Eu estava em
Nova York em fevereiro de 1998 e entrei em uma livraria
bonita. Já era noite, e o vento frio cortante soprava na ilha de Manhattan, um
lugar que respira arte e cultura, e também dinheiro para bancar essa arte toda.
A Big Apple brilhava com suas luzes artificiais, e o incessante vaivém de
novaiorquinos e carros assinalava o fim de mais uma jornada em uma vibrante
metrópole. Vislumbrei os livros a venda e deparei-me com um que tinha na capa
um lindo desenho oriental. Confesso que, de início, fui frívolo; comprei o
livro com intenções decorativas, sem me importar com o conteúdo das letras
dentro dele. Meses depois, já em casa, na minha querida e saudosa Porto Alegre,
folheei e vi um texto em inglês, traduzindo uma doutrina que, no frigir dos
ovos, mudou minha vida. A frase inicial – “O Tao sobre o qual pode-se falar não
é o verdadeiro Tao” – já começa como um enigma, uma fina ironia arrebatadora.
Na verdade, esse livro sagrado é imune a sociopatas arrogantes e insensíveis –
é um texto que só pode ser compreendido de forma instintiva. Como o sociopata
não tem sensibilidade nem humanidade, o Tao nada quer dizer para esse sociopata
parasita. A própria construção do texto foi intuitiva, creditada a um homem
chinês chamado Lao Tsé, mais de um milênio antes de Cristo. Como comprei o
texto traduzido em inglês, a própria tradução teve que ser feita de forma
intuitiva, e merece ainda mais intuição na hora de ser entendido em português. Mas Tao
ultrapassa idiomas e nacionalidades.
Na minha faculdade, cursei a cadeira de Filosofia, que, na
verdade, deveria chamar-se “Introdução à Filosofia Ocidental”, visto que os
assuntos da aula não contemplavam todo um ramo oriental de filosofia,
incluindo-se aí o taoismo e o budismo. A minha professora revelou-se
particularmente exigente – foi a única cadeira na qual quase fui reprovado,
passando com nota mínima para a aprovação. Tal dureza de experiência me tornou
mais tarde muito grato a essa professora durona. Ela dividiu a classe em grupos
e deu para cada um deles o nome de um filósofo ocidental – o meu grupo ficou
com Santo Agostinho. Só anos depois fui entender completamente o pensamento do
santo e, na prova de final de semestre, até hoje acho um milagre eu ter
passado! Na prova, eu me vi em um beco sem saída, perdido no labirinto do
Minotauro e pronto para ser devorado pelo mesmo. Então comecei a escrever sobre
Tao que, na prática, é Deus. É próprio do ser humano crer em uma inteligência
suprema, superior e perfeita, logo, a filosofia é algo bem humano. Ao me
entregar a prova corrigida, a professora me escreveu: “Não sei o que quiseste
dizer com essas palavras”. E a profe linha dura tornou-se uma amiga. Sou muito
grato a experiências que nos fazem crescer. Essa professora filósofa queria que
os alunos traduzissem, em suas próprias palavras, o pensamento de cada filósofo
estudado – isso é a simplicidade da desconstrução. Simplifique. Atenha-se ao
essencial, ao indecifrável e indefinível Tao, pois a riqueza Dele está em sua própria
inesgotável e estranha indefinição – não tenha medo de ser estranho.
O tripé básico taoista é: humildade, compaixão e moderação.
Ser humilde é absolutamente inviável para um sociopata, que ri como um idiota
ao ver alguém falando sobre ser humilde, sobre um ser humano admitindo que não
é Deus, pois o sociopata, no alto de sua antissociabilidade, acha que é Deus e
que pode brincar com a vida das pessoas. O conceito de compaixão vai de encontro
direto com Jesus Cristo – colocar-se no lugar do outro, do teu irmão, teu
igual. Engatado nisso vem a simplicidade: todos somos da mesma família. E a
noção de moderação é vital, pois qualquer excesso é pernicioso. Por exemplo, a
religiosidade: o fanatismo é claramente uma desvirtude, pois não aceita as
inevitáveis diferenças, pois, se cada um de nós é único, somos,
inevitavelmente, diferentes, distintos. Moderar, ou “pegar leve”, como diz a
gíria, estende-se a tudo: é a sabedoria de Tao.
Mas o que é Tao, afinal? É o Papai do Céu, só que chamado
de outro nome. A palavra original significa caminho, estilo, modo, uma via
ampla pela qual flui a vida. Disse Jesus:
- Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Lao diz:
- Eu não sei o nome Dele; então, chamo-o de Tao.
A verdade só pode ocorrer quando há um só universo, um só
Tao. O que é a mentira? É a construção de uma realidade paralela, falsa,
enganosa. Um só caminho, uma só fé. Como diz a rainha Elizabeth no início do
filme homônimo de Shekhar Kapur:
- Meus senhores, todos acreditamos em Deus.
Requer humildade admitir que não sou Deus – sou filho Dele,
um dos filhos Dele, em meio a uma infinidade de irmãos pois, como diz o
Espiritismo, Deus está sempre criando. Tao é uma vida produtiva, cheia de
significado e empolgação. O sociopata é infeliz porque não se vê cercado de
irmãos, de amigos. E Tao é isso, um amigo. Não é dito que a arrogância precede
a queda? Se não queres cair, baixa a crista. Comporte-se. Não fique se
exibindo. Ninguém respeita em segredo o exibicionista, o ostentador. E não é
essencial o respeito de irmão para irmão?
Por alguns anos trabalhei em uma agência de propaganda em Porto Alegre, e teve
lá uma pessoa que me ensinou muito. Ela dizia que é preciso ter discrição, e
que deveria escolher, na hora de desenhar anúncios, uma letra sem serifa, ou
seja, sem frescuras, sucinta como uma fonte Arial, por exemplo. E como esta
pessoa estava certa! Ela também me dizia que, para criar, eu tinha que ser
humilde e, antes de criar, buscar referências, pois ninguém cria do nada. Realmente,
esta é a técnica de criação publicitária. Por exemplo, se tenho que desenhar um
anúncio para uma revendedora de carros, tenho que buscar inspiração no que está
sendo feito no mundo em matéria de anúncios de carros e revendedoras. Sou uma
besta; não sei tudo. Mea culpa, mea máxima culpa. Essa pessoa me dizia também:
- Gonçalo, cuidado para não te tornares uma coisa que é
insuportável numa agência de propaganda: as estrelinhas, ou seja, pessoas
arrogantes que se acham verdadeiros gênios insuperáveis e veneráveis.
Não é insuportável ter que lidar com egos gigantescos e
vaidades egoístas? E não é maravilhoso deparar-se com gente pés no chão,
humilde, que busca referências antes de criar algo?
Certa vez, tive um ótimo professor que dizia:
- Os pequenos obedecem os grandes.
O que quer dizer essa implicação hierárquica? Se você
quiser ser grande, você tem que, antes de tudo, admitir que é pequeno. Isso é
humildade taoista, que ensina que, para reinar, você tem que se curvar. Isso é
o discernimento de Tao, que diz:
- Forte é fraco; fraco é forte.
O que essa “loucura” quer dizer? É esse o “nó”, no bom
sentido, que Tao fez na minha cabeça. Aquele que se curva, não é arrancado pelo
vento. A planta forte tem raízes profundas e resiste ao vento. É claro que o
livro de Tao é cheio de metáforas, as quais não devem ser levadas ao pé da
letra. Tao prega o vazio: o que faz um copo ser útil? É exatamente o seu vazio
que o faz útil ao mundo. Por que uma janela é útil? Porque ela é vazia,
invisível e, assim, cumpre sua função de mostrar as vistas. Se a janela
bloqueasse a visão, não seria janela. O que significa ser vazio? Significa ser
útil ao mundo, servindo-o. Curva-te e reinarás. É a humildade cristã,
franciscana. Ninguém consegue balear a água ou o ar. Seja como ar, que não é
visto, nem cheirado nem degustado, mas é essencial e indestrutível. Deus é
assim: é uma via vazia pela qual o mundo trafega. É claro que, nesta pequena
postagem neste mesmo blog, fica difícil resumir todas as lições sábias de Tao.
Por isso, recomendo que, se você se interessou, busque pelo livro, o qual,
muito provavelmente, deve estar à disposição na internet e, o melhor, em
português.
É claro que ter um líder humilde é bom, mas não é o
suficiente: cada pessoa tem que aprender por si a simplicidade de Tao e, desse
modo, ser alguém simples, autodidata. Estamos encarnados para isso – para
evoluirmos e tornarmo-nos mais simples, mais atentos ao básico. Por que o Papa
Francisco está se tornando um fenômeno de popularidade? Porque ele segue o Tao.
O egocentrismo tira o vazio do copo e o faz inútil. Esvazie-se dessas vaidades
mundanas e venha para a água pura e limpa. O que é suave e liquidiscente supera
o que é duro e inflexível. Seja flexível. Jogue o ego fora. Seja invisível como
o vazio de uma janela e seja um canal que conecta as pessoas umas às outras.
Carisma é isso; é unir as pessoas em torno de algo. E, juntas em torno de um
mesmo líder, vivem em harmonia e paz intensas, confiando nessa liderança.
Confesso que não é fácil entender Tao de uma hora para a
outra, mas vale o esforço. Tao vai matando os preconceitos e mostrando que,
entra milênio e sai milênio, o ser humano continua o mesmo. É preciso abrir a
própria mente para deixar Tao entrar. E Ele entra silenciosamente, invisível.
Inflexíel é fraco e flexível é forte. Curva-te! Seja modesto. Você não é o
centro do universo. Tao é. Por quê? Porque ele é infinitamente humilde, pés no
chão. Tao nunca vai deixar de ser vazio e útil. Tao está sempre criando, uma
fonte da qual tudo jorra. É uma cornucópia que nunca seca. Sinta a água fluir,
sempre adaptando-se e curvando-se. Por que o camaleão sobrevive? Porque ele
fica invisível, adaptando-se a tudo ao seu redor. Seja camuflado e
sobreviverás. Há muito falatório e barulho por aí. É bem melhor ficar quieto,
pois a pessoa sábia, que segue Tao, quer paz e quietude; quer harmonia. E, quem
quer a paz, serve ao mundo. A raiva é menor do que a paz. Não tenha raiva,
pois, quem a tem, sofre. E sofrimento não é Tao. Um sábio até pode morar em um
palácio de ouro maciço cravejado de diamantes, mas o sábio não dá bola para
isso, pois ele sabe que os campos e as florestas vestem roupas maravilhosas,
muito mais majestosas do que qualquer construção feita pelo Homem.
Tao valoriza o que é natural. Quando algo precisa acontecer
na vida de alguém, acontece naturalmente, com gentil fluidez. Imperceptível,
Tao é percebido.
Há meses atrás, dei-me ao trabalho e ao desafio de traduzir
o Tao para crianças entenderem. É uma tarefa árdua, pois as crianças têm
dificuldade em entender metáforas adultas. Tao é bem abstrato, e as abstrações
têm que ser entendidas de forma emocional. E, nas traduções e adaptações, muito
pode ser perdido. Eu busquei termos e expressões que pudessem ser compreendidas
pela criança, mas não dá. É muito complexo. Como, por exemplo, expressar para
uma criança o que é ditadura e o que são opressão e terror? Como explicar o que
é ser como água, sem cheiro, cor e gosto? Eu até tentei substituir o termo
“Tao” por um termo mais acessível. É uma espécie de ensino religioso, universal.
O Tao de Lao Tsé é cheio de sabedoria, pois convida a
contemplar o mundo de forma passiva. Quando você precisa ter uma atitude mais
ativa, apenas faça o que é estritamente necessário. É o minimalismo de Tao,
oriental, numa pureza só entendida por quem gosta de ser simples. Por exemplo:
você está na estrada e se depara com vários anúncios em outdoors. Então há
os painéis que trazem muitas informações e imagens e há os painéis mais
simples, sucintos e essenciais. Os painéis simples são muito melhores e mais
poderosos, e sua mensagem simples é absorvida e compreendida; os painéis com
mais sobrecarga de informação não são compreendidos e são ignorados. Tao é
isso: atenha-se ao essencial. Excesso é sujeira; minimalismo é limpo. Seja
limpo! Limpe o mundo! O outdoor simples é “preguiçoso” – só traz o
indispensável. A languidez de Tao revela-se então, como água jorra em sensual
languidez, como uma pequena fonte que vi em uma loja de artigos chineses em
Nova York, onde adquiri um par de dragões de porcelana.
Tao é contra os excessos de quaisquer ordens. Qualquer
coisa em excesso é prejudicial. Relaxe e deixe Tao agir. Uma das metáforas de
Tao é um rio que flui e desce até a foz. Por que a foz é tão poderosa e atrai o
rio? Porque a foz se coloca em último lugar, na região inferior. Tao sempre se
coloca por último, com modéstia, logo, tudo vai em direção a Ele. Compreender
Tao exige que o leitor abra sua própria mente para os conceitos filosofais. Tao
é pura filosofia, só que oriental. E não é um livro extremamente extenso. É
sucinto e clean – sequer tem cem capítulos.
A minha experiência em Propaganda me ensinou que um anúncio
forte é um anúncio simples. E isso se aplica a tudo. Um dos anúncios mais
célebres da propaganda mundial é o deu um carro, cujo slogan era “Think small”,
ou seja, pense pequeno. O anúncio era nada mais do que o carro ilustrado, de
tamanho reduzido, ao centro da página. Por que é uma peça publicitária tão
forte? Porque é simples.
O que significa o termo “frescura”? Significa o desnecessário,
sujeira que, como sujeira, é dispensável e digna de ser eliminada em uma boa
limpeza. Aquilo que brilha é aquilo que é limpo, básico. A simplicidade salta
aos olhos, conquistando a fé das pessoas. O que é mais atraente: uma casa
absolutamente cheia e abarrotada de uma infinidade de enfeites, quadros,
cortinas, tapetes, enfeites e bibelôs ou uma casa na qual só existe o
essencial? Tao é riqueza que vai contra o acúmulo. O invisível entra e preenche
a vida. Entrai, Tao, o perfumado e limpo!
Tao é um assunto inesgotável. Na ilustração desta postagem, o ultrafamoso símbolo do Yin e Yang
que, misturando-se um com o outro, formam Tao, o único, o uno, o eterno.
Masculino e feminino são opostos da mesma corda; passado e futuro são opostos
da mesma corda. O universo é um só. Você é um só. Você é único, indivisível e
eterno - são as três leis espíritas. As guerras e as vaidades humanas perecem,
apodrecem. Tao, desprovido de raiva, dura para sempre. Ele é clareza, enquanto
a guerra é confusão, escuridão. Deixe a luz e o ar puro entrar na sua casa.
A verdade é que passaremos a eternidade inteira tentando
decodificar Tao, e isso é um bom período de tempo, não? Tao é o nada e, ao
mesmo tempo, tudo. Sem face, sem cor, sem forma. Sempre vivendo.
E Lao avisa:
- Poucos, muito poucos entendem o Tao; é o princípio de
passividade.
Mortifique-se de ilusões e sinais auspiciosos. Dispa-se de
expectativas, pois, sem expectativas, não há frustração. Tao vê tudo sem
expectativas. Faça uso da razão – isso é Espiritismo. Quando há um só Deus, há
liberdade, pois o universo é uma continuidade de si mesmo. Os submundos, os
subuniversos, as realidades paralelas são prejudiciais porque aprisionam a
mente da pessoa que por eles trafega. E sentir-se deprimido, perdido e preso
não é Tao.
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