quarta-feira, 10 de agosto de 2016

O Rato Roeu a Roupa de Roy

            Trajetória brilhante. Roy Lichtenstein nasce novaiorquino em 1923. Nos anos 1940 estuda Arte em instituições respeitadas e, na mesma década, presta serviço militar na Europa. No fim da década ao início da posterior, leciona na Universidade Estadual de Ohio e, em 1951, faz sua primeira exposição em Nova York. Passa também a trabalhar como designer gráfico e industrial. Suas obras passam a ser reinterpretações da arte americana dos anos 1920, como, por exemplo, cenas de caubóis e índios. A partir de 1957 a 60, leciona na Universidade Estadual de Nova York. Nos anos 1960, época de ouro da Pop Art, Roy é seduzido pelo grafismo comercial e publicitário, o motif do movimento artístico, e passa a ser amigo de outros grandes artistas, ficando entrosado na cena cultural. No início da referida década, leciona na Universidade de Nova Jersey. Em 1962, 63 e 66 faz mostras, e lhe é feita a encomenda de quadros grandes. Participa das Bienais de Veneza em 1966, 68 e 70, e o fim dos anos 1960 foram marcados por retrospectivas de Lichtenstein nos EUA e na Europa. Nos anos 1970 e 80, Roy já está consagrado e muito famoso. Em 1990, Lichtenstein torna-se um dos pouquíssimos artistas vivos – três ao total – a terem uma obra leiloada por cinco milhões e meio de dólares, um respeitável recorde, o cúmulo da ambição novaiorquina de associar arte a dinheiro. Na mesma década, Roy recebe distinções. Falece em 1997, em meio ao boom da tecnologia digital e da internet. Em 1999, é inaugurada a Roy Lichtenstein Foundation. Aviso que as análises semióticas a seguir são minhas e não do livro-base de Osterwold, minha referência bibliográfica.

            Acima, Explosion Number One, ou seja, Explosão Número Um, de metal lacado, do ano de 1965. A agressividade de uma explosão, como um popstar no topo das paradas musicais. Uma supernova em toda sua majestade caótica. Ironicamente falando, o termo pop corn para pipoca, um milho que explode ruidosamente na panela, um marco barulhento, o pop serve para popular e serve para explosão. A celebridade pop é autossuficiente, e seu poder midiático espalha-se por todos os cantos do universo. É como a ilustração explosiva na embalagem de sabão em pó OMO, destacando-se no ponto de venda, no supermercado, o templo da cultura pop. A explosão de Roy é um ânus, um ralo, um buraco negro que arrasta tudo e todos para si, numa fome infindável. Na obra de Roy, há várias camadas na explosão, e tudo acontece ao mesmo tempo agora: a explosão de popularidade, a explosão de vendas, a explosão de beleza, a explosão midiática nos meios de comunicação de massa. Roy traduz o centro do universo, como Maria Callas se diz na peça teatral Masterclass, na qual tive o privilégio de ver Marília Pêra. A arrogância do monstro midiático, como Madonna de nariz ultra em pé na capa do sucesso de vendas que foi o álbum True Blue nos anos 1980. Embasando, respaldando a explosão, uma tela com microfuros, sem bordas agressivas, algo muito comum na obra de Lichtenstein, em alusão às histórias em quadrinhos, sendo impressas com o método que, de perto, revela cada ponto impresso de tinta no papel. Roy adora HQs. Na segunda camada da explosão, setas mais agressivas em preto, branco e vermelho, nas cores de uma cobra coral, no poder de um veneno que entra na mente do consumidor, o qual inocentemente passeia com o carrinho de compras no supermercado, ou passa por uma banca de revistas para adquirir um assunto que lhe interesse. Na terceira camada, é como um raio de Sol, em amarelo e branco, esquentando a cena, na promessa de que um simples sabão em pó pode vender perfeição, roupas impecáveis, saúde, plenitude. Na quarta camada, o vermelho volta com o preto na borda, como o sangue da guerra. As camadas finais voltam a não ter agressividade e, bem no meio, um disforme raio de trovão, o centro indecifrável da existência. É como uma estrela guia que levou à manjedoura de Jesus. Referência, marco de uma explosão onipotente, o Big Bang. É o início e o fim. É o infinito, vibrando eternamente na mente do expectador. As camadas brigam entre si, uma querendo obter mais atenção do que a outra, numa metáfora do mundo competitivo que é o Capitalismo, no qual a pessoa tem que ver que há muita concorrência. Será que posso fabricar um sabão em pó que venda mais do que o OMO? A explosão é a vagina mãe, que dá à luz o ser humano. Lichtenstein adora usar cores primárias: amarelo, vermelho, preto e branco, num artista que não quer saber de profundidades depressivas de tons incertos. O Capitalismo vende a cura da depressão, e essa cura é o consumo. É como a comoção global pelo 11 de Setembro – o mundo parou para ficar perplexo, incrédulo perante tanto horror. É como a morte de Lady Diana, um evento que revelou a real importância da ex-princesa. O popstar é assim, implacável. Quanto mais jogam pedras nele, mais ele cresce. É inescapável, um gigantesco Stay Puft do filme Os Caça-Fantasmas, trazendo instabilidade. A explosão é um artefato religioso, querendo saber o que é Deus, e o padre desfila na missa com o artefato. Nem Roy sabe o que a explosão quer dizer. É terrível, pois não podemos olhar diretamente para o Sol, majestoso rei em torno do qual todo o império do sistema solar gira, como uma Elizabeth em toda sua arrogância absolutista. É o poder divisor de águas de um tiro de revólver, marcando um momento, como o cajado patriarcal de Moisés dividindo o Mar Vermelho. Tudo divide-se entre antes e depois, como a passagem de Jesus Cristo pela Terra. O postar corusca eternamente no céu da noite, atiçando a imaginação das pessoas e inspirando as mesmas. É como um ator vencendo um Oscar, exigindo que se curvem perante esse ator, no sentido de que a carreira de um ator divide-se entre antes e depois de algo emblemático, como Viggo Mortensen na trilogia O Senhor dos Anéis. É o efeito bombshell, ou seja, granada de uma Carmen Miranda, uma Gisele, modelo cujo cabelo é imitado por todas as mulheres ao redor do mundo, visto que a admiração traz raiva em si: as mulheres querem arrancar, adquirir de Gisele o que esta tem de tão sexy. É o poder de uma estrela, uma explosão. O que faz de alguém uma estrela? Por que alguns brilham mais e outros menos? Não chegue muito perto! As pontas agressivas da explosão podem machucar você. A estrela tem que ser observada de longe, com respeito. A estrela explode em todas as direções, como uma rosa dos ventos. A explosão é número um, campeã, consagrada, vitoriosa. A explosão vende um sonho, como uma menininha que sonha em ser rainha da Festa da Uva. É o megahit I Will Always Love You, de Whitney Houston, num momento em que a voz tomou conta do globo. A própria Whitney, em entrevista a Oprah Winfrey, disse que a carreira de Houston dividiu-se entre antes e depois do megahit. A explosão traz todos os inevitáveis problemas do sucesso, pois o Taoísmo diz que o sucesso é um problema, pois a pessoa bem-sucedida fica acorrentada a esse momento doce de êxito. A explosão é uma merda – desculpe-me pelo termo chulo – que se espalha por todos os lados, e a pessoa estelar se vê refém, como, por exemplo, Madonna, que simplesmente não pode caminhar na rua como um cidadão comum. Em entrevista e Xuxa Meneguel, Madonna disse que fama é sinônimo de prisão. A explosão é essa penitenciária de segurança máxima, uma Alcatraz de ouro maciço cravejada de diamantes. O postar tem medo de tentar ser uma pessoa comum. Se por um lado o popstar é privilegiado, como um príncipe, esse mesmo popstar é uma vítima da sociedade de consumo. A explosão é o princípio da passividade, uma porta – passiva em espanhol – que, estando no ponto mais baixo, puxa todos para baixo, pela simples força da gravidade. Uma goleira sendo desvirginada por um gol do adversário. Uma virgem sendo deflorada. A irrefreabilidade de um ícone como o próprio Lichtenstein o roy, digo, o foi. A Pop Art fabricou popstars. Roy faz metalinguagem, pois é estrela falando de estrela. A explosão brilha sem sofrer o efeito da gravidade que acomete a todas as pessoas comuns. A estrela fixa-se por si só, bajulada, temida, adorada. Não sei quem me dá mais ânsia de vômito - se é quem oferece a bajulação ou se é quem aceita a bajulação. O mundo pop está cheio de puxassacos, e o ego da estrela tenta ser maior do que o mundo que a venera. A explosão é narcisista, pois transa consigo mesma, como um ator que só consegue falar de si mesmo. É uma capa de revista vendendo orgulhos mundanos, como um astro do futebol, claramente endeusado. Enigmática, porém, óbvia. Narciso olha para si mesmo, acabando por afogar-se na água que lhe refletia como um espelho. A explosão só quer saber de si mesma, e olha para as pessoas para ver se elas a observam e a adoram de forma religiosa. E as pessoas comuns compram isso tudo, colocando no seu carrinho de supermercado algo que, no fundo, jamais salvar-lhes-ão. Ter popstars no mundo não é o suficiente – cada pessoa tem que saber brilhar por si mesma. É o boom de uma bomba atômica, indiferente aos expectadores, como uma modelo em uma passarela: todos a querem; ela, a todos não quer. Eles fingem que são deuses; e nós fingimos que acreditamos. A explosão é uma mentira, pois parece que tem um poder o qual, na real, não tem. Talvez isso tudo seja a promessa de que existe um mundo melhor, e que somos todos estrelas lá. Essa é a dignidade estelar – representar um mundo melhor. Eu respeito Gisele Bündchen, um ser humano. A explosão é um exemplo a ser seguido, como santos em pedestais de igrejas. O poder da consagração, da prova do brilho estelar de alguém. A explosão é um susto, daquelas trovoadas que se revelam como uma martelada de Thor. A explosão é uma força da natureza, nunca pedindo permissão para acontecer. É uma porta para o infinito, o qual o ser humano não tem condições de compreender. A explosão é a onda de um grito, uma moda avassaladora, atingindo a todos sobre a face da Terra – quem não percebe a onda, está por fora. Por exemplo, jeans rasgados estão na moda. A explosão é um mestre do momento, vibrando nas mentes das pessoas. É a atemporalidade, a juventude eterna. A explosão vende produtos. O número um é o pódio solitário no qual fica a explosão inacessível. A explosão é um gol, em um momento de glória nacional, num grito histérico de celebração. A explosão é a II Guerra Mundial surgindo e tomando o mundo impiedosamente. A explosão é uma mensagem sensacionalista em um tablóide inglês barato, só visando vender. É a efemeridade. A explosão é um atentado terrorista, terrível. É um porco-espinho, nunca deixando que lhe cheguem perto. Postar, digo, popstar.

            Acima, M-Maybe (A Girl’s Picture), ou seja, T-Talvez (A Imagem de Uma Menina), de 1965, trabalhando com cores primárias, como Mondrian o fazia. Para o tom da pele da menina, uma cor mista: branco com nítidos pontos vermelhos, os quais não podem ser nitidamente vistos de longe, dando o efeito de cor de pele. A tela revela o romance dos artistas da Pop Art com o mundo dos quadrinhos, numa experiência que pode ser vista, inclusive, no colorido seriado de TV dos anos 1960 de Batman, com Adam West – cada pancada que o mocinho dava nos bandidos aparecia na tela com feições de HQs, como Pow! ou Bang!. As escadas vermelhas no quadro de Lichtenstein são a feminilidade, conduzindo a um destino erótico, ao útero, quase no mesmo tom dos lábios sensuais da moça, os quais têm um brilho no lábio inferior, na técnica da Pop Art: os pontos nessa área ficam menores, dando mais espaço ao branco básico do papel, criando então o efeito desejado (e desejável) de lustro. O céu ao fundo e o decote da moça são da mesma cor, ambos com a missão de enquadrar a moça e ressaltar-lhe o azul dos olhos, que não são tão azuis, mas azuis claros, com pontos azuis em meio ao branco básico. Ao fundo, arranhacéus que parecem ser uma Gotham City dos quadrinhos, em preto e branco, austeros, impávidos. Os fartos cabelos loiros da moça abocanham a cena toda e, junto à janela ao fundo, dá um movimento de vento ou brisa em meio aos fios, dando leveza à cena. O balão com os pensamentos do personagem são marca registrada das HQs até hoje. A jaqueta branca, a luva branca e o branco dos olhos iluminam o quadro, e os vidros da janela ao fundo refletem essa claridade. A moça é bela, com feições harmônicas, e sua minimalista sobrancelha dá limpeza à cena. Seu rosto em formato oval traz um queixo cuja sombra entra em harmonia com a certa escuridão das referidas escadas, enchendo o quadro de mistério – onde isto vai dar? No geral, pode-se dizer que o preto é o dono da história, pois predomina, até no cabelo, fundindo-se com o amarelo. De tão predominante, o preto some e dá espaço às demais cores. Todos os elementos do quadro precisam do preto para sobreviver. Sem o preto, a definição pictórica ficaria comprometida. E não é predominante aquele que é invisível e subestimado? O bom artista é aquele que desaparece perante sua própria obra, como um bom entrevistador, que some perante o entrevistado. É por isso que a Academia de Hollywood gosta de atores que aparecem irreconhecíveis em seus papéis, como no marcante Coringa de Heath Ledger – olha o Batman aí de novo!

            Acima, os painéis de As I Opened Fire, ou seja, Enquanto Eu Abria Fogo, de 1964. As cenas são arrebatadoras e agressivas, pois mostram o maquinário bélico, como hélices potentes de avião, metralhadoras atirando e turbinas em fogo, e, mais uma vez, os elementos pictóricos de sonorização, como o Bratatata! das metralhadoras, com canos fálicos, a infelicidade das guerras. As hélices parecem estar de fato movimentando-se, tal a estética capciosa de Lichtenstein. Abaixo das hélices, uma explosão como a que foi analisada no início desta crônica. As munições da metralhadora parecem estar caindo aos montes, enquanto a fumaça sai do bico das armas. E as cores básicas – amarelo, vermelho, branco e preto – novamente dão corpo ao fogo furioso. Nos três quadros, Roy busca transmitir o brilho das estruturas metálicas. Talvez esses painéis tenham sido catarses influenciadas pelo modo como o artista testemunhou (de perto) a II Grande Guerra, quando prestou serviço militar. Faxinas da alma, as catarses são altamente positivas. O poder bélico é a potente imaginação do artista, e Roy buscou transformar esse horror em arte, sanando a si mesmo. Roy abraçou de corpo e alma a estética Pop Art, a qual foi uma espécie de Renascença em Nova York. Foi uma onda na qual os grandes mestres surfaram. Foi o mais recente grito de renovação. O momento passou, mas o legado fica.

            As intenções de um artista são muito puras. Tudo o que ele faz é inconscientemente, como, por exemplo, quando Madonna escreveu a canção Papa Don´t Preach, ou seja, Papai, Não Dê Sermão: o fonograma foi considerado um protesto contra a sociedade patriarcal machista, enquanto a artista, por sua vez, só quis contar uma história na canção, sobre uma adolescente que descobriu ter engravidado do namorado. A análise semiótica busca perceber aquilo que dificilmente o próprio artista percebe em seu trabalho. Não há ingenuidade em semiótica, e toda dissecação de uma obra de arte tem que ser incisiva. O artista não tem condições de dissecar a própria obra. Apenas pelo olhar frio e distanciado do analisador é que a análise pode ser feita.

Referência bibliográfica:
OSTERWOLD, Tilman. Pop Art. Köln: Taschen, 2007

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