Certa vez ganhei de presente um livro de fotos de Evita
Perón, organizado por Felipe Pigna em uma edição bilíngue – espanhol e inglês,
o que mostra o alcance mundial de Evita. Não a idealizo, mas também não a
demonizo. Querendo ou não, ela marcou a História da Argentina. Era uma atriz, e
a Casa Rosada foi o seu maior palco. Existe uma certa pessoa no Brasil, cujo
nome não mencionarei, que teve pretensões evitísticas, relacionando-se com um
político. Era claro o sonho de obter visibilidade e circular pelas mais
elevadas esferas diplomáticas, tornando-se um tsunami estelar e passando a
receber maravilhosas propostas de trabalho. Mas aí veio a vida e impôs as
vicissitudes naturais da existência, e o sonho evitístico pereceu. Nada como os
solavancos para trazer humildade ao indivíduo.
Nascida em um lar pobre, Eva Maria Duarte teve um pai que
levou vida dupla: o homem tinha duas esposas e sustentava duas famílias. O
famoso filme “Evita” de Alan Parker começa com a morte do patriarca infiel, com
Madonna no papel título. Adolescente, Eva tem um caso com um cantor de tango,
um homem casado. A menina vai para Buenos Aires cheia de sonhos, batalhando na
carreira de atriz nas rádios e no cinema argentino. Eva não era exatamente a
pecadora da maçã – não era prostituta, mas teve vários namorados, um de cada
vez, mas numa promiscuidade condenada pela sociedade da época, e Eva era frequentemente
chamada de “vagabunda” por seus oponentes políticos. No fundo, a moça sonhadora
sabia que não era das melhores atrizes do mundo, e começou a se perguntar se
estava perdendo tempo querendo ser uma supernova explosiva de renome mundial.
Com um desses namorados, Eva adquiriu uma gravidez indesejada, e desejou fazer
um aborto em uma clínica clandestina. Os métodos abortivos eram tão precários e
rudes que ocasionaram o aborto, mas feriram o útero da atriz, e essas lesões
internas viriam depois cobrar o seu preço: origina-se um câncer de útero em
Eva, uma doença que trataria de abreviar sua vida, fazendo-a definhar e perder
peso até ser derrotada pela doença. Quando morreu, foi manchete na imprensa
mundial, e o cortejo fúnebre causou comoção entre multidões na capital
argentina, algo muito bem retratado no filme de Parker, que é não é filme nem
musical, mas uma película cantada do início ao fim.
Então, Eva conhece Perón, os dois casam-se e protagonizam a
cena política. O marido é eleito presidente argentino e Evita passa a receber
mais e mais atenção. Se não tivesse morrido tão cedo, Evita poderia ter sido
eleita vice presidente e, quem sabe, depois, ser ela mesma presidente. Mas era
muito poder para uma mulher na época. Tem uma certa mulher nos EUA pela qual
torço muito!
O discurso de Evita era simples e claro – ela agia em prol
do proletariado argentino, o qual chamava de seus “descamisados”, um termo
usado décadas depois por um certo (e incerto) político brasileiro. Mas Evita,
que foi vista como santa pelos pobres, não se portava muito como um anjo delicado.
Há uma passagem muito famosa na carreira da primeira dama argentina: ela marcou
uma audiência com três elegantes senhoras da aristocracia rural argentina, a
classe social mais elevada da pirâmide social daquele país, uma casta que era
dona de praticamente todas as terras da nação. Então, Evita agenda um encontro
na Casa Rosada com essas três senhoras às oito da manhã, digamos assim. E as
senhoras chegam britanicamente pontuais, lindas e perfumadas, com belos
tailleurs Chanel. Às onze da manhã, Evita estava recém acordando, e sabia muito
bem que a audiência estava marcada para o início da manhã. As três socialites
decidiram esperar por todas aquelas horas, só que o sangue delas já estava
fervendo de ódio e descontentamento. Então Evita, que era uma mulher que
precisava de um bom tempo para se arrumar, desce uma majestosa escadaria na
Casa Rosada minutos antes do meio dia. Então a socialite mor disse, sem usar um
tom muito delicado:
- Você marcou uma audiência conosco às oito da manhã e
agora é quase meio dia. Que explicação você tem para dar?
- Qual seu nome? – pergunta-lhe Evita, impávida. A
socialite diz o nome e Evita diz:
- Cheira a bosta de vaca.
E as madames ficaram chocadas e ofendidas. Uma delas, para
defender a amiga, diz à primeira dama:
- O que é isso? Que modos são esses?
- Qual seu nome? – novamente pergunta, claro que já sabendo
muito bem o nome de cada uma delas e a fortuna de cada família, mas perguntando
o nome só para humilhar e espezinhar as senhoras. Então a segunda senhora diz o
nome e Evita diz:
- Mais bosta de vaca. Agora vocês ouçam muito bem o que vou
dizer e levem um recado muito claro aos amigos de você da aristocracia: eu não
governo para vocês; eu governo para os pobres da Argentina, as camadas sociais
oprimidas por vossa classe. Por mim, a aristocracia que apodreça. E ponham-se
daqui para fora antes que eu chame os guardas.
- Mas é costume na Argentina que a primeira dama da
República seja presidente da instituição nacional de caridade – diz a terceira
socialite.
- Só que agora o proletariado não depende mais das esmolas
das elites deste país – diz Evita. - Agora o povo tem eu, Eva Perón, que os
defende na Casa Rosada.
Portanto, Evita Perón cultivou inimigos e mereceu estes.
Como ela era uma pessoa muito pública, sendo extremamente vista, filmada e
fotografada, a magreza aguda ocasionada pelo câncer começou a ficar
indisfarçável. Então, quando veio a público que ela estava com uma doença
terminal, apareceram pintadas em muros de Buenos Aires as frases: “Viva o
câncer!”, para se ter uma idéia de como ela era uma figura amada e odiada, ao
ponto de existirem pessoas que comemoravam o seu sofrimento em meio a uma
doença tão cruel. O povo a via assim, um messias crucificado, enquanto outros a
viam como um potencial de ditadora, um ser sedento por poder e mais poder.
Evita era como uma rígida diretora de colégio, e queria obter controle da
situação, como uma dominatrix de chicote.
Madonna conquistou a confiança de Alan Parker. A popstar escreveu ao diretor uma carta de
várias folhas dizendo o porquê dela interpretar o papel. Fez aulas de canto,
usou lentes de contato para disfarçar os olhos azuis e colocou uma prótese
dentária para ocultar a lacuna entre os dentes frontais superiores. Até que deu
certo, e levou um Globo de Ouro, mas sequer foi indicada ao Oscar. De certo
modo, a Academia de Hollywood não morre de amores pela cantora, no máximo
convidando-a a apresentar um prêmio ou a fazer uma performance de alguma canção
indicada. Do mesmo modo como a própria Evita foi esnobada por certos setores da
sociedade argentina.
Na ilustração desta
postagem, uma foto oficial de Evita de coque, um recurso utilizado para
disfarçar as pontas ressecadas do cabelo, agredido pela obsessão de Eva Maria
em ser loira. Na foto, observa-se claramente como Evita, mesmo que de modo
inconsciente, queria se parecer com uma aristocrata argentina, mesmo tendo em
contradição um discurso político antielite. O visual era para ganhar a
confiança do povo, que a considerava uma aristocrata amiga do povo, uma exceção.
Isso tudo mostra os conflitos dentro de Eva. Se esta fosse uma pessoa de
personalidade conciliadora, jamais teria colecionado tantos inimigos. Ela
inclusive rompeu com o Exército ao convencer o marido Perón a sair da
instituição e ser um presidente civil. É esse peso nos bastidores que dava a
Evita tanto poder, estando por trás do presidente e compartilhando do poder com
ele. Era uma sede por influência, em um mundo machista. Terá sido Eva uma
feminista?
No frigir dos ovos, Evita virou uma estrela, uma rainha.
Não estourou como atriz, mas acabou sendo transformada em um símbolo,
particularmente como um símbolo de toda a nação argentina. No filme de Parker,
a protagonista diz como é importante se vestir de forma impecável, para encantar
seus “súditos” proletários; também na película, o discurso é claro: eu, Evita, vim do povo, vim dos pobres, e,
se Perón me ama, ele também ama os pobres da Argentina. Que talento. Evita
organizava a ida de postos de saúde itinerantes pelo interior da Argentina,
respaldando seu discurso pró povo.
Ninguém poderia prever o monstro político no qual a atrizinha
de frágil aparência se tornaria, com uma oratória viril e impressionante e um
carisma capaz de arrebatar numerosas plateias. Com uma cara de santa como a
cara de Bruna Surfistinha, por dentro Evita era um “demônio” indomável. Após a
morte de Eva, Perón nunca encontrou alguém igual a esta – a esposa dava-lhe
força e apoio, uma grande aliada, sua maior amiga, formando um casal maravilha.
Uma Nefertiti latinoamericana, Evita, assim como Getúlio Vargas, saiu da vida
pública para entrar para a História. Até hoje o legado dessa mulher é mantido
pelo Partido Peronista, e Buenos Aires trata de manter viva sua memória. O
Cemitério da Recoleta, onde o corpo embalsamado de Evita jaz, é amplamente
visitado por turistas. Diz a lenda que o médico responsável pelo embalsamamento
de Eva era necrófilo, e que mantinha relações sexuais com o cadáver. Por
consequência do processo químico, o corpo diminuiu de tamanho até ficar com as
dimensões de uma boneca grande. Certa vez, quando Perón ainda era vivo, o
caixão foi reaberto para uma homenagem à falecida esposa. Que lúgubre, não?
Em outro momento, Eva fez uma turnê pela Europa como uma popstar, sendo aplaudida e vaiada. É a
prova de que, quem quer brilhar, fará isso de qualquer modo. Como toda
unanimidade é burra, dá para entender figura tão controversa. Eva trilhou de
forma muito instintiva seu caminho, mostrando talento inato na politicagem e
nos rumos da vida de uma figura pública. Evita era “macho”.
Ao avanço do câncer sobre seu organismo, Evita sabia que
não lhe restavam muitos anos de vida, em uma época em que a Medicina estava tão
atrasada no tratamento oncológico. Exigente, há a história famosa de que Eva mandou
vir da Europa, por avião ou navio, um vestido de gala vestido em um manequim,
sem estar dobrado, para que não amassasse. Eva era fã de moda, como toda mulher.
Em outra ocasião, ao vestir um traje de gala com muitos babados, Perón disse a
ela:
- Pareces uma galinha.
Há registros de que Perón tenha tido um caso extraconjugal
durante o tempo de casamento, mas não há indícios de que Eva tenha feito o
mesmo.
O câncer e o aborto fizeram Evita ficar estéril, uma grande
frustração para ela, pois queria dar um herdeiro a Perón, algo que lembra
Henrique VIII da Inglaterra, que era fixado na idéia e na obrigação de colocar
no mundo uma criança do sexo masculino. Talvez a inexistência de um filho tenha
feito o proletariado achar que sua líder Eva morrera virgem, intensificando o
endeusamento por parte do povo.
Como você sabe, o filme de Parker foi baseado no musical
homônimo de Andrew Lloyd Webber, na Broadway. A canção “Don’t Cry For Me
Argentina” é ultrafamosa, tendo sido regravada por Madonna e Sinéad O'Connor.
A Argentina tem todo um charme particular, e a figura de
Evita parece ter vida eterna, recebendo diplomaticamente até hoje quem visite a
nação. Marcante, morre Eva muito jovem, como uma Elis Regina, abreviada, deixando
imaginar o quão longe iria se tivesse mais tempo na Terra. Um fenômeno.
Incomum.
Evita tem uma frase inacreditável, enigmática e kitsch em
um dos seus discursos:
- Deem-me uma lança e eu a fincarei no centro do universo!
– a lança é o elemento fálico e o centro do universo é a vagina. Freud explica.
Evita era homem e mulher, uma deusa sem sexo, autossuficiente em seu apelo
universal, num arquétipo indecifrável. Evita é um mistério - salvadora para
uns, usurpadora para outros. E ela alimentava-se disso.
Há um certo político no Brasil, cujo nome não mencionarei,
que é igualmente amado e odiado. Seriam as mazelas da vida pública? Existe
alguém que é amado por absolutamente todas as pessoas? Como disse o
megacarismático Barack Obama:
- Um presidente tem que governar para todos – em resposta a
um candidato a presidente que disse que este iria governar somente para a
classe média americana.
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