quarta-feira, 28 de março de 2018

Vitória de Vincent



É com muito orgulho que informo que esta é a centésima postagem semanal no meu blog – o tempo passa, e rápido. Dono de uma história de vida trágica, Vincent van Gogh só foi reconhecido postumamente, tornado-se um nome altamente célebre no Mundo da Arte, marcando o fim do Século XIX na Europa. Os textos e análises semióticas a seguir são inteiramente meus.


Acima, A Casa Amarela, 1888. Os traços incertos de van Gogh, nas naturais incertezas espirituais do Ser Humano. Temos uma rua plácida, com construções acolhedoras. É o desejo de estar em casa, acolhido, confortável. As pinceladas entram em profundo contraste com os velhos moldes acadêmicos, assinalando uma revolução estética, precedendo um século de mudanças que foi o XX. As árvores são frondosas, com cada folha pincelada, na exuberância da Natureza. As árvores farfalham ao vento, e temos aqui uma rua plácida, silenciosa, com pessoas passeando com tranquilidade. Os prédios têm traços simples, sem pretensões aristocráticas, sem arrogâncias. Um delicado toldo em rosa pastel é a proteção, o alento, a cura para a sensação de vulnerabilidade, em um lugar onde se sente extremamente seguro e especial. Não sabemos se a rua é pavimentada, e não sabemos se são paralelepípedos ou terra mesmo, trazendo dúvida intrigante, mistério: o que é a Vida? Na extrema esquerda vemos um poste de luz, que é o esclarecimento, a falta de dúvidas, na busca de um artista por seu espaço no Mundo. O poste é rijo e inflexível, difícil, na dureza do dia a dia da Vida, num atelier produtivo, mas que, infelizmente, traz um artista só reconhecido depois da morte, do mesmo modo como a Era Cristã só começou, na prática, tempos depois da morte de Cristo, numa espécie de “vingança”: finalmente a vitória, o devido reconhecimento, num van Gogh muito subestimado em vida, muito menosprezado, e, como diz Tao, aquele que é subestimando, vence. O azul do céu é majestoso, plácido, colorido, num dia glorioso de Sol, abraçando tudo e todos com sua generosidade e energia. É um tom de azul nobre, belo, num artista procurando buscar ver beleza na Vida, propósito. Abaixo de outro toldo, vemos um café com algumas pessoas sentadas, no encanto das cafeterias de Porto Alegre, no hábito cosmopolita francês de se sentar, tomar algo e apreciar o Mundo passando, no modo como o Brasil emerge no Cenário Mundial como grande produtor de Café. Vemos dois adultos e duas crianças atravessando a rua, na travessia existencial do Nascimento à Morte. Na extrema direita, vemos uma ponte em arco, ligando dois extremos, num artista querendo conciliar-se dentro de si mesmo, construindo pontes de acesso entre meta e sucesso. Na ponte, uma forma enegrecida que parece ser um trem passando, e podemos ouvir o barulho dos trilhos e o apito do trem, trazendo movimentação a um quadro tão silencioso e estável. O trem é o galgar da Vida, ligando pontos extremos, sendo que Norte e Sul se complementam, apesar de serem diferentes como preto e branco. É uma cidade pacata, num artista pacato, atordoado por um distúrbio mental que, na época, não obtinha diagnóstico nem medicamento apropriado. Esta urbe despretensiosa não é a vibrante Paris, o lugar onde o Mundo Ocidental se encontra, como nos inimagináveis tesouros do Louvre. E van Gogh traz o simples à tela, encontrando contentamento em não ser reconhecido ainda, ou, pelo menos, buscando encontrar. O artista aqui nos traz um desenho em perspectiva, como na Renascença. Do que será que van Gogh gostava em termos de Arte? De quais movimentos? De quais nomes? Porque ao artista é muito importante a busca por referências. E o trem ao fundo corta esta cena plácida, trazendo barulho e movimento, jorrando sua fumaça a este Céu de Brigadeiro, na sujeira inevitável do progresso. O trem traz as novidades, passageiros de outras bandas, interligando o Mundo, na busca pela integração da Humanidade, num artista tão ávido por se juntar ao Mundo.


Acima, Campo de Trigo com Corvos, 1890. Os corvos negros trazem um certo agouro, numa doença que avança irrefreavelmente. Os pássaros são a Morte, rondando a plantação, querendo comer o trigo, entrando em cena um espantalho, tentando inibir a fome negra do Destino. Ao mesmo tempo, os corvos esfomeados são a liberdade, num artista tão ávido por produzir, com tanta fome de sucesso, numa ambição existencial em se tornar uma superestrela. O quadro todo sem uma sensualidade de movimento, e a estrada que corta o campo agita-se como uma cobra, como um córrego de água, nutrindo a Vida. O amarelo do trigal é majestoso, dourado, brilhando à luz do dia. O trigal é a criatividade, a fertilidade da mente artística, sempre imaginando, sempre concebendo algo, na necessidade de “desova” do artista, imitando Tao, aquele que está sempre criando, na cornucópia da Vida, numa chuva fertilizante que nutre o trigal artístico. A estrada verde e marrom corta o quadro, e é o caminho da Vida, o rumo da existência, o itinerário da Encarnação. Não vemos qualquer figura humana aqui, e o trigal está jogado à própria sorte, vulnerável aos corvos, na vulnerabilidade catártica, do artista que “põe a cara a tapa”, pois, como me disse um artista certa vez, “nunca use a obra contra o artista desta”. O céu aqui não é muito ensolarado, e vemos pontos azulados em meio a pontos mais enegrecidos, juntando-se ao agouro dos corvos, que significam a Morte para todo o esforço do agricultor, como nas pragas que dizimam vinhedos – é a vicissitude material, encarnatória. Neste céu, duas formas redondas de nuvens mais claras, como dois olhos que observam a Criação, zelando pelo Mundo, como os olhos do Criador, sempre atento, sempre tudo vendo, mas nunca se descuidando nem do menor ser. São os olhos do artista sobre a própria obra, com amor de mãe. Trata-se de um quadro muito colorido, e traz alegria em meio a pontos depressivos, como os já mencionados corvos. Os corvos são a fome de sucesso, na busca ávida por reconhecimento, por consagração, no sonho de qualquer artista em vencer na Vida. O trigal dourado é sedutor, na riqueza das grandes obras de Arte, como um blockbuster hollywoodiano que estoura ao redor do Mundo, engordando bilheterias, numa Hollywood que nem sempre acerta: o insucesso acompanha o sucesso, e ambos são difíceis de se lidar. Aqui, vemos a Escuridão tentando se apoderar da Luz, numa batalha entre Bem e Mal, entre ambição e humildade. A estrada que corta o trigal é o Caminho da Vida, o único caminho, o caminho assinalado por Jesus, pois o Universo é um só, apesar do Ser Humano ser sempre seduzido por rotas secundárias. Neste quadro, a vida brota fortemente, e tudo pulsa em busca da Vida, seja na vegetação exuberante, seja na fome dos pássaros, seja na dança mesclada das nuvens. Ao fundo neste horizonte, o trigal se perde de vista, numa riqueza vasta demais para o Ser Humano entender, pois, como diz o Espiritismo, “Deus é o infinito”. O azul e o amarelo contrastam como frio e calor, e podemos ouvir o trigal dançando e farfalhando nesses ventos de mudança, de processo eterno, com tudo dançando integradamente, e é esta a sensualidade do Universo: estamos todos conectados, num van Gogh que existiu muito, muito antes do surgimento da Internet. E é aí que reside o “tesão” da Internet: Integração. Este quadro respira, vive, movimenta-se, num artista buscando na própria respiração a inspiração, de modo inconsciente, instintivo.


Acima, Lírios, 1889. Podemos sentir um suave perfume neste quadro, num van Gogh delicado, poético, cavalheiresco, dando flores galanteadoras a alguma mulher. Genitais da planta, as flores são o meio de reprodução, como tudo na Natureza visa o sexo para a perpetuação das espécies. É um quadro de cores agradáveis, combinando belos tons de azul com verde, e pitadas de amarelo, num quadro no qual o depressivo van Gogh encontra um pouco de alento e paz, num jardim de Paz e Harmonia. As folhas parecem dançar uma coreografia sensual ao brando vento, e tudo aqui entra em concordância e concórdia, numa figura da Paz, da harmonia entre os povos, numa promessa da Dimensão Metafísica, onde a Paz reina inabalavelmente, na simplicidade matemática do pensamento racional, limpo, lógico, alheio às adversidades da Dimensão Física. As flores deste rico jardim dançam uma só música, como numa pista de dança, num momento de interação social, como nos eventos religiosos, onde o coletivo toma força e acaba por unir as pessoas, mesmo que momentaneamente. O chão de terra aqui é róseo, cândido, como um delicioso presunto, e a terra é a base, a referência, onde raízes profundas se estabelecem e trazem segurança às flores, que estão acima do nível da terra, respirando. A terra é a âncora, a segurança, o sentimento de firmeza e pertencimento, na segurança do Lar, onde o indivíduo se sente à vontade, relaxando, tirando os sapatos e vivendo com simplicidade. Temos um van Gogh mestre em cores, um verdadeiro mago, como o célebre MC Escher, por sua vez já resenhado neste blog. São as grandes mentes que encarnam na Terra e marcam época, nos espíritos depurados, que já passaram por várias encarnações até atingir um considerável nível de aprimoramento moral. E van Gogh obteve uma “vingança”, sendo só valorizado depois de morrer, rindo lá do Céu de como o Mundo reconhece o erro em não o ter valorizado em vida. Este jardim convida-nos a deitar e dormir ao doce som do farfalhar das flores, e aqui temos uma ode à Beleza, ao bom gosto artístico. É como uma grande família, e cada membro carrega um pouco da beleza do quadro geral. Podemos ouvir o zunido de abelhas fertilizando o jardim, dando continuidade à marcha reprodutiva, ao desenvolvimento de um bioma, em uma época em que os ecologistas ainda não tinham aparecido. As flores se abrem ao Mundo, como se fossem um coral cantando, e o Sol as beija generosamente, numa cena tão reconfortante.


Acima, Noite Estrelada, 1889. Os céus deste quadro dançam em conjunto, numa dança tortuosa e sedutora, na beleza de uma noite. A Lua e as estrelas iluminam este céu, e os ventos varrem tortuosamente, como água em um rio ou lago. O tom dominante no quadro é o azul, tanto no céu quanto na terra. No solo, um pitoresco vilarejo onde reina a Paz, com as luzes das casas saindo de suas janelinhas, como aconchegantes lareiras em uma noite fria, junto ao fino e frio brilho das estrelas, como cristais preciosos, como relíquias cristalinas. A Lua rege esse céu, espalhando um brilho amarelado, como uma fatia de queijo, e um cipreste elegante vibra sua vegetação ao sabor desse vento noturno. O cipreste é escuro e misterioso, contrastando com este céu tão iluminado pelos corpos celestes. No vilarejo, uma torre pontiaguda parece ser uma igrejinha, um espinho fálico desfiando os céus, espetando e causando dor, como a coroa de espinhos do Salvador. O vilarejo fica num vale, e ao fundo vemos colinas voluptuosas, banhadas pela luz azulada desta noite enluarada. Este vilarejo tem muita Paz, e é a paz com a qual um artista produz em seu atelier, com a paciência para cada pincelada, e a cena é predominantemente colorida, mesmo que discreta. As próprias colinas parecem dançar, como numa Dança do Ventre, nas formas da Mãe Terra, desafiando desbravadores, do modo como temos em van Gogh um desbravador, adiantado o suficiente para não ser reconhecido em vida, do modo como um Elvis Presley foi avançado demais para o Século XX. Tanto a Lua quanto as estrelas têm uma aura, cercando tido, num céu que parece ser um Sol da Meia-Noite, num sexy limiar entre claro e escuro, entre noite e dia, num momento dúbio, onde os opostos encontram um pouco de concordância. É um limiar entre feio e belo, numa desafiadora linha tênue, enigmática. Por entre o vilarejo vemos arvoredos, na fertilidade criativa de van Gogh, as árvores farfalham ao vento noturno e a Noite beija este vale, abençoando-o. As formas voluptuosas do cipreste se rendem a este ritmo, a esta música, num quadro onde tudo dança a mesma valsa. A Lua e o cipreste formam opostos, dialogando nas duas extremidades do quadro. As estrelas fluem como em uma sopa, como conchinhas à beiramar, como inúmeras galáxias dispostas na vastidão do Universo. E van Gogh permanece um mistério, como todo grande artista.


Acima, Os Comedores de Batata, 1885. Trata-se de uma cena sombria, com uma fraca lamparina brilhando. A lamparina é a iluminação da inspiração, no momento em que uma ideia chega à mente do artista. O escuro é a imprevisibilidade da existência, nos meandros sombrios da Vida, onde pouco se sabe como, o quê e quando vai acontecer – as coisas nunca acontecem exatamente como imaginávamos que aconteceriam, e esse mistério é excitante. É a casa de uma família pobre, mas é aconchegante, e a travessa no meio da simples e tosca mesa tem muitas batatas, e ninguém passa fome aqui. Uma velha senhora serve em xícaras o que parece ser café. O líquido negro preenche as xícaras, e é negro como petróleo, e o ímpeto é a gasolina, o combustível de um artista. É uma cena de convívio familiar. Abaixo, na extrema direita, vemos uma chaleira envolta em sombras, discreta, em segundo plano, nunca se colocando no centro da cena, na questão de como a discrição é importante, pois aquele que é subestimado consegue surpreender. A chaleira é um van Gogh discretinho, sempre subestimado, e subestimado ele foi em vida, só sendo consagrado depois de bater as botas. Existe algo mais subestimado do que um artista que é reconhecido postumamente? O próprio Jesus Cristo só foi reconhecido postumamente, e se tornou o centro sobrenatural da História. Seria esta cena de van Gogh algo autobiográfico, que retrata a própria família do artista? Um senhor estende a xícara para ser servido pela senhora idosa. É a sede de se tornar célebre, sempre estendendo a xícara para ser preenchida. A xícara vazia é a sensualidade do vazio, do modo como as águas de rios correm para regiões mais baixas, regiões subestimadas, e poderosas como a Lei da Gravidade. Uma moça está de costas, nunca se revelando, sempre escondida e misteriosa, nos segredos da Feminilidade. Todos giram em torno da mesa, e o centro da mesa é Tao, o Uno, o Vazio, sempre acolhendo e atraindo, sempre provendo com batatas a família. Todos na cena vestem algo sobre a cabeça – é a proteção, o resguardo, a autoestima, algo relativo ao amor próprio. As pessoas giram em torno da mesa como mosquitos em torno da lamparina. A travessa com batatas é o nervo, o principal, o regente, sempre provendo, como uma mãe amamentando. E podemos ouvir uma conversa entre os atores da cena.


Acima, Terraço do Café na Praça Fórum, 1888. A majestosa cor dourada toma conta do café, brilhando como brilhou (e brilha) van Gogh. Estamos (querendo ou não) em Paris, no hábito cosmopolita de se sentar e tomar café. Várias pessoas são atendidas pelo garçom, que está de pé, vestindo um avental branco, neutro. O garçom é o instinto provedor, como o artista quer prover o Mundo com Arte, com ideias novas, com revoluções. Podemos ouvir o burburinho da clientela, conversando animadamente, emitindo opiniões intelectuais, produzindo Cultura. As mesas redondas são brancas, e trazem a paz de uma cena prazerosa. Mas o café não está todo lotado, e algumas mesas esperam por clientes, sempre atraindo, seduzindo, num lugar onde sempre cabe mais um, num lar generoso. Várias pessoas caminham pela rua de pavimentação colorida, alegre, na riqueza de uma cidade que tem vida cultural. Na extrema direita vemos uma vitrine multicolorida, como um mágico caleidoscópio, clamando por diversidade e respeito às diferenças. Mais acima, um pequeno galho de pinheiro, que protege contra a chuva, como um pinheiro de Natal sem enfeites, minimalista, leve. Ao fundo, uma parte mais sombria do quadro, com prédios enegrecidos, emitindo luz de dentro, na vida que pulsa na veia artística, como cidadãos felizes na proteção de seus respectivos lares. No céu noturno, vemos quatro majestosas estrelas brancas enfeitando o Céu, do modo como um céu estrelado é uma cornucópia de beleza, convidando o Ser Humano a sonhar com a beleza de um fino cristal, nobre – é a Dimensão Metafísica.

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