quarta-feira, 12 de julho de 2017

Em Segundo Lugar




            Exatamente no momento em que eu selecionava em minha cabeça um assunto para tratar aqui no blog, estava numa fila do caixa de uma farmácia em Caxias do Sul, e num mural atrás do operador de caixa havia, dentre muitas imagens, uma imagem de Elizabeth II da Inglaterra, isto num estabelecimento comercial em pleno Brasil. Ela é uma monarca que ultrapassa fronteiras, sendo respeitada ao redor do mundo. Nesta imagem na farmácia, ela está num traje rosa, e abana sorrindo. Bisavó, Elizabeth II tem o reinado mais longevo da História da Inglaterra, numa energia que, apesar da idade, nunca deixou de exercer suas obrigações constitucionais. É uma saudável senhora. No casamento do filho Charles com Camilla Parker Bowels, o Príncipe de Gales, ao ver a mãe, deu-lhe um singelo beijo no rosto, quebrando protocolos e formalidades, pois já ouvi dizer que família são todas iguais – só muda o endereço. Uma pessoa de minha família, em recente viagem ao Reino Unido, comprou como souvenir um prato com a imagem impressa da monarca, devidamente sorrindo e coroada com joias, representando um país rico e respeitado, herdando o legado eterno da grande monarca antepassada, a lendária Elizabeth I. Bisneta da popular rainha Vitória, Elizabeth II, no decorrer de suas décadas de reinado, foi aprendendo e crescendo, desenvolvendo um estilo próprio. Líder da família mais famosa do mundo, disse, em discurso ainda jovem, que todos os cidadãos de seu país pertencem à Grande Família Imperial.

            Há muitos anos, vi um inesquecível programa de humor da TV Inglesa, e era um programa no qual bonecos faziam sátiras de grandes personalidades. Então, estava um boneco aludindo à Elizabeth II, com uma coroa de pedras preciosas e as tradicionais luvas da rainha, visto que esta senhora viveu nas décadas em que luvas eram indispensáveis a uma dama em compromissos sociais. Uma atriz imitava a voz da rainha, e era uma voz idêntica. Então estava a rainha fazendo um saque em uma agência bancária eletrônica em Londres, num caixa de autoatendimento. Ao lado do boneco da rainha, estava um boneco imitando o príncipe Charles, e a rainha disse-lhe: Olhe só, Charles, que beleza esta máquina fotográfica que encontrei. Você passa este cartão por esta fenda, pressiona alguns números, e saem fotos suas na hora! Ou seja, uma rainha absolutamente debilmental que não via que as “fotos” eram, na verdade, cédulas de dinheiro daquele país! Anos depois, em outra sátira de um artista plástico, um pouco indiscreta (diga-se de passagem), a rainha aparece sentada em um troninho, não no trono da Realeza, mas no troninho do banheiro, e esta senhora aparece com as saias arriadas, fazendo xixi e cocô, sorrindo, vestida em traje de gala e devidamente coroada. Um pouco agressivo, não? Na verdade, todos precisamos fazer cocô e xixi. A rainha, em suas várias décadas de trajetória, aprendeu a desenvolver senso de humor, pois as grandes figuras públicas não podem ter controle sobre tudo e todos, tendo que abraçar suas próprias personas públicas e entender que as sátiras são declarações de amor.

            O Marketing não é um privilégio só de plebeus. Há as famosas fotos, de décadas atrás, de Charles acompanhando os próprios filhos montados em pôneis, em imagens que repercutiram pela Mídia Inglesa e até Mundial. Nada mais natural, portanto, a monarca lançar mão de uma boa assessoria de Marketing. Há anos, a assessoria da rainha convidou jornalistas daquele país para que presenciassem um momento “íntimo” e informal da monarca: a rainha apareceu docemente colhendo flores em seu jardim e, ao final da colheita, sorriu para os fotógrafos. Claro que tudo premeditado, e a rainha deve ter sido aconselhada pela assessoria para esta senhora tomar parte em uma cena simples, feminina, como uma inocente senhora colhendo flores em seu jardim, como qualquer outra adorável senhora do Reino Unido em seu florido, feminino e frágil jardim. Em outra jogada marqueteira, a rainha, assediada por fotógrafos, previamente convidados para o acontecimento, entrou, acompanhada por outras mulheres da Realeza, em uma loja de pratos de cerâmicas, objetos de uso popular de cidadãos comuns, muito aquém das finas porcelanas com as quais a rainha está acostumada, numa medida de Marketing que buscou aproximar a monarca de seu povo, mostrando que não há algo de errado em comer em simples pratos de cerâmica. Feliz do líder que se revela com simplicidade, ignorando os abismos sociais da rígida estrutura social inglesa. Se quando desencarnamos vamos a um lugar onde somos todos príncipes herdeiros do mesmo rei, lá sobrenomes e dinastias são inúteis nessa dimensão de igualdade. Outra grande tacada de Marketing foi após o assassinato em solo inglês do jovem encanador brasileiro Jean Charles, abatido pela polícia inglesa por ter roubado um simples pacote de biscoitos. O próprio jornalista Boris Casoy disse, ao dar notícia, que o acontecimento tornara-se uma mácula na coroa de Sua Majestade. Pouco tempo depois, a rainha convida o então presidente brasileiro Lula e esposa Marisa, os quais foram recebidos em Londres em um luxuoso jantar formal, recepcionado pela rainha em pessoa. No jantar, acompanhado por jornalistas, foram divulgadas no Brasil as palavras da rainha a Lula, e a monarca disse ao presidente que era um prazer receber no Reino Unido jovens brasileiros que vão a este país para estudar e trabalhar. É claro que a rainha referiu-se, em parte, a Jean Charles, ironicamente com o mesmo nome do herdeiro do Trono da Inglaterra.

            A rainha adora filmes de James Bond, e não perde qualquer première londrina dos filmes de 007. A monarca está sempre presente das sessões de gala de exibição. James Bond é uma espécie de patrimônio cultural inglês, numa combinação de charme e agressividade. Na première do filme de Bond no qual a popstar Madonna canta a música-tema, e rainha, é claro, estava lá, só que ninguém explicou para a diva americana como é cumprimentar a monarca: a rainha estende a mão e a pessoa que a cumprimenta faz um sutil curvamento perante Sua Majestade. Madonna, que está acostumada a estender a mão para cumprimentar as pessoas, estendeu a mão à rainha, a qual também estendeu a mão! Num breve momento de tensão, Madonna cumprimentou a rainha apertando a mão desta, sem curvamento, numa gafe que ficou famosa, com um jornalista brasileiro dizendo: Não é todo o dia em que a Rainha do Pop encontra-se com a Rainha da Inglaterra.

            Discreta, Elizabeth sabe o valor da “invisibilidade” de camaleão. Em sua mente, a rainha entende que todos os cidadãos devem sentir-se iguais em dignidade, herdando valores democráticos como Igualdade, da Revolução Francesa, apesar da milenar rivalidade entre ingleses e franceses. Para a rainha, ser da Realeza é como usar um broche extremamente discreto e singelo, avisando, de forma minimalista, que se trata de um membro da Família Real Inglesa. É claro que a vida tem suas inúmeras vicissitudes, e nem sempre a rainha pode erguer a cabeça empunhando os princípios comuns ingleses de discrição, quietude e elegância. Por exemplo, as recentes imagens do neto da rainha, Harry, absolutamente nu, tapando o sexo com as mãos. Coisa de pirralho, é claro. Mas, depois disso, a rainha tomou providências para acompanhar de perto os compromissos sociais do neto rebelde. Por outro exemplo, os seios nus da então recém-casada Kate, esposa do neto William.

            Elizabeth II é um tanto incompreendida. Ela é uma doce senhora, e fim. Já chegaram a declarar que a rainha tramou o acidente automobilístico que matou Diana, pois há os que acreditavam que a ex-princesa estava grávida do famoso milionário Dodi, um muçulmano, e que a rainha não suportaria o fato de que seus netos caucasianos tivessem meios-irmãos não-caucasianos. Que exagero, pessoal. A própria Diana, após o hecatômbico divórcio, achou que a rainha estava interceptando as ligações telefônicas de Di, como se a rainha nada mais tivesse a fazer da vida. É um grande desafio ser visto com bons olhos, e ser uma pessoa pública não garante que esta seja necessariamente bem-vista.

            Certamente, o maior tributo já feito a EII é o filme A Rainha, que rendeu um merecidíssimo Oscar a Helen Mirren, a qual ironicamente já interpretou Elizabeth I na televisão. EII gostou do filme e até convidou a atriz para um chá. No filme, de início, vemos uma rainha muito segura de si, no controle de tudo, achando que pouco teria mais a aprender. Então, um abalo sísmico ocorre, enorme, descomunal – a morte de Diana. De início, a rainha recorre ao pensamento racional: se Diana divorciou-se, perdeu o título de Alteza Real; logo, não tem direito a um funeral de realeza. A opinião pública entrou em verdadeiro alvoroço, e o senso comum acaba impondo-se: mesmo tendo tecnicamente perdido o título HRH – Her Royal Highness – de jure, Diana, no coração do Povo Inglês, permanecia princesa de facto. A rainha fica bem confusa, e não sabe direito o que fazer. Numa cena, ela está sozinha numa sala, tomando um uísque para abrandar a dureza do dia. Entra em cena um papel decisivo, o então recém-empossado Primeiro Ministro Tony Blair. Tony faz a ponte entre a rainha e o povo desta, e acaba convencendo a monarca de que algo deveria ser feito, de que alguma atitude tinha que ser desencadeada pela rainha. Elizabeth II acaba curvando-se, com sabedoria, e sai vitoriosa do episódio. Vivendo e aprendendo, não importa a idade. E Diana caba tendo um funeral de realeza, difundido pelos quatro cantos do mundo, na famosa cena da rainha curvando-se perante o caixão. Não diz Tao que quem se curva, governa? Não é insuportável um líder arrogante?

            A rainha gosta de fazer uma mensagem anual de Natal para seus súditos, desde jovem até os dias presentes. A monarca foi adquirindo know-how, num complicado início de reinado, como é mostrado na recente série televisiva The Crown, ou seja, A Coroa, exibida pelo Netflix. A série, em seu início, mostra uma Elizabeth recém-casada, em uma viagem de vários meses por colônias inglesas na África. A notícia da morte de seu pai, o Rei, pega-lhe de surpresa, e a viagem por território africano tem que ser abreviada. Ao descer de luto, vestida de preto, e recolocar os pés em solo inglês, a série mostra uma menina obrigada a, imediatamente, tornar-se mulher, numa pessoa tímida que se viu obrigada a desenvolver um modo de lidar com uma mudança de vida, mudança esta tão repentina. Ainda por cima, a rainha sofre comparações com sua antecessora Elizabeth I, uma monarca decisiva no momento da Inglaterra Renascentista.

            Pertencente à geração que testemunhou a II Guerra Mundial, Elizabeth II trabalhou como mecânica durante o conflito e, na tradicional aparição dominical da Família Real aos súditos em uma sacada do Palácio de Buckingham, a jovem Elizabeth, ainda princesa, aparece com o sóbrio uniforme militar, dizendo ao povo que era a hora de deixar o glamour de lado e focar-se em questões mais importantes e imediatas, numa sobriedade que expôs a sisudez da Coroa em frente à grande, amada e transgressora popstar que foi Diana. Na Inglaterra, mulheres da aristocracia nunca devem cruzar as pernas em público e nunca devem tingir seus cabelos, regras que a rainha segue até hoje. Para esta senhora, o dever vem sempre antes do não-dever, ou seja, o “eu” vem em segundo lugar; as obrigações, em primeiro.

            Na ilustração desta postagem, a rainha em compromisso oficial com o então presidente americano Barrack Obama, sendo este uma explosão de carisma. É pesada uma coroa sobre a cabeça, numa função representativa que coloca o rosto da pessoa nas cédulas de dinheiro de um país. A rainha reina, mas não governa. Mesmo assim, existe poder na Coroa da Inglaterra. Apesar de ser o cidadão mais importante da Inglaterra, a rainha não pode votar nas Eleições Parlamentares de seu próprio país. A monarca fica numa contradição: tem poder e, ao mesmo tempo, é impotente. O jornalista Paulo Francis disse, certa vez, que, ao observar-se a função de Elizabeth II, é difícil de se imaginar função mais enfadonha.

            O equivalente latino para Elizabeth é Isabel. Portanto, pode-se tranquilamente dizer a rainha Isabel II da Inglaterra. Do mesmo modo, o equivalente espanhol é Gonzalo para o nome português Gonçalo. Há épocas atrás eu me incomodava quando alguém me chamava ou escrevia Gonzalo, mas hoje aceito ambos os nomes. Nada como a Universalidade.

Um comentário:

  1. Excelente Gonçalo, tens uma visão interessante sobre as pessoas. Continue escrevendo, pois a tua avó teria muito orgulho ao ler teu blog.

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