verdade e liberdade americano. O céu azul limpa o conjunto, como num belo dia; como no sorriso da menininha. O avião está aterrisando majestosamente, anunciando vitoriosamente as vidas que ceifou. F-111 é muito estimulante aos olhos. No centro do quadro, uma lâmpada, iluminando as ideias de uma América anticomunista. As cores rejeitam completamente os tons cinzentos da Cortina de Ferro, e tanto a extremidade esquerda quanto a direita têm partes em cinza, dando tristeza aos pontos de chegada e de saída do avião. Rosenquist gosta do apelo político. A menininha é a frágil feminilidade em meio aos horrores bélicos. A impressão que se tem no quadro geral é a de que o avião está em pleno voo, e podemos quase ouvir o barulho de seus motores. Bem ao centro do quadro, uma estrela militar, na fixação da Pop Art pelas estrelas midiáticas. A menininha é uma estrela; o avião, também. Abaixo do pneu, um delicioso bolo com uma doce cobertura, e o bolo está decorado com bandeirolas, as quais são as referências militares de alvos de bombardeio. O bolo é o lado doce da vida, lado este muito distante das guerras. Rosenquist nos mostra que a paz é maior do que a raiva, como as cores são maiores do que a morte. No mais, o painel parece ser uma propaganda comunista, só que colorida. Uma saudável loucura de James Albert.

            Acima, Untitled (Joan Crawford Says...), ou seja, Sem Título (Joan Crawford Diz...) de 1964, ano em que o Brasil mergulha no governo militar. Toda a frivolidade do mundo publicitário e do american way, na premeditada ausência de título e de sentido. Joan é a dona de casa perfeita. Sua pele é imaculada, sem poros e sem qualquer sinal de idade ou de expressão. Seus dentes são dignos de comercial de creme dental. Seu cabelo não tem um só fio desalinhado e, é claro, não tem um só grisalho. Em torno de seu pescoço, uma joia. Joan parece estar ouvindo o “plim” do forno, o qual avisa que o peru está assado e pronto. As alças de seu vestido combinam com o batom e o quadro ao lado, o qual cita palavras da estrela de cinema. Reza a lenda que Joan Crawford e a inesquecível Bette Davis não gostavam uma da outra. Bette achava-a brega, superficial, simplória. Já, Joan teria feito uma campanha em Hollywood para evitar que Bette ganhasse um Oscar, fazendo com que o troféu fosse para a concorrente Anne Bancroft. Bette representa a inteligência, a sofisticação, a sagacidade, ganhando títulos como “perigosa”, “a malvada” ou “pérfida”. Bette fazia vilões como ninguém, desconstruindo o psicopata. E é claro que Joan Crawford não chegava aos pés da rival. Inclusive há a canção Bette Davis Eyes, ou seja, Olhos de Bette Davis, música na qual a diva é exaltada. No óleo sobre tela de James Rosenquist, Joan não está olhando para o espectador; não está olhando para lugar algum. Está sem rumo, sem objetivo, acorrentada à função machista de Rainha do Lar. Podemos sentir seu perfume de rosas, Chanel, inebriante. Ela é encantadora. Chique, mas sem terríveis facetas. Ela está num pedestal espinhoso, doloroso. Sua fronte está iluminada, ressaltando-lhe as sobrancelhas, os cílios e o delineador, todos pretos. Joan está impessoal. Está apática para com os problemas do mundo. Tudo o que ela quer é ter uma imagem de perfeição, exemplarmente servindo o peru à mesa, como uma gueixa doce e submissa. Seu colar é como uma forca, condenando-a a viver e morrer desempenhando um papel eternamente coadjuvante, à sombra de um homem, como Grace Kelly, que abandonou a carreira. Joan faz de tudo para encantar o seu homem, interpretando uma fada, uma idealizada e indefectível Glenda de O Mágico de Oz. Seu cabelo cor de cobre está discreto. Ela é uma Nefertiti, ausente de si mesma. Seus olhos são dois belos seios afiados e voluptuosos; sua boca, a vagina, o centro da vida da galáxia. Suas sobrancelhas delineadas entram em harmonia curvilínea com os traços do nariz, o qual é pequeno e belo. É claro que Joan está maravilhosa, mas tudo gira em torno da obrigação do publicitário: vender, obsessão exposta pela Pop Art. A superficialidade de Joan entra em completa harmonia com a ambição mercadológica, com a cultura de massa e com as indústrias afins. Joan está ali para vender perus, batons, laquês, joias, rímeis etc., o que for. Seu pescoço é pétreo, escondido em um ponto de sombra. Indestrutível, Joan brilha como a Marilyn Monroe de Andy Warhol, no eterno vínculo da Pop Art com o mundo idealizado do consumo de celebridades. A Pop Art traz esse mundo à tona e faz-nos refletir sobre o que adquirimos em um supermercado. Joan está à venda, em plena disposição em uma gôndola de mercado. Joan está ali como moeda de troca e, se você tiver dinheiro, fará parte desse maravilhoso mundo de faz de conta. Atrás de Joan, uma casa impecavelmente arrumada, podendo vender aspiradores de pó, flores decorativas, cortinas etc. O mundinho de Joan é perfeito e, portanto, uma falácia. Seu sorriso nada quer dizer. Ela desempenha um papel, apenas isso. É uma atriz. Não podemos vê-la dormindo com o cabelo todo desarrumado; não podemos vê-la escovando os dentes, tomando banho ou sentada no troninho do banheiro; não podemos vê-la sem maquiagem, vestindo uma camiseta de ficar em casa. Não. Só podemos ver o que não a faz humana. Joan está sendo usada para interpelar as donas de casa da América, inspirando-as a ser como a estrela. Então um sabão em pó é comprado como se fosse mágico, e como se a figura da dona de casa perfeita não fosse de mentirinha. Quem é você, além de dona de casa? Você pode ser maravilhosa como Joan – é só comprar os produtos que ela está anunciando. Se você não os comprar, ficará de fora desta festa apolínea. Joan está recebendo os seus convidados, fazendo com que estes sintam-se como reis. Rosenquist traz a estética do mundo publicitário para a Arte, pois o artista, em geral, não se realiza no ramo publicitário, logo, vemos James fazendo do limão uma limonada. A Pop Art mescla-se com o consumismo, amando-o e odiando-o. Joan busca ser extremamente glamourosa, desprezada por uma Bette Davis inteligente que não dá a mínima para os apelos da sociedade de consumo. Para Bette, o buraco é mais embaixo; para Bette, é absolutamente insuportável desempenhar um papel superficial. Joan está mentindo com todo o seu peso estelar; é uma boneca; é sobre-humana; é uma Barbie à venda em uma loja. Joan é rica, bela e feliz; é a promessa de uma sensação melhor; e é também a promessa de gordas vendas. Joan quer encantar, enfeitiçar, nunca conseguindo convencer a si mesma da própria mentira. Joan quer causar comoção e ver legiões de meninas adquirindo bonecas em lojas de brinquedos. Joan quer dinheiro, e esforça-se ao máximo para convencer de que é digna desse mesmo dinheiro. Ela está alheia à dor. É um impessoal pedaço de plástico. Não sabemos se a amamos ou a odiamos. Simplesmente não podemos passar indiferentes a ela. Essa é a função da Arte.

            Acima, President Elect, ou seja, Presidente Eleito, de 1960-61. JFK foi uma figura pop, presidente de enorme carisma. Seu assassinato foi uma comoção na América. Na obra de Rosenquist, a face do presidente em um sorriso arrebatador, um líder amado pelos americanos, com uma esposa para lá de célebre e respeitada – Jackie. Neste óleo sobre placa, uma roda de carro, talvez o carro no qual o presidente perdeu a vida em público – sangrento espetáculo midiático, formidável para a Pop Art. O carro está sobre um tapete vermelho, o qual pode significar duas coisas: 1) O status de celebridade e de vip que do qual o político gozava; 2) O sangue dele ao ser alvejado por um assassino louco. O amarelo pastel confere delicadeza ao quadro, a qual também ocorre por meio dos dedos femininos que emergem da face de Keneddy, talvez as mãos da primeira dama, ou da mãe do presidente – Freud explica. É difícil dizer o que esses dedos seguram; parecem segurar pedaços de carpete cinza, como as cores cinzentas do luto da América. Os tons de azul do quadro são do Sonho Americano, sendo este erguido como propaganda do governo Kennedy – a América adorou este. Os dentes do presidente são perfeitos, inspirando as crianças da América a ter saúde e escovar os dentes direitinho. O sorriso de JFK traz um homem maduro e, ainda, jovem. Abaixo do queixo dele, vemos uma continuidade do chão vermelho e, ao lado do paletó azul; vemos que os Kennedy são o sangue azul da América, a qual “comprou” o clã. E por que os dedos femininos são cinzentos? Trazem a crua realidade em preto-e-branco. Os pedaços de carpete são macios ao toque, trazendo todo o charme macio, sedoso e aristocrático dos Kennedy, charme muito bem incorporado por Jackie, como uma Mortícia Addams iluminada. Na aspereza do mundo e do assassinato de JFK, a primeira dama emergiu publicamente e foi a maior viúva de todos os tempos, com seus óculos escuros que falam sobre a finitude do Homem. O negror da roda do carro traz a morte, o luto. O brilho prateado da roda é uma lua que traduz a feminilidade do mito Jackie. O presidente está impecavelmente barbeado, e seus sinais de expressão faciais exprimem experiência, sabedoria. Os dedos femininos traduzem como o charme viril de Kennedy encantava as mulheres – certa vez, quando Jackie foi sozinha à Índia fazer uma visita oficial, o presidente reuniu amigos e fez uma festinha na Casa Branca cheia de meninas bonitas. Até hoje os Kennedy são associados a sedução e poder, numa família muito famosa e visada – e não foi um espetáculo midiático sexual o caso entre Bill Clinton e Monica Lewinsky? Rosenquist traz-nos um pouco de estranheza. O sorriso do líder é ensolarado, como um rei Sol. Seu carisma irradia sobre o povo americano, na promessa de uma América melhor. O carro passa rápido como o tempo, e hoje os EUA cultivam os seus próprios mitos. Entre os dedos femininos, há uma faixa multicolorida de arco íris, partindo do vermelho para o amarelo, o verde e o azul, traduzindo a alegria colorida do carisma de JFK, nas cores após uma tempestade, após uma negra tormenta, trazendo esperança ao povo. O brilho multicolorido traz a transparência cristalina da personalidade do presidente, no qual o povo confiava, elegendo-o em um sistema no auge de um paradigma – o sistema democrático.

            Acima, I Love You My Ford, ou seja, Amo-te Meu Ford, de 1961, como uma pessoa pode amar objetos de consumo – nada mais capitalista. Neste óleo sobre tela, há três partes. Na parte um, a frente de um Ford em preto-e-branco chegando à cena, impondo-se, trazendo paixão ao artista. O brasão ao centro é como uma bússola, abrindo-se agressivamente nas quatro direções. É o Norte, a referência, a base de comparação. Seu brilho metálico revela-se limpo, potente, masculino. Na parte dois, uma mulher de feições delicadas adormece, protegida e seduzida pelo carro. Na parte três, um delicioso macarrão ao molho de tomate, cujas latas estão à venda no mercado, do mesmo modo como o carro foi comprado. Estaria a mulher morta, como uma Evita embalsamada? O macarrão parece minhocas contorcendo-se. Seu vermelho é o sangue, o líquido da vida. O macarrão é o único registro colorido do quadro. Por que a mulher não tem cor? Os tons de cinza representam a infelicidade ou a sofisticação? A mulher dorme depois de comer o macarrão, digerindo-o sensualmente em seu corpo entorpecido. A mulher repousa nos confortáveis bancos do carro. O macarrão é o alimento assim como a gasolina alimenta o veículo – a glorificação mercantilista do petróleo. O Ford tenta dominar a cena, mas o macarrão não o deixa fazê-lo. Aproximar cor de fotos em preto-e-branco ajuda a “vender” o registro cromático cinzento. E por que a mulher está ensanduichada entre o carro e o macarrão? Estaria ela reprimida, dividida entre o prazer do macarrão e a racionalidade do carro? Os lábios da mulher são perfeitos, harmoniosos, assim como as linhas de design do carro. O carro chega, e sua presença é impossível de ser ignorada. Ele domina a cena como um rei. O macarrão representa o inconsciente, o prazer, o humano. O macarrão está sendo lentamente assimilado, como a “preguiçosa” Bossa Nova. O “amigo” carro é amado pelo consumidor. A mulher, em sua sedução, também é objeto de desejo, só que sexual. O macarrão é a gastronomia italiana, com um bom prato de espaguete e um vinho acompanhando, nos pequenos prazeres da vida. A mulher está inconsciente. O carro é a figura paterna, o dinheiro, a responsabilidade de levar os filhos ao colégio todas as manhãs. O interior do carro é o reinado do homem, um reino onde este homem governa plenamente, como Kennedy. O macarrão é a comidinha feita pela mãe. A mulher repousando faz o intermédio entre os dois quadros, unindo-os e separando-os, em contradição dialética. O vermelho do molho é o sangue derramado nas guerras, do modo como Rosenquist odiava-as.

            Acima, a litografia Horse Blinders, ou seja, Antolhos, de 1963. Há duas partes: uma alegre, colorida e festiva; a outra, cinzenta, triste, monótona, monocromática, sisuda e mortificada. Na parte colorida, um pincel cujas cerdas têm todas as cores do arco-íris. Ao fundo, cores semelhantes à da bandeira nacional francesa, no desejo por liberdade de pensamento, liberdade esta tolhida quando James foi preso. Saindo das cerdas do pincel, arame farpado, na dor das guerras, no sangue humano derramado em conflitos. Rosenquist quis fazer um contraste violento mas, no frigir dos ovos, ambas as partes falam de tristeza e de dor. A colorida alegria não neutraliza o luto cinzento, e o arame farpado, como uma coroa de Cristo, encarrega-se de avisar que o ser humano está o tempo todo em conflitos, seja consigo mesmo, seja em relação a outrem. James, assim como Tolkien, não tem ilusões em relação ao ser humano. A parte cinzenta avisa-nos do arame farpado, muro dolorido que separa as nações entre capitalistas e comunistas. É o Muro de Berlim, segregando irmãos. As cores tentam neutralizar a dor, mas não conseguem – só conseguem ser a promessa de um (longínquo) mundo melhor. As cores não conseguem quebrar o dia melancólico, brumoso, misterioso, depressivo. A cor vermelha é certamente o sangue bélico, desperdiçado nos conflitos. A América queria ver-se bem longe do Comunismo. Tanto o lado esquerdo quanto o direito trazem mazelas: estamos mal no Capitalismo; estamos mal no Comunismo. A guerra é impiedosa, e não poupa pessoa alguma. E por que “antolho”? Porque o cavalo que o veste fica com a visão prejudicada, subtraída, restrita, limitada. O ser humano, normalmente fútil e alienado dos problemas do mundo, gira em torno de seu próprio egoísta umbigo. O pincel é como um espanador, cuja função é purificar. Talvez um dia a visão se expanda e as cores vençam o cinzento dia. James traz-nos esperança.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

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