quarta-feira, 2 de março de 2016

O Pecado Original de Santa Eva



Certa vez ganhei de presente um livro de fotos de Evita Perón, organizado por Felipe Pigna em uma edição bilíngue – espanhol e inglês, o que mostra o alcance mundial de Evita. Não a idealizo, mas também não a demonizo. Querendo ou não, ela marcou a História da Argentina. Era uma atriz, e a Casa Rosada foi o seu maior palco. Existe uma certa pessoa no Brasil, cujo nome não mencionarei, que teve pretensões evitísticas, relacionando-se com um político. Era claro o sonho de obter visibilidade e circular pelas mais elevadas esferas diplomáticas, tornando-se um tsunami estelar e passando a receber maravilhosas propostas de trabalho. Mas aí veio a vida e impôs as vicissitudes naturais da existência, e o sonho evitístico pereceu. Nada como os solavancos para trazer humildade ao indivíduo.
Nascida em um lar pobre, Eva Maria Duarte teve um pai que levou vida dupla: o homem tinha duas esposas e sustentava duas famílias. O famoso filme “Evita” de Alan Parker começa com a morte do patriarca infiel, com Madonna no papel título. Adolescente, Eva tem um caso com um cantor de tango, um homem casado. A menina vai para Buenos Aires cheia de sonhos, batalhando na carreira de atriz nas rádios e no cinema argentino. Eva não era exatamente a pecadora da maçã – não era prostituta, mas teve vários namorados, um de cada vez, mas numa promiscuidade condenada pela sociedade da época, e Eva era frequentemente chamada de “vagabunda” por seus oponentes políticos. No fundo, a moça sonhadora sabia que não era das melhores atrizes do mundo, e começou a se perguntar se estava perdendo tempo querendo ser uma supernova explosiva de renome mundial. Com um desses namorados, Eva adquiriu uma gravidez indesejada, e desejou fazer um aborto em uma clínica clandestina. Os métodos abortivos eram tão precários e rudes que ocasionaram o aborto, mas feriram o útero da atriz, e essas lesões internas viriam depois cobrar o seu preço: origina-se um câncer de útero em Eva, uma doença que trataria de abreviar sua vida, fazendo-a definhar e perder peso até ser derrotada pela doença. Quando morreu, foi manchete na imprensa mundial, e o cortejo fúnebre causou comoção entre multidões na capital argentina, algo muito bem retratado no filme de Parker, que é não é filme nem musical, mas uma película cantada do início ao fim.
Então, Eva conhece Perón, os dois casam-se e protagonizam a cena política. O marido é eleito presidente argentino e Evita passa a receber mais e mais atenção. Se não tivesse morrido tão cedo, Evita poderia ter sido eleita vice presidente e, quem sabe, depois, ser ela mesma presidente. Mas era muito poder para uma mulher na época. Tem uma certa mulher nos EUA pela qual torço muito!
O discurso de Evita era simples e claro – ela agia em prol do proletariado argentino, o qual chamava de seus “descamisados”, um termo usado décadas depois por um certo (e incerto) político brasileiro. Mas Evita, que foi vista como santa pelos pobres, não se portava muito como um anjo delicado. Há uma passagem muito famosa na carreira da primeira dama argentina: ela marcou uma audiência com três elegantes senhoras da aristocracia rural argentina, a classe social mais elevada da pirâmide social daquele país, uma casta que era dona de praticamente todas as terras da nação. Então, Evita agenda um encontro na Casa Rosada com essas três senhoras às oito da manhã, digamos assim. E as senhoras chegam britanicamente pontuais, lindas e perfumadas, com belos tailleurs Chanel. Às onze da manhã, Evita estava recém acordando, e sabia muito bem que a audiência estava marcada para o início da manhã. As três socialites decidiram esperar por todas aquelas horas, só que o sangue delas já estava fervendo de ódio e descontentamento. Então Evita, que era uma mulher que precisava de um bom tempo para se arrumar, desce uma majestosa escadaria na Casa Rosada minutos antes do meio dia. Então a socialite mor disse, sem usar um tom muito delicado:
- Você marcou uma audiência conosco às oito da manhã e agora é quase meio dia. Que explicação você tem para dar?
- Qual seu nome? – pergunta-lhe Evita, impávida. A socialite diz o nome e Evita diz:
- Cheira a bosta de vaca.
E as madames ficaram chocadas e ofendidas. Uma delas, para defender a amiga, diz à primeira dama:
- O que é isso? Que modos são esses?
- Qual seu nome? – novamente pergunta, claro que já sabendo muito bem o nome de cada uma delas e a fortuna de cada família, mas perguntando o nome só para humilhar e espezinhar as senhoras. Então a segunda senhora diz o nome e Evita diz:
- Mais bosta de vaca. Agora vocês ouçam muito bem o que vou dizer e levem um recado muito claro aos amigos de você da aristocracia: eu não governo para vocês; eu governo para os pobres da Argentina, as camadas sociais oprimidas por vossa classe. Por mim, a aristocracia que apodreça. E ponham-se daqui para fora antes que eu chame os guardas.
- Mas é costume na Argentina que a primeira dama da República seja presidente da instituição nacional de caridade – diz a terceira socialite.
- Só que agora o proletariado não depende mais das esmolas das elites deste país – diz Evita. - Agora o povo tem eu, Eva Perón, que os defende na Casa Rosada.
Portanto, Evita Perón cultivou inimigos e mereceu estes. Como ela era uma pessoa muito pública, sendo extremamente vista, filmada e fotografada, a magreza aguda ocasionada pelo câncer começou a ficar indisfarçável. Então, quando veio a público que ela estava com uma doença terminal, apareceram pintadas em muros de Buenos Aires as frases: “Viva o câncer!”, para se ter uma idéia de como ela era uma figura amada e odiada, ao ponto de existirem pessoas que comemoravam o seu sofrimento em meio a uma doença tão cruel. O povo a via assim, um messias crucificado, enquanto outros a viam como um potencial de ditadora, um ser sedento por poder e mais poder. Evita era como uma rígida diretora de colégio, e queria obter controle da situação, como uma dominatrix de chicote.
Madonna conquistou a confiança de Alan Parker. A popstar escreveu ao diretor uma carta de várias folhas dizendo o porquê dela interpretar o papel. Fez aulas de canto, usou lentes de contato para disfarçar os olhos azuis e colocou uma prótese dentária para ocultar a lacuna entre os dentes frontais superiores. Até que deu certo, e levou um Globo de Ouro, mas sequer foi indicada ao Oscar. De certo modo, a Academia de Hollywood não morre de amores pela cantora, no máximo convidando-a a apresentar um prêmio ou a fazer uma performance de alguma canção indicada. Do mesmo modo como a própria Evita foi esnobada por certos setores da sociedade argentina.
Na ilustração desta postagem, uma foto oficial de Evita de coque, um recurso utilizado para disfarçar as pontas ressecadas do cabelo, agredido pela obsessão de Eva Maria em ser loira. Na foto, observa-se claramente como Evita, mesmo que de modo inconsciente, queria se parecer com uma aristocrata argentina, mesmo tendo em contradição um discurso político antielite. O visual era para ganhar a confiança do povo, que a considerava uma aristocrata amiga do povo, uma exceção. Isso tudo mostra os conflitos dentro de Eva. Se esta fosse uma pessoa de personalidade conciliadora, jamais teria colecionado tantos inimigos. Ela inclusive rompeu com o Exército ao convencer o marido Perón a sair da instituição e ser um presidente civil. É esse peso nos bastidores que dava a Evita tanto poder, estando por trás do presidente e compartilhando do poder com ele. Era uma sede por influência, em um mundo machista. Terá sido Eva uma feminista?
No frigir dos ovos, Evita virou uma estrela, uma rainha. Não estourou como atriz, mas acabou sendo transformada em um símbolo, particularmente como um símbolo de toda a nação argentina. No filme de Parker, a protagonista diz como é importante se vestir de forma impecável, para encantar seus “súditos” proletários; também na película, o discurso é claro: eu, Evita, vim do povo, vim dos pobres, e, se Perón me ama, ele também ama os pobres da Argentina. Que talento. Evita organizava a ida de postos de saúde itinerantes pelo interior da Argentina, respaldando seu discurso pró povo.
Ninguém poderia prever o monstro político no qual a atrizinha de frágil aparência se tornaria, com uma oratória viril e impressionante e um carisma capaz de arrebatar numerosas plateias. Com uma cara de santa como a cara de Bruna Surfistinha, por dentro Evita era um “demônio” indomável. Após a morte de Eva, Perón nunca encontrou alguém igual a esta – a esposa dava-lhe força e apoio, uma grande aliada, sua maior amiga, formando um casal maravilha. Uma Nefertiti latinoamericana, Evita, assim como Getúlio Vargas, saiu da vida pública para entrar para a História. Até hoje o legado dessa mulher é mantido pelo Partido Peronista, e Buenos Aires trata de manter viva sua memória. O Cemitério da Recoleta, onde o corpo embalsamado de Evita jaz, é amplamente visitado por turistas. Diz a lenda que o médico responsável pelo embalsamamento de Eva era necrófilo, e que mantinha relações sexuais com o cadáver. Por consequência do processo químico, o corpo diminuiu de tamanho até ficar com as dimensões de uma boneca grande. Certa vez, quando Perón ainda era vivo, o caixão foi reaberto para uma homenagem à falecida esposa. Que lúgubre, não?
Em outro momento, Eva fez uma turnê pela Europa como uma popstar, sendo aplaudida e vaiada. É a prova de que, quem quer brilhar, fará isso de qualquer modo. Como toda unanimidade é burra, dá para entender figura tão controversa. Eva trilhou de forma muito instintiva seu caminho, mostrando talento inato na politicagem e nos rumos da vida de uma figura pública. Evita era “macho”.
Ao avanço do câncer sobre seu organismo, Evita sabia que não lhe restavam muitos anos de vida, em uma época em que a Medicina estava tão atrasada no tratamento oncológico. Exigente, há a história famosa de que Eva mandou vir da Europa, por avião ou navio, um vestido de gala vestido em um manequim, sem estar dobrado, para que não amassasse. Eva era fã de moda, como toda mulher. Em outra ocasião, ao vestir um traje de gala com muitos babados, Perón disse a ela:
- Pareces uma galinha.
Há registros de que Perón tenha tido um caso extraconjugal durante o tempo de casamento, mas não há indícios de que Eva tenha feito o mesmo.
O câncer e o aborto fizeram Evita ficar estéril, uma grande frustração para ela, pois queria dar um herdeiro a Perón, algo que lembra Henrique VIII da Inglaterra, que era fixado na idéia e na obrigação de colocar no mundo uma criança do sexo masculino. Talvez a inexistência de um filho tenha feito o proletariado achar que sua líder Eva morrera virgem, intensificando o endeusamento por parte do povo.
Como você sabe, o filme de Parker foi baseado no musical homônimo de Andrew Lloyd Webber, na Broadway. A canção “Don’t Cry For Me Argentina” é ultrafamosa, tendo sido regravada por Madonna e Sinéad O'Connor.
A Argentina tem todo um charme particular, e a figura de Evita parece ter vida eterna, recebendo diplomaticamente até hoje quem visite a nação. Marcante, morre Eva muito jovem, como uma Elis Regina, abreviada, deixando imaginar o quão longe iria se tivesse mais tempo na Terra. Um fenômeno. Incomum.
Evita tem uma frase inacreditável, enigmática e kitsch em um dos seus discursos:
- Deem-me uma lança e eu a fincarei no centro do universo! – a lança é o elemento fálico e o centro do universo é a vagina. Freud explica. Evita era homem e mulher, uma deusa sem sexo, autossuficiente em seu apelo universal, num arquétipo indecifrável. Evita é um mistério - salvadora para uns, usurpadora para outros. E ela alimentava-se disso.
Há um certo político no Brasil, cujo nome não mencionarei, que é igualmente amado e odiado. Seriam as mazelas da vida pública? Existe alguém que é amado por absolutamente todas as pessoas? Como disse o megacarismático Barack Obama:
- Um presidente tem que governar para todos – em resposta a um candidato a presidente que disse que este iria governar somente para a classe média americana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário