Quero fazer uma homenagem a este grande homem que é Fábio
Barreto, o diretor de cinema. Há anos atrás, no Rio de Janeiro, ele sofreu um
grave acidente automobilístico e entrou em coma. Fico compadecido.
Fábio legou filmes aos quais dedicou-se de corpo e alma, um
trabalhador. A família Barreto é tradicionalmente petista. O viés de esquerda
aparece claramente em dois filmes: “O Que É Isso, Companheiro?”, do irmão Bruno
Barreto, e “Lula, Filho do Brasil”, de Fábio. Como política é um assunto
delicado, as controvérsias são inevitáveis, principalmente da parte da mídia
antipetista. Fazer o quê? Os produtores Lucy e Luiz Carlos Barreto, pais dos
irmãos, são uns dos responsáveis pela megabilheteria de “Dona Flor e Seus Dois
Maridos”, de Bruno. A revista Veja, conhecida por ser um veículo anti PT, colocou e
elogiou os Barreto em várias páginas em uma edição na ocasião da aterrisagem de
“O Quatrilho” no Oscar, redimindo-se de uma amarga resenha feita na ocasião do
lançamento em Gramado meses antes. Anos depois, a mesma revista publicaria uma
matéria desprezando e espinafrando o filme sobre o líder sindicalista. Outros
ótimos filmes de Fábio foram ignorados em Hollywood. Só que
não acho justo ficarem crucificando o Fábio. Deixai-o em paz!
O desfile cênico musical da Festa da Uva de 2016 de Caxias
do Sul fez uma homenagem aos vinte anos da passagem de “O Quatrilho” por
Hollywood, com um carro alegórico enfeitado com estatuetas gigantes do prêmio
da Academia, a reprodução da capa do romance homônimo e com o próprio autor,
José Clemente Pozenato, que estava no carro, ao lado de outra pessoa muito
respeitada na comunidade, Cleodes Maria Piazza Ribeiro, autora de grande estudo
sobre a festividade caxiense. No mesmo carro, homenagem ao cartunista Carlos
Iotti, célebre criador do anti herói Radicci, cujo nome pode ser interpretado
como “raízes”. Fábio disse, em jantar em Caxias entre a indicação e a não premiação
de seu filme, que ele mesmo deve ter sido um colono italiano em outra vida, tal
a paixão deste carioca pela região serrana gaúcha. Meu vizinho e professor, o
fotógrafo Germano Schüür viajou para Los Angeles para fazer o registro
fotográfico da trupe no Oscar. Quando foi anunciado um excelente filme holandês
como vencedor da categoria de Filme Estrangeiro, Caxias ficou inconsolável: “É
marmelada!”, gritavam na cidade. O Brasil não costuma ter muita sorte no Oscar.
Fábio sentiu isso na carne. Mas, como o próprio disse, a indicação já é uma
conquista. E Fábio deveria um dia ser homenageado na Festa, pois foi um
caxiense de coração, um amado filho adotivo desta terra.
Se um dia Caxias do Sul e região tiveram um rei, este rei
foi Fábio Barreto. Houve uma época em que Fábio estalava os dedos e conseguia o que
queria em Caxias.
Precisa fazer chover em uma cena? Traga um caminhão de
bombeiros cheio d’água. Precisa reconstituir as ruas primevas de Caxias? Pegue
caminhões e mais caminhões de terra, leve-os à cidade vizinha de Antônio Prado,
que se parece com a Caxias antiga, e despeje a terra pelo chão para reproduzir
as ruas não pavimentadas da época em que se passa o filme – dizem que deu um
trabalho do cão limpar as ruas de Antônio Prado após a filmagem. Precisa de um
lugar para base de produção? Abra os Pavilhões da Festa da Uva e disponibilize
todas as casas da Réplica da Caxias Antiga, inclusive com espaço para costura
de figurinos e escritórios com telefones para o trabalho da equipe de produção.
Precisa de comida para a equipe toda no set? Traga uma empresa especializada em
servir refeições. Precisa de “N” locações para filmar? Vá até as propriedades e
peça permissão dos donos para filmar. Precisa de atores locais e (muitos)
figurantes? Acione a cidade para reunir interessados em trabalhar na película.
Precisa de hotel para essa gente toda da equipe que vem de fora da cidade?
Trate com os hotéis locais. Precisa de transporte? Descole vans e ônibus.
Precisa treinar o sotaque colono no elenco do Rio? Traga alguém de Caxias para
fazê-lo.
Fábio teve sorte: o filme foi produzido entre duas edições
da Festa da Uva. Do contrário, seria muito complicado trabalhar em meio à
tradicional festividade caxiense, pois a cidade estaria assoberbada, proibindo
a equipe de trabalhar nos Pavilhões.
Quando nos encontramos pela primeira vez, vi, de longe, um
homem altivo, e minha mãe, que me acompanhava, disse-me:
- Este é o teu diretor.
Fábio é uma pessoa muito calma e generosa. Foi um irmão
para comigo, dando-me oportunidades e respeitando-me. Mas ele também ficava
meio nervoso - quando desacatei uma ordem, ele disse-me:
- Quando falo uma coisa, você tem que obedecer – ele também
não gostou ao ver que eu cortara o cabelo poucos dias antes da filmagem. Mas
aceitou uma sugestão minha, quando sugeri trazer um cesto na cena em que ele me
dirigiu. Fábio gostava de dar boas risadas, e adorava minhas palhaçadas. É uma
pessoa que vive de coração aberto ao mundo. Rodou o globo divulgando o Brasil.
Um herói da pátria, Fábio dizia:
- O Brasil tem que exportar mais imagem, e não só importar
imagem. O Brasil é belo.
Uma pessoa já lhe deu um xixi quando o pobre Fábio a trouxe
ao set sem necessidade. Coitado! Herrar é umano.
Todas as pessoas envolvidas em “O Quatrilho” trabalharam
por amor, principalmente Fábio. Ninguém ficou rico, mas o ritmo da equipe toda
foi impressionante – éramos todos irmãos, em meio a uma riqueza espiritual. E o
elo disso tudo foi o Fábio, um senhor majestoso em sua simplicidade: tudo o que
ele queria era fazer cinema. Ele disse que, se pudesse, passaria os 365 dias de
cada ano de sua vida filmando. Um apaixonado.
Fábio sempre dizia que fazer cinema no Brasil é um trabalho
de artesão, não havendo uma estrutura industrial arrojada como em Hollywood ou
Bollywood.
Há uma passagem divertida. O set estava em silêncio, em
plena filmagem, e chegou uma pessoa da comunidade e soltou um berro, sem saber
que o set estava silenciado para filmar. Então um os assistentes de Fábio
disse:
- Quem é essa p... que está berrando? – pois sai caro
desperdiçar negativos em uma filmagem.
Ao vir para o sul e lançar o filme em 1995 (no Festival de
Cinema de Gramado e em Caxias), Fábio ainda aproveitou para filmar o comercial
da Festa da Uva de 1996, cuja proposta era, ironicamente, parecer-se com um
trailer de filme. E Fábio, um homem bondoso, fez questão de me ter participando
do VT, e impôs aos produtores a minha participação. Que querido! Até minha irmã
participou do elenco da propaganda, e Fábio a chamava de “a irmã do Gonçalo”.
Após a filmagem em 95, fui, alguns meses depois, ao Rio
visitar parentes, e encontrei com Fábio no escritório da produtora LC Barreto.
E Fábio estava bem relax, deitado em um sofá, cuidando dos arremates finais da
película.
- Você gostou da sua cena? – ele me perguntou, e eu disse
que sim.
Quando Lucy Barreto leu o romance “O Quatrilho”, disse a
Fábio:
- Este livro vai render o teu melhor filme.
E Fábio se puxou: escolheu um bom romance, contratou um bom
diretor argentino de fotografia, um bom roteirista, um bom compositor musical e
trouxe um time estelar do Rio de Janeiro. Não tinha como dar errado. A grande
homenagem do diretor à região foi usar, na voz de Caetano Veloso, a tradicional
canção “Mérica, Mérica”, símbolo da imigração italiana no RS. No cinema,
lembro-me das pessoas em Caxias cantando juntas a célebre canção. Foi um
momento em que a comunidade se viu projetada e engrandecida, como numa Festa da
Uva.
Deixe-me falar uma coisa: foi uma honra para mim ter
participado de um projeto tão grandioso como “O Quatrilho”. Eu nada sou. Devo
tudo às pessoas com as quais trabalhei e, no topo desta lista, está o Fabinho,
nosso diretor! Oxalá todas as pessoas do mundo sejam tão nobres e
empreendedoras como Fábio, um Indiana Jones aventureiro.
“Lirismo telúrico” foram as palavras de um jornalista ao
descrever “O Quatrilho”. O próprio Barretão, apelido de Luiz Carlos, disse-me
seriamente, quando estávamos numa locação rural:
- Coisa boa esse cheiro de bosta, de campo, de ar livre.
Depois de um longo dia de filmagens, Fábio deu um mergulho
em um açude, mostrando como apaixonou-se pela região, à qual voltou para filmar
“Nossa Senhora de Caravaggio” no ano de 2007.
É impressionante o poder do Fábio, um líder nato. A
comunidade regional abraçou Barreto, e todos cantaram a mesma canção. Foi um
momento de luz, de grandeza humana, harmonia completa, um pulso de valentia.
Fábio, nosso maestro, nós te amamos!
Em uma ocasião de fim de ano, mandei um fax à LC Barreto,
desejando a Fábio alegria na vida profissional e na vida pessoal. Gente fina, ele
adora incluir pessoas de sua família nos filmes que faz. E certa vez, quando
Pozenato passeava pela orla do Rio de Janeiro, encontrou-se por acaso com
Fábio, que veio em direção ao escritor gritando:
- Cara! Cara!
Certamente, uma das escolhas mais difíceis da vida de Fábio
foi ter que deletar uma das cenas finais de “O Quatrilho”, deixando um ator de
fora da edição final. A minha própria cena foi editada. É o rigor da tesoura
necessária, como na trilogia “Matrix”, na qual um personagem chamado Ghost foi
deletado do corte final, transformando-se, em amarga ironia, em um fantasma. A
trilogia “O Senhor dos Anéis” e o suspense “O Iluminado” também têm cenas
deletadas. Deve ser algo comum na sétima arte, mas que deve trazer frustração.
Quando estávamos em uma van indo para a locação, um
policial na estrada nos parou para inspeção. Então Fábio desceu da van e falou
com o guarda:
- Eu sou Fábio Barreto e estou aqui com membros do elenco,
inclusive Patrícia Pillar, para irmos ao set trabalhar – e o guarda
cumprimentou Patrícia e nos deixou seguir viagem. Fábio tem atitude, coragem.
Fábio prova ser um tipo de homem muito
destoante de um mundo tão egoísta e individualista. A imaginação de Fábio é
infindável, e sua atitude desbravadora trouxe a “O Quatrilho” uma matiz bela,
poética e sofisticada, não antes imaginada pelo povo de Caxias do Sul. Foi um
encontro de cabeças, orquestrado, moldado e esculpido pelo artesão Fábio
Barreto, um paizão. Quando estávamos em uma van para fazer a viagem de Gramado
para Caxias, antes Fábio parou para comprar várias garrafas de água mineral,
para que ninguém passasse sede. E Fábio não se esqueceu de mim na hora de me
colocar na lista de pessoas que mereciam um quarto de hotel em Gramado para o
lançamento do filme. No fim da premiere em Caxias, o público o aplaudiu de pé,
e ele acenou como um príncipe ao seu povo, um realizador.
Quando eu estava nos corredores da Rede Globo em 1995,
deparei-me com Letícia Spiller, que mais tarde trabalharia com Fábio em “A
Paixão de Jacobina”. Que ironia. Então, a sempre reservada Patrícia, que estava
comigo, disse-me:
- Pronto, estás feliz. Viste a Babalu – em menção ao nome
do célebre personagem vivido por Spiller na TV.
Em Hollywood, Fábio topou-se no toalete dos cavalheiros no
evento da Academia com Mel Gibson, que na época estava no auge, e os dois
trocaram um colóquio. O ator, naquela cerimônia do Oscar, apresentaria o prêmio
de Filme Estrangeiro.
Quando eu cheguei ao set pela primeira vez, Fábio disse-me:
- Sinta tudo à sua volta.
Quando o filme de 1995 passou por uma mostra na China, o
sensível Fábio aproveitou que estava lá para comprar porcelanas por um preço
ótimo. Fábio dizia que a
evolução de uma sociedade está nas ações de indivíduos transgressores, fazendo
alusão aos personagens centrais da trama de Pozenato. Amém, Fábio!
Meio Hitchcock, Fábio fez uma aparição discreta em “O
Quatrilho”, como um cavaleiro misterioso, e outra aparição (mais evidente, com
falas,) em “Bela Donna”.
Quando conheci o formidável maquiador Guilherme Pereira,
era o dia em que os primeiros testes de maquiagem eram feitos, e Fábio disse:
- Deixem o artista (Guilherme) criar.
Fábio é assim: uma pessoa positiva, sem preconceitos. Ele entende
o que é arte. Se eu tivesse palavras para expressar, digno Fábio, a minha
gratidão. Aprendi muito contigo! Tua passagem por minha vida foi crucial, pois
me provaste que vale a pena lutar por nossos sonhos. Fábio, um sonhador! Fábio,
um caxiense, um colono, sem medo de pegar a enxada! Um poeta visionário!
Na última vez em que o vi, apertei sua mão. Ele retribuiu.
Um cavalheiro. Um amigo para sempre. Obrigado!
Na ilustração desta
postagem, o homem em si.
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