Trajetória brilhante. Roy Lichtenstein
nasce novaiorquino em 1923. Nos anos 1940 estuda Arte em instituições
respeitadas e, na mesma década, presta serviço militar na Europa. No fim da
década ao início da posterior, leciona na Universidade Estadual de Ohio e, em
1951, faz sua primeira exposição em Nova York.
Passa também a trabalhar como designer gráfico e industrial.
Suas obras passam a ser reinterpretações da arte americana dos anos 1920, como,
por exemplo, cenas de caubóis e índios. A partir de 1957 a 60, leciona na
Universidade Estadual de Nova York. Nos anos 1960, época de ouro da Pop Art, Roy
é seduzido pelo grafismo comercial e publicitário, o motif do movimento artístico, e passa a ser amigo de outros
grandes artistas, ficando entrosado na cena cultural. No início da referida
década, leciona na Universidade de Nova Jersey. Em 1962, 63 e 66 faz mostras, e
lhe é feita a encomenda de quadros grandes. Participa das Bienais de Veneza em
1966, 68 e 70, e o fim dos anos 1960 foram marcados por retrospectivas de
Lichtenstein nos EUA e na Europa. Nos anos 1970 e 80, Roy já está consagrado e
muito famoso. Em 1990, Lichtenstein torna-se um dos pouquíssimos artistas vivos
– três ao total – a terem uma obra leiloada por cinco milhões e meio de
dólares, um respeitável recorde, o cúmulo da ambição novaiorquina de associar
arte a dinheiro. Na mesma década, Roy recebe distinções. Falece em 1997, em
meio ao boom da tecnologia digital e da internet. Em 1999, é inaugurada a Roy Lichtenstein Foundation. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e
não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.
Acima, Explosion Number One, ou seja, Explosão
Número Um, de metal lacado, do ano de 1965. A agressividade de
uma explosão, como um popstar no topo das paradas musicais. Uma supernova em
toda sua majestade caótica. Ironicamente falando, o termo pop corn para pipoca, um
milho que explode ruidosamente na panela, um marco barulhento, o pop serve para popular e serve para explosão. A celebridade pop é autossuficiente,
e seu poder midiático espalha-se por todos os cantos do universo. É como a
ilustração explosiva na embalagem de sabão em pó OMO, destacando-se no ponto de venda, no
supermercado, o templo da cultura pop. A explosão de Roy é um ânus, um ralo, um
buraco negro que arrasta tudo e todos para si, numa fome infindável. Na obra de
Roy, há várias camadas na explosão, e tudo acontece ao mesmo tempo agora: a
explosão de popularidade, a explosão de vendas, a explosão de beleza, a explosão
midiática nos meios de comunicação de massa. Roy traduz o centro do universo,
como Maria Callas se diz na peça teatral Masterclass,
na qual tive o privilégio de ver Marília Pêra. A arrogância do monstro
midiático, como Madonna de nariz ultra em pé na capa do sucesso de vendas que
foi o álbum True Blue nos anos 1980.
Embasando, respaldando a explosão, uma tela com microfuros, sem bordas
agressivas, algo muito comum na obra de Lichtenstein, em alusão às histórias em
quadrinhos, sendo impressas com o método que, de perto, revela cada ponto
impresso de tinta no papel. Roy adora HQs. Na segunda camada da explosão, setas
mais agressivas em preto, branco e vermelho, nas cores de uma cobra coral, no
poder de um veneno que entra na mente do consumidor, o qual inocentemente
passeia com o carrinho de compras no supermercado, ou passa por uma banca de
revistas para adquirir um assunto que lhe interesse. Na terceira camada, é como
um raio de Sol, em amarelo e branco, esquentando a cena, na promessa de que um
simples sabão em pó pode vender perfeição, roupas impecáveis, saúde, plenitude.
Na quarta camada, o vermelho volta com o preto na borda, como o sangue da
guerra. As camadas finais voltam a não ter agressividade e, bem no meio, um
disforme raio de trovão, o centro indecifrável da existência. É como uma
estrela guia que levou à manjedoura de Jesus. Referência, marco de uma explosão
onipotente, o Big Bang. É o início e o fim. É o infinito, vibrando eternamente
na mente do expectador. As camadas brigam entre si, uma querendo obter mais atenção
do que a outra, numa metáfora do mundo competitivo que é o Capitalismo, no qual
a pessoa tem que ver que há muita concorrência. Será que posso fabricar um
sabão em pó que venda mais do que o OMO? A explosão é a vagina mãe, que dá à
luz o ser humano. Lichtenstein adora usar cores primárias: amarelo, vermelho,
preto e branco, num artista que não quer saber de profundidades depressivas de
tons incertos. O Capitalismo vende a cura da depressão, e essa cura é o
consumo. É como a comoção global pelo 11 de Setembro – o mundo parou para ficar
perplexo, incrédulo perante tanto horror. É como a morte de Lady Diana, um
evento que revelou a real importância da ex-princesa. O popstar é assim,
implacável. Quanto mais jogam pedras nele, mais ele cresce. É inescapável, um
gigantesco Stay Puft do filme Os
Caça-Fantasmas, trazendo instabilidade. A explosão é um artefato religioso,
querendo saber o que é Deus, e o padre desfila na missa com o artefato. Nem Roy
sabe o que a explosão quer dizer. É terrível, pois não podemos olhar
diretamente para o Sol, majestoso rei em torno do qual todo o império do
sistema solar gira, como uma Elizabeth em toda sua arrogância absolutista. É o
poder divisor de águas de um tiro de revólver, marcando um momento, como o cajado
patriarcal de Moisés dividindo o Mar Vermelho. Tudo divide-se entre antes e
depois, como a passagem de Jesus Cristo pela Terra. O postar corusca
eternamente no céu da noite, atiçando a imaginação das pessoas e inspirando as
mesmas. É como um ator vencendo um Oscar, exigindo que se curvem perante esse
ator, no sentido de que a carreira de um ator divide-se entre antes e depois de
algo emblemático, como Viggo Mortensen na trilogia O Senhor dos Anéis. É o efeito bombshell,
ou seja, granada de uma Carmen Miranda, uma Gisele, modelo cujo cabelo é
imitado por todas as mulheres ao redor do mundo, visto que a admiração traz
raiva em si: as mulheres querem arrancar, adquirir de Gisele o que esta tem de
tão sexy. É o poder de uma estrela, uma explosão. O que faz de alguém uma
estrela? Por que alguns brilham mais e outros menos? Não chegue muito perto! As
pontas agressivas da explosão podem machucar você. A estrela tem que ser
observada de longe, com respeito. A estrela explode em todas as direções, como
uma rosa dos ventos. A explosão é número um, campeã, consagrada, vitoriosa. A
explosão vende um sonho, como uma menininha que sonha em ser rainha da Festa da
Uva. É o megahit I Will Always Love You,
de Whitney Houston, num momento em que a voz tomou conta do globo. A própria
Whitney, em entrevista a Oprah Winfrey, disse que a carreira de Houston
dividiu-se entre antes e depois do megahit. A explosão traz todos os
inevitáveis problemas do sucesso, pois o Taoísmo diz que o sucesso é um problema,
pois a pessoa bem-sucedida fica acorrentada a esse momento doce de êxito. A
explosão é uma merda – desculpe-me pelo termo chulo – que se espalha por todos
os lados, e a pessoa estelar se vê refém, como, por exemplo, Madonna, que
simplesmente não pode caminhar na rua como um cidadão comum. Em entrevista e
Xuxa Meneguel, Madonna disse que fama é sinônimo de prisão. A explosão é essa
penitenciária de segurança máxima, uma Alcatraz de ouro maciço cravejada de
diamantes. O postar tem medo de tentar ser uma pessoa comum. Se por um lado o
popstar é privilegiado, como um príncipe, esse mesmo popstar é uma vítima da
sociedade de consumo. A explosão é o princípio da passividade, uma porta – passiva em espanhol – que, estando no
ponto mais baixo, puxa todos para baixo, pela simples força da gravidade. Uma
goleira sendo desvirginada por um gol do adversário. Uma virgem sendo
deflorada. A irrefreabilidade de um ícone como o próprio Lichtenstein o roy,
digo, o foi. A Pop Art fabricou popstars. Roy faz metalinguagem, pois é estrela
falando de estrela. A explosão brilha sem sofrer o efeito da gravidade que acomete
a todas as pessoas comuns. A estrela fixa-se por si só, bajulada, temida,
adorada. Não sei quem me dá mais ânsia de vômito - se é quem oferece a
bajulação ou se é quem aceita a bajulação. O mundo pop está cheio de
puxassacos, e o ego da estrela tenta ser maior do que o mundo que a venera. A
explosão é narcisista, pois transa consigo mesma, como um ator que só consegue
falar de si mesmo. É uma capa de revista vendendo orgulhos mundanos, como um
astro do futebol, claramente endeusado. Enigmática, porém, óbvia. Narciso olha
para si mesmo, acabando por afogar-se na água que lhe refletia como um espelho.
A explosão só quer saber de si mesma, e olha para as pessoas para ver se elas a
observam e a adoram de forma religiosa. E as pessoas comuns compram isso tudo,
colocando no seu carrinho de supermercado algo que, no fundo, jamais salvar-lhes-ão.
Ter popstars no mundo não é o suficiente – cada pessoa tem que saber brilhar
por si mesma. É o boom de uma bomba atômica, indiferente aos expectadores, como
uma modelo em uma passarela: todos a querem; ela, a todos não quer. Eles fingem
que são deuses; e nós fingimos que acreditamos. A explosão é uma mentira, pois
parece que tem um poder o qual, na real, não tem. Talvez isso tudo seja a
promessa de que existe um mundo melhor, e que somos todos estrelas lá. Essa é a
dignidade estelar – representar um mundo melhor. Eu respeito Gisele Bündchen,
um ser humano. A explosão é um exemplo a ser seguido, como santos em pedestais
de igrejas. O poder da consagração, da prova do brilho estelar de alguém. A
explosão é um susto, daquelas trovoadas que se revelam como uma martelada de
Thor. A explosão é uma força da natureza, nunca pedindo permissão para
acontecer. É uma porta para o infinito, o qual o ser humano não tem condições
de compreender. A explosão é a onda de um grito, uma moda avassaladora,
atingindo a todos sobre a face da Terra – quem não percebe a onda, está por
fora. Por exemplo, jeans rasgados estão na moda. A explosão é um mestre do
momento, vibrando nas mentes das pessoas. É a atemporalidade, a juventude
eterna. A explosão vende produtos. O número um é o pódio solitário no qual fica
a explosão inacessível. A explosão é um gol, em um momento de glória nacional,
num grito histérico de celebração. A explosão é a II Guerra Mundial surgindo e
tomando o mundo impiedosamente. A explosão é uma mensagem sensacionalista em um
tablóide inglês barato, só visando vender. É a efemeridade. A explosão é um
atentado terrorista, terrível. É um porco-espinho, nunca deixando que lhe
cheguem perto. Postar, digo, popstar.
Acima, M-Maybe (A Girl’s Picture), ou seja, T-Talvez (A Imagem de Uma Menina), de 1965, trabalhando com cores
primárias, como Mondrian o fazia. Para o tom da pele da menina, uma cor mista:
branco com nítidos pontos vermelhos, os quais não podem ser nitidamente vistos
de longe, dando o efeito de cor de pele. A tela revela o romance dos artistas da
Pop Art com o mundo dos quadrinhos, numa experiência que pode ser vista,
inclusive, no colorido seriado de TV dos anos 1960 de Batman, com Adam West –
cada pancada que o mocinho dava nos bandidos aparecia na tela com feições de
HQs, como Pow! ou Bang!. As escadas vermelhas no quadro de
Lichtenstein são a feminilidade, conduzindo a um destino erótico, ao útero, quase
no mesmo tom dos lábios sensuais da moça, os quais têm um brilho no lábio
inferior, na técnica da Pop Art: os pontos nessa área ficam menores, dando mais
espaço ao branco básico do papel, criando então o efeito desejado (e desejável)
de lustro. O céu ao fundo e o decote da moça são da mesma cor, ambos com a
missão de enquadrar a moça e ressaltar-lhe o azul dos olhos, que não são tão
azuis, mas azuis claros, com pontos azuis em meio ao branco básico. Ao fundo,
arranhacéus que parecem ser uma Gotham City dos quadrinhos, em preto e branco,
austeros, impávidos. Os fartos cabelos loiros da moça abocanham a cena toda e,
junto à janela ao fundo, dá um movimento de vento ou brisa em meio aos fios,
dando leveza à cena. O balão com os pensamentos do personagem são marca
registrada das HQs até hoje. A jaqueta branca, a luva branca e o branco dos
olhos iluminam o quadro, e os vidros da janela ao fundo refletem essa
claridade. A moça é bela, com feições harmônicas, e sua minimalista sobrancelha
dá limpeza à cena. Seu rosto em formato oval traz um queixo cuja sombra entra
em harmonia com a certa escuridão das referidas escadas, enchendo o quadro de
mistério – onde isto vai dar? No geral, pode-se dizer que o preto é o dono da
história, pois predomina, até no cabelo, fundindo-se com o amarelo. De tão
predominante, o preto some e dá espaço às demais cores. Todos os elementos do
quadro precisam do preto para sobreviver. Sem o preto, a definição pictórica
ficaria comprometida. E não é predominante aquele que é invisível e subestimado?
O bom artista é aquele que desaparece perante sua própria obra, como um bom
entrevistador, que some perante o entrevistado. É por isso que a Academia de
Hollywood gosta de atores que aparecem irreconhecíveis em seus papéis, como no marcante
Coringa de Heath Ledger – olha o Batman aí de novo!
Acima, os painéis de As I Opened Fire, ou seja, Enquanto Eu Abria Fogo, de 1964. As
cenas são arrebatadoras e agressivas, pois mostram o maquinário bélico, como
hélices potentes de avião, metralhadoras atirando e turbinas em fogo, e, mais
uma vez, os elementos pictóricos de sonorização, como o Bratatata! das metralhadoras, com canos fálicos, a infelicidade das
guerras. As hélices parecem estar de fato movimentando-se, tal a estética
capciosa de Lichtenstein. Abaixo das hélices, uma explosão como a que foi
analisada no início desta crônica. As munições da metralhadora parecem estar
caindo aos montes, enquanto a fumaça sai do bico das armas. E as cores básicas
– amarelo, vermelho, branco e preto – novamente dão corpo ao fogo furioso. Nos
três quadros, Roy busca transmitir o brilho das estruturas metálicas. Talvez
esses painéis tenham sido catarses influenciadas pelo modo como o artista
testemunhou (de perto) a II Grande Guerra, quando prestou serviço militar. Faxinas
da alma, as catarses são altamente positivas. O poder bélico é a potente
imaginação do artista, e Roy buscou transformar esse horror em arte, sanando a
si mesmo. Roy abraçou de corpo e alma a estética Pop Art, a qual foi uma espécie
de Renascença em Nova York. Foi
uma onda na qual os grandes mestres surfaram. Foi o mais recente grito de
renovação. O momento passou, mas o legado fica.
As intenções de um artista são muito
puras. Tudo o que ele faz é inconscientemente, como, por exemplo, quando
Madonna escreveu a canção Papa Don´t
Preach, ou seja, Papai, Não Dê Sermão:
o fonograma foi considerado um protesto contra a sociedade patriarcal machista,
enquanto a artista, por sua vez, só quis contar uma história na canção, sobre
uma adolescente que descobriu ter engravidado do namorado. A análise semiótica
busca perceber aquilo que dificilmente o próprio artista percebe em seu trabalho.
Não há ingenuidade em semiótica, e toda dissecação de uma obra de arte tem que
ser incisiva. O artista não tem condições de dissecar a própria obra. Apenas
pelo olhar frio e distanciado do analisador é que a análise pode ser feita.
Referência
bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art.
Köln: Taschen, 2007
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