quarta-feira, 23 de março de 2016

Simplesmente Jô


         O maior entrevistador do Oiapoque ao Chuí, Jô Soares, infelizmente, anunciou recentemente sua aposentadoria de seu célebre talk show, que começou no SBT e parou na Globo. Quando iniciou o programa Jô Soares Onze e Meia, no fim dos anos 80, em agosto de 1988, no Sistema Brasileiro de Televisão, ninguém previu que o humorista tornar-se-ia um monstro entrevistador, surpreendendo, deslumbrando e entretendo gerações. Jô tem sensibilidade, inteligência e humor, uma trinca indispensável para qualquer um que queira ser host. Jô é um anfitrião, e seu programa é uma festa. Mas a festa acabou. Snif...
            O sobrenome Soares é dispensável:
- Você viu no Jô?
- Sabe quem o Jô entrevistou?
- Ontem assisti o Jô.
Inclusive, o nome do show não deveria ser “Programa do Jô”, mas apenas “Jô”. O slogan provocante, “Não vá para a cama sem ele”, é famoso, e traduz a veia cômica do carismático astro gordinho, pois, quem tem alma de humorista, sempre vai fazer piada, faça chuva, faça Sol. Jô dizia no SBT:
- Meu programa é Jô Soares Onze e Meia, às vezes 11:45, meia-noite...
Depois de se consolidar como entrevistador, Jô tirou mais uma carta da manga: tornou-se grande escritor de ficção, mais precisamente romancista policial. O best seller de estreia “O Xangô de Baker Street” até virou filme, com participação do próprio autor no elenco. A invejável carreira literária de Jô estende-se a mais três romances de mistério e assassinatos.
Tenho uma história engraçada para contar. Há muitos anos atrás, uma parente minha, que mora no Rio há décadas, estava caminhando na rua e, apressada, quase corria. E, bem na hora de virar numa esquina, deu de cara com o Jô e os dois acabaram se batendo um contra o outro, acidentalmente, é claro. Então minha parente pediu desculpas e Jô, conhecido por sua polidez impecável, perdoou-a gentilmente. Coisas das esquinas da vida.
Jô foi também “vítima” do ao mesmo tempo famoso e infame programa “Pânico na TV”, apresentado por radialistas da rádio paulista Jovem Pan 2. Na saída de um restaurante, provavelmente em São Paulo, a equipe do Pânico viu Jô saindo do estabelecimento e Jô, ao ver que seria impiedosamente assediado pelos “malas” do Pânico, conhecido por ser um programa de humor afiadíssimo, ácido e politicamente incorretíssimo, começou a correr desesperadamente para fugir das câmeras. Em ocasião posterior, Jô, que fazia uma sessão de autógrafos em uma bookstore, foi surpreendido e assediado pelo Pânico e, finalmente, deu-lhes uma rápida entrevista. Então os impiedosos piadistas deram para Jô calçar as famosas Sandálias da Humildade do Pânico, só que em tamanho GG. Jô entrou na brincadeira, calçou-as e bateu palmas. O humor fazendo piada do humor.
Em outra ocasião, a equipe do Pânico fez uma sátira e, um ator caracterizado como Jô, entrou num drive thru de fast food e pediu diversos sanduíches, devorando-os avidamente. O próprio Jô já declarou que é compulsivo em relação a comida, revelando a razão de seu sobrepeso. Jô disse que, quando se depara com uma torta, é incapaz de comer apenas uma fatia, e come o bolo inteiro. É claro que Jô se depara com vicissitudes da obesidade mórbida e, em sua casa, usa um elevador ao invés de escadas; no seu programa de TV, para se sentar na sua cadeira, ele precisa de uma ajuda de uma pessoa para lhe empurrar a cadeira e poder fazê-lo sentar. Mas Jô Soares tem uma cabeça tão arejada e sofisticada que lida muito bem com a obesidade e os problemas decorrentes desta. É a vitória do pensamento derrotando a matéria. Jô é um intelectual, afinal; e, como tal, dispensa frivolidades.
Se eu tivesse trabalhado na equipe do programa do Jô, faria algo que existe onde é gravado o programa da entrevistadora americana Ellen Degeneres – eu abriria uma gift shop ao lado do estúdio de gravação, recebendo as pessoas que vão ver ao vivo o programa, vendendo réplicas exatas da célebre caneca que Jô usa no talk show e comercializando produtos relacionados ao Jô, como livros escritos por ele e DVDs do Viva o Gordo. Ganhar um dinheirinho, visto que os americanos são os mestres do marketing.
Jô tem uma energia muito jovem e vibrante, sendo extremamente claro no que diz, e tem muita popularidade entre os jovens, que fazem questão de prestigiá-lo indo assistir ao show ao vivo. É claro que muitas de suas entrevistas descambam para a palhaçada. Que bom! Teve uma hilária, quando Jô entrevistava um apicultor, e este levou ao programa dois chapéus apicultores de tela, que protegem a pessoa das picadas dos insetos. Então Jô sugeriu:
- Vamos colocar esses chapéus? – e o apicultor concordou. Então imagine uma entrevista em que as duas pessoas estão usando chapéus de apicultor. Impagável. É claro que esta entrevista perdeu todo o caráter erudito e informativo, virando um número de circo regido pelo formidável gordo palhaço. Afinal, rir é ou não é o melhor remédio?
Jô encerra sua respeitável carreira de entrevistador com um saldo de muitas milhares de entrevistas feitas, deixando um legado televisivo e fazendo escola para quem quiser, no Brasil, ser um entrevistador de peso, ironicamente falando. É claro que não dá para dar conta nesta postagem da quantidade de gente entrevistava pelo querido gordo. É uma herança tão rica que não dá para dimensionar.
No programa “Calada Noite”, apresentado no canal pago GNT por Sarah Oliveira, Jô revelou ser um notívago, gostando de varar a madrugada para escrever e produzir, e reclamando do barulho que a cidade faz durante o dia, quando Jô está dormindo. Um vampiro do bem.
Uma das provas de sensibilidade de Jô foi quando entrevistou Thammy Miranda, a filha homossexual da cantora Gretchen que optou ser transexual e viver como homem. Durante a entrevista inteira, Jô teve a consideração de tratar Thammy sempre no masculino, sabendo que tudo o que um transexual quer é ser respeitado no gênero o qual escolheu. Em outra entrevista, Jô conversou com um travesti e, como este começou a desmunhecar, Jô entrou no baile também “desmunhecou”. Jô tem a sabedoria de entrar no ritmo. Jô é humilde; se não o fosse, não poderia ter construído o que construiu. O bom entrevistador é aquele que deixa o entrevistado fluir; é ser invisível. Não é insuportável o entrevistador que quer aparecer mais do que o entrevistado? Há uma pessoa, cujo nome não mencionarei, que tentou carreira como no ramo de entrevistas, mas não deu muito certo. Outra grande entrevistadora do Brasil é, sem dúvidas, Marília Gabriela, sempre com perguntas inteligentes.
Quando Adriane Galisteu estava no auge de sua primeira e maravilhosa Playboy, Jô a recebeu e, no meio da entrevista, ele virou a sua mesa e jogou o móvel no chão, só para ficar mais pertinho da então estrela estreante. Humor é isso – tem que ser soda, se não, perde a graça. Por falar nisso, Jô reclamou como, numa época em que emagreceu, as pessoas disseram:
- Emagreceu, perdeu a graça! – como um rei Momo perde a graça ao ser magro.
Quando entrevistou a supermodelo Naomi Campbell, ao introduzi-la, disse, em inglês:
- Ela era minha namorada, mas me chutou!
Outro momento ótimo foi a entrevista com a cantora Deborah Blando, cantora que estourara no início dos anos 90. Jô deitou e rolou com os palavrões em inglês e português que permearam a entrevista.
Durante toda a história do programa de entrevistas, uma banda jazzística excelente musicalizou o show, tendo, ao curso de sua história, várias constituições: conforme a época, era sexteto, quarteto ou quinteto, com o sempre bem humorado Bira e o não menos palhaço Derico. Em algumas ocasiões, Jô acompanhou a banda no vocal ou na percussão.
Quando entrevistou a então adolescente Angélica, ela estava lançando uma linha de bonecas. Então Jô, que aproveitou a deixa de que o programa que ela apresentava exibia seriados japoneses de super-heróis, pegou as bonecas e brincou com elas como se fossem os personagem voadores da TV nipônica. Angélica só ria. O que mais fazer em frente a tal gênio cômico? Relaxe e gargalhe.
Articulado e polilíngue, Jô vai deixar saudades como entrevistador, e também como excelente ator de comédia. O programa humorístico da Globo, o “Viva o Gordo”, trazia vários personagens em uma galeria única de tipos. Alguns deles:
- Alvarenga, com o bordão “Eu me odeio!”, dizendo que acreditara, por exemplo, no Plano Cruzado;
- O dentista tarado que assediava as pacientes, com o bordão “Bocão!”, ao examinar as mulheres;
- Uma senhora bem velhinha que bagunçava programas de TV;
- Um frei que se sentia tentado por mulheres belas, repetindo por quatro vezes a frase “Ai, meu Deus do Céu”;
- O Jornal do Gordo, para pessoas mais ou menos surdas, no qual Jô repetia as notícias aos berros e mímicas;
- No final de cada programa, um cara que esperava ver um striptease, mas que sempre acabava frustrado;
- Dalva Mascarenhas, uma mulher de bigode;
- O governador cujo nome era Trabalho;
- O injustiçado anão Atlas, com o lema “Só porque eu sou pequenininho”;
- O paquerador Décio, que dava em cima de ex-mulheres bem na frente dos atuais maridos, com o jargão “Não se deprecie, mulher”.
A abertura célebre do programa eram montagens que mostravam Jô interagindo com personalidades como Orestes Quércia, princesa Diana, José Sarney, Mário Covas, Diego Maradona, Margaret Thatcher, Ronald Reagan, Ulysses Guimarães e Mikail Gorbachev.
Quando Jô entrevistou o ator americano Patrick Swayze, este estava divulgando um filme no qual interpretava a drag queen Vida Boeme e, com muito bom humor, Patrick citou o personagem Capitão Gay de Jô no programa humorístico de TV – foi um encontro de atores.
Em outra entrevista lá pelo ano de 1992, veio à tona o assunto moda retrô, pois, na época, estava na moda um revival da moda anos 60 e 70. E Jô disse que estas décadas foram uma época tão estilisticamente horrenda que ele tinha um macacão com um coqueiro estampado, sendo que o tronco partia de uma das pernas da calça e a copa tomava conta de todo o peitoral.
A saída de Jô da Globo para o SBT foi espinhosa. Na ocasião, a Globo estudou proibir judicialmente Jô de usar o termo “Gordo”. No SBT, o programa chamava-se “Veja o Gordo” mas, algum tempo depois, o homem tratou de virar a mesa e consolidou-se como host de programa de entrevistas. Anos depois, Jô fez as pazes com a Globo e voltou à casa original, recebendo respeito e carta branca. É uma pena que este império todo tenha chegado ao fim. Difícil encontrar um host com tanta inteligência e desenvoltura. Uma era acaba. O que será de nós, agora que não vamos mais à cama sem ele?
Jô dizia que ser brasileiro é ser um palhaço, dadas as falcatruas nos bastidores do poder. No Jornal do Gordo, quando uma notícia trazia o termo “brasileiro”, Jô colocava um nariz de palhaço. Anos mais tarde, no talk show na Globo, um grupo de pessoas estava usando narizes de palhaço, e Jô disse:
- Estão fantasiados de brasileiros!
            Só você, Jô!
Felizmente, o Youtube tem muitos vídeos de entrevistas antológicas, postadas pelos fãs desse host inesquecível. A verdade é que Jô é deliciosamente imprevisível, como todo grande gênio. Único como toda pessoa virtuosa, que ganha a vida com seu trabalho e seu dom de tocar as mentes das pessoas. Um mágico.
Até as gêmeas caxienses Fabiana Koch e Karina Koch foram entrevistadas por Jô, pois na época estourara o escândalo da rainha da Festa da Uva que deixara a própria irmã desfilar em seu lugar, um fato só descoberto um tempo depois, numa revelação da mãe das meninas.
Artistas, empresários, modelos, artistas plásticos, jornalistas, intelectuais, escritores, diretores, estilistas, economistas, políticos, ministros, celebridades, atletas... Ih, muita gente passou pelo consagrado sofá do Jô, que é uma pessoa sem preconceitos, acolhendo pessoas das mais variadas, pois o bom entrevistador sabe que cada entrevista é uma história única.
Tem outra passagem ótima, envolvendo a socialite Narcisa Tamborindeguy. Jô estava tranquilamente lendo jornal à beira da piscina do luxuoso hotel carioca Copacabana Palace. A área de serviço do prédio Chopin, na residência de Narcisa, dava de frente para a piscina do hotel. Narcisa, ao ver Jô, começou a gritar desesperadamente:
- Jô! Sou eu, Narcisa. Jô! Olha eu aqui! – e Jô, discreto, fez que não viu nem ouviu. Sem desanimar, Narcisa pegou laranjas da sua fruteira na cozinha e começou a atirar as frutas na piscina, e Jô fingindo que nada acontecia. Descontente, Narcisa, ainda aos berros, começou a atirar laranjas no próprio Jô! Tudo para chamar a atenção de um dos homens mais amáveis do Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário